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O passivo fiscal na consolidação substancial

A lei 14.112/20 modificou o regime da recuperação judicial, extrajudicial e falência. A tributação e a consolidação substancial foram objeto da reforma legislativa. O artigo explora a influência que um tema pode ter no outro.

10/3/2021

1- Introdução do tema

A lei 14.112/20 entrou em vigor no início deste ano e implementou diversas alterações no regime jurídico dos processos de recuperação judicial, extrajudicial e falência. O presente texto objetiva analisar a reforma em ponto específico, qual seja: a disciplina legal da responsabilidade tributária decorrente da consolidação substancial em processo de recuperação judicial ("RJ")1. Não se pretende tratar de todas as alterações da nova lei em relação à tributação e/ou à consolidação substancial, mas apenas a influência que um tema pode ter (ou terá) no outro.

Consolidação substancial é instituto que já era explorado pela doutrina e aplicado pela jurisprudência e, com a lei 14.112/20, foi incorporado no texto legal. O fenômeno ocorre quando o pedido de RJ é formulado por duas ou mais empresas que passam a ser tratadas como se uma única entidade jurídica fosse. Por consequência, suspende-se a eficácia da autonomia patrimonial. O termo “substancial” é utilizado para diferenciar a situação da consolidação [só] processual. Nesse último caso, a separação patrimonial entre as entidades autoras do pedido de RJ é preservada. Numa proposta de síntese, poderíamos dizer que, na consolidação processual, existe pluralidade de empresas devedoras dentro de um único processo, cada uma com seu projeto de recuperação, patrimônios independentes e sem mistura dos grupos de credores. Já na consolidação substancial, o projeto de recuperação e o processo são únicos para todas as recuperandas e credores.  

Como já anunciado, o instituto da consolidação substancial foi incorporado expressamente pelo direito positivo. A presente análise parte das prescrições contidas no artigo 69-K e seu § 1º, ambos introduzidos na lei 11.101/05 ("LRF") pela lei 14.112/20:

Art. 69-K. Em decorrência da consolidação substancial, ativos e passivos de devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor.    

§ 1º A consolidação substancial acarretará a extinção imediata de garantias fidejussórias e de créditos detidos por um devedor em face de outro.  

Ativos e passivos dos devedores "serão tratados como se pertencessem a um único devedor" (caput). Haverá a extinção "imediata de garantias fidejussórias e de créditos detidos por um devedor em face de outro" (§1º), o que remete à figura da confusão, prevista nos artigos 381 a 384 do Código Civil (“CC”). O texto legal confirma a assertiva de que, na hipótese de consolidação substancial, as empresas em RJ serão tratadas como uma única entidade. A lei criou uma ficção, um CNPJ imaginário formado pelo patrimônio consolidado de todas as empresas devedoras. Parece razoável falar numa espécie de fusão de eficácia limitada ao campo da responsabilidade patrimonial dos débitos existentes até a data do pedido de recuperação.

Feita essa introdução, passa-se ao questionamento-problema que justificou o presente texto. A consolidação patrimonial descrita no artigo 69-K aplica-se aos ativos e dívidas fiscais?

2- Importância do questionamento e algumas consequências da adoção de uma posição ou outra

Os efeitos da adoção de uma posição ou outra em relação ao questionamento posto são bem variados e podem produzir consequências relevantes. Vejamos alguns exemplos.

Pela nova sistemática, em tese, as empresas em recuperação terão dois caminhos para regularizar o passivo fiscal federal: (a) o parcelamento especial, disciplinado nos artigos 10-A e 10-B da lei 10.522/02; (b) ou a transação tributária, prevista no artigo 10-C da mesma Lei.

No caso do parcelamento, existe previsão no sentido de que a empresa deverá destinar parcela do produto da alienação de ativos classificados como não circulante para amortizar o saldo devedor. O valor destinado à amortização "corresponderá à razão entre o valor total do passivo fiscal e o valor total de dívidas do devedor"2, observado o limite de 30% do produto da alienação.

Veja que o cálculo previsto poderá chegar a resultados diferentes a depender do critério que seja adotado. Reformulando o questionamento, a razão do passivo fiscal em relação ao total da dívida deve ser calculada (i) com base no patrimônio individual da empresa que alienará o ativo ou (ii) com base no patrimônio consolidado das empresas em RJ?

Indo além, imaginemos a hipótese, passível de existir no "mundo real", em que o patrimônio consolidado possui passivo fiscal, mas a empresa que alienará o ativo, não; nessa situação, a se admitir o primeiro critério, a conclusão seria que o produto dessa alienação não precisaria ser utilizado para amortizar o saldo do parcelamento.

No ponto analisado, se prevalecer o primeiro critério ('i'), o valor destinado à amortização dependerá da forma como os ativos alienados e os passivos fiscais estão alocados nos patrimônios individuais de cada empresa. Se for adotado o critério do patrimônio consolidado ('ii'), a configuração da alocação não faz diferença.

A Procuradoria da Fazenda Nacional ("PGFN"), em 1º de março deste ano, editou a Portaria 2382/21 com o objetivo de disciplinar a negociação de débitos inscritos de empresas em recuperação judicial. A transação tributária foi tratada no artigo 21 da citada Portaria. Existe a possibilidade de desconto na dívida fiscal e o percentual de desconto levará em consideração vários parâmetros, dentre quais estão: (1) a situação econômica e a capacidade de pagamento do contribuinte em recuperação judicial; (2) a proporção entre o passivo fiscal e o restante das dívidas do contribuinte em recuperação judicial; (3) o porte e a quantidade de vínculos empregatícios mantidos pela pessoa jurídica; (4) desenvolvimento de projetos sociais.

Nota-se que os quatros parâmetros indicados acima podem ser avaliados sob a perspectiva do CNPJ imaginário com o patrimônio consolidado ou sob a perspectiva individual de cada empresa em recuperação. A adoção de um ou outro critério levará a resultado diferentes.

Outra consequência relevante da adoção de um critério ou outro consiste na (im)possibilidade de utilização de créditos para pagamento da dívida fiscal. Na hipótese de parcelamento, por exemplo, a lei 14.112/20 permitiu3 que o contribuinte faça o pagamento de até 30% da dívida consolidada "com a utilização de créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) ou com outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Receita pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil"4. Veja que, a se admitir a aplicação da disposição do artigo 69-K para fins fiscais, a conclusão inevitável é que o crédito de uma empresa poderia ser utilizado para pagar débito de outra. A consolidação substancial acarreta a permissão de se fazer compensações cruzadas, inclusive de prejuízos fiscais? Esse ponto, bastante relevante num cenário de empresa plurisocietária em crise, é desdobramento do questionamento inicial proposto, o que reforça a importância do tema ora em discussão.

3- Da aplicação do artigo 67-K da lei 11.101/05 ao passivo fiscal

A Consolidação substancial, tal como a desconsideração da personalidade jurídica, é evento que acarreta a ineficácia da autonomia patrimonial. No caso da desconsideração da personalidade jurídica, o artigo 50 do CC prescreve que os limites da ineficácia da separação patrimonial devem ser determinados pelo Poder Judiciário. O mesmo poderia ser dito a respeito da consolidação substancial antes da lei 14.112/20. Era o juiz quem tinha que dizer qual eram os efeitos da consolidação substancial no campo responsabilidade patrimonial.

O contexto normativo mudou e agora a amplitude da ineficácia da autonomia patrimonial decorrente da consolidação substancial está prevista em lei. Como se viu, ativos e passivos dos devedores, incluídos os de natureza fiscal, devem ser considerados como se pertencentes a uma única entidade. A norma indica que, pelo menos em relação aos débitos existentes na data do pedido de RJ5, inexiste autonomia patrimonial entre as empresas em RJ.

Uma objeção que pode ser levantada para impedir a aplicação do artigo 69-K para o passivo fiscal consiste na circunstância de que o crédito tributário não está sujeito aos efeitos da RJ.

A objeção, no entanto, não se sustenta no regime introduzido pela lei 14.112/20. No sistema atual, o Fisco pode pedir a convolação da RJ em falência em duas situações6: (a) descumprimento do parcelamento especial ou da transação tributária ou (b) quando identificado esvaziamento patrimonial capaz de prejudicar à satisfação do crédito tributário. Por outro lado, leitura a contrario sensu do §4º do artigo 69-L combinado com artigo 69-K da LRF revela que, na consolidação substancial, a convolação em falência de uma empresa acarreta a quebra das demais. Se a consolidação tem esse efeito para o evento drástico que é a falência, me parece que deve valer também para o resto, seja para o bem do contribuinte, seja para o mal.7

Análise sistemática atual legislação revela que, embora a negociação das condições de pagamento seja realizada numa instância separada dos credores não fiscais, o passivo fiscal foi incorporado ao regime jurídico da RJ. A necessidade de apresentar o relatório do passivo fiscal detalhado como condição para o deferimento do pedido8, a obrigação de destinar parte do produto da alienação de certos ativos para amortizar saldo de parcelamento e a possibilidade de pedido de falência por parte do Fisco são provas entre a ligação entre o sistema tributário e o recuperacional, o que reforça a conclusão de que o artigo 67-K deve ser aplicado também ao passivo fiscal.9

Por fim, esses dias ouvi de um Procurador da Fazenda Nacional um comentário no sentido de que, na RJ, o fisco não deveria ser tratado “nem melhor nem pior” do que os demais credores. Me parece que esse espírito deve ser utilizado para animar a interpretação das regras do jogo.

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1- Questão que não foi objeto da nova legislação consiste no tratamento do passivo fiscal das empresas que pedem recuperação extrajudicial. Por essa razão, a presente análise se limitará a tratar da consolidação ocorrida em processo de recuperação judicial.    

2- Artigo 10-A, §2-B da lei 10.522/02.

3- A possibilidade está limitada para os débitos que estão no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.

4- Artigo 10-A, inciso V da lei 10.522/02.

5- Tema com potencial para gerar discussão consiste na eficácia da autonomia patrimonial para débitos gerados após o pedido de RJ. Em outras palavras, quais são os limites temporais do efeito descrito no artigo 69-K da lei 11.101/05.

6- Incisos V e VI do artigo 73 da lei 11.101/05.

7- A análise das consequências feito no item 2 do artigo releva que a adoção de um critério ou outro pode trazer vantagens ou desvantagens. 

8- Artigo 51, inciso X da lei 11.101/05.

9- Embora não trate especificamente da consolidação substancial, os §§ 4º a 8º da Portaria PGFN 9.917/20 parecem corroborar a posição defendida neste artigo.

Cláudio Lopes Cardoso Júnior
Advogado em São Paulo. Sócio da CCJ Advogados.

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