Contemporaneamente, o movimento migratório vem se intensificando. Segundo o ACNUR, ao fim de 2018 eram mais de 25,9 milhões de pessoas nessa condição. No Brasil, somavam-se 11.231 e, nos últimos 8 anos, foram 206.737 solicitações de refúgio no país, sendo a maioria de venezuelanos.
Refugiado é todo aquele que declara ser perseguido pelo seu Estado de Origem. A perseguição pode ocorrer por diversos motivos: raça, nacionalidade, conflitos armados, oposição política, religião, grupo social que pertence, entre outros. Devido ao fundado temor proveniente do risco que sua vida corre, e, sem receber auxilio ou proteção do Estado em que residem, estas pessoas solicitam asilo em outra nação – geralmente países vizinhos.
O termo refugiado foi cunhado em 1951 pela ONU, através da Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados. Nesta ocasião, também ocorreu a delimitação dos direitos básicos dos refugiados e das obrigações dos Estados que lhes acolhem. Os países que são signatários deste pacto possuem deveres internacionais para com estes sujeitos de direito da ordem internacional. Trata-se de um dever internacional de acolhimento.
No entanto, o abrigo de pessoas em situação e refúgio vem sendo realizado pelos países, em muitas ocasiões, de maneira equivocada. Segundo o teórico Didier Fassin, estamos inseridos numa lógica de Governo Humanitário, isto é, uma política de vidas precárias, dirigida de cima para baixo, dos mais poderosos aos mais frágeis e vulneráveis e que tem como ponto central salvar vidas daqueles considerados vítimas de alguma intempérie.
Trata-se basicamente de uma política de assistencialismo voltada aos grupos minoritários, como os refugiados, e que tem por base o sentimento de compaixão. Os Estados desenvolvem políticas públicas de auxílio às pessoas abrigadas tendo como base a caridade, piedade e compadecimento com o sofrimento alheio. A pergunta que se coloca é: se o problema fático que se impõe, qual seja, a necessidade de abrigo humanitário, vem sendo suprido e observado pelos Estados, porque a razão pela qual ele o faz é tão determinante?
A política assistencialista da ação humanitária tornou-se um grande pretexto para interferência política ocidental em cenas de infortúnio por todo o mundo, como em desastres ambientais e em conflitos armados. Houve a instrumentalização destas políticas caritativas realizadas por governos humanitários, ocultando interesses econômicos e estratégicos ao implementar políticas de assistência em um discurso de responsabilidade internacional. Adotou-se uma política de cima para baixo, dos poderosos aos mais frágeis, que camufla os verdadeiros interesses: intervenções políticas.
A lógica da razão humanitária também está presente na tendência que os governos possuem de estarem mais propensos a fornecer ajuda a um ser humano que sofre de alguma condição patológica grave, do que a um combatente de uma causa política. Requerentes de asilo que tem seu pedido rejeitado têm optado por buscar direitos de residência por motivos médicos, pois, nos Estados, parece prevalecer uma lógica da compaixão em detrimento do direito à proteção. Pertencer a um grupo perseguido ou correr riscos devido à ordem política é secundário perto das lástimas da patologia.
Quanto ao Brasil, a CF declara em seu artigo 4º, incisos II e X, que o país é regido pelos princípios da Prevalência dos Direitos Humanos e da Concessão de Asilo Político, respectivamente. Isso dá à proteção dos refugiados inegável força constitucional. Além disso, o Brasil é signatário da Convenção sobre Refugiados de 1951 e de seu Protocolo Adicional de 1967. Também faz parte da Declaração de Cartagena e seu Plano de Ação Cartagena +30. Possui também a lei de Refugiados de 22 de julho de 1997 e a nova lei de Migração, de 24 de maio de 2017.
Nesta lei de migração, há a presença da expressão “acolhida humanitária”, remetendo à ideia de razão humanitária teorizada por Fassin. É dizer, temos uma política migratória fundada na compaixão voltada à administrar as vidas precárias. A nossa política migratória é fundamentalmente orientada pela razão humanitária. As políticas públicas e os auxílios empregados são sempre justificados com base em um contexto humanitário.
Nada obstante, é importante destacar que a normativa do Brasil nessa seara é ampla e pioneira, contando com políticas públicas que estruturam todo o ciclo de deslocamento do refugiado, fornecendo atenção, proteção e busca de soluções, desde seu ingresso no país, até seu estabelecimento efetivo. A lei brasileira sobre refugiados é um exemplo de boas práticas para a proteção deste grupo, e se mostra um modelo normativo, muito valorizado e reconhecido pelo ACNUR e pela comunidade internacional, inclusive sendo usada pelo ACNUR como referência para toda a região do Mercosul.
Além disso, o país também conta com o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), ligado ao Ministério da Justiça, e com os Comitês Estaduais, que formulam planos de políticas públicas para a defesa dos refugiados, migrantes e apátridas, realizando também conferências municipais, estaduais e nacionais acerca do tema – destaque à COMIGRAR (Conferência Nacional sobre Migrações e refúgio).
Entretanto, apesar do rico arcabouço jurídico voltado a este grupo, sendo referência no contexto do Mercosul – mesmo que fundado em uma lógica da compaixão -, as políticas migratórias no país são incipientes e apresentam graves problemas. Não tem sido estabelecida uma política nacional para migração e refúgio, fazendo com que os órgãos responsáveis ajam baseados nesta lógica da piedade.
Inicialmente e basilarmente, é necessário romper com a ideia de que os solicitadores de refúgio e refugiados são vítimas e merecem asilo e proteção devido a sua condição de fragilidade. Este pensamento só debilita ainda mais a constituição destes sujeitos como cidadãos e como atuantes na vida política. Deve-se, ao contrário, ampliar os espaços públicos, tornando-os mais democráticos e plurais, possibilitando que os refugiados tomem a frente de suas próprias vidas e trajetórias e, inclusive, participem da formulação de políticas públicas.
Nesse sentido, os Conselhos e Comitês surgem como espaços emancipadores. Neles, a participação fica viabilizada, inclusive concedendo poderes para que estes grupos deliberarem acerca de políticas públicas. Além disso, há organizações que trabalham voltadas a pleitear na esfera pública direitos aos refugiados, principalmente pressionando políticos na esfera legislativa executiva.
No entanto, deve-se destacar que é o Poder Público, por meio dos órgãos de Estado, que tem a obrigação de desenvolver e implementar tais políticas públicas, conforme o disposto no Plano de Ação Cartagena +30. Nada obstante, são as associações não governamentais que vêm assumindo estas funções de assistência e proteção que, em linhas gerais, são dever, eminentemente, estatais.
Muitas práticas de competência da administração pública estão sendo descentralizadas para essas associações. Isso afeta a capacidade de elas reivindicarem junto ao poder público direitos em defesa dos refugiados. Isso se torna muito problemático, tendo em vista que são estas organizações as principais agentes de controle e também as responsáveis por pressionar e fiscalizar os instrumentos de assistência aos refugiados. Mas se são elas as que mais atuam no sentido fornecer essa ajuda, como irão controlar a si mesmas? Como irão pressionar a si mesmas?
Com essa inversão de papéis, o Estado acaba por eximir-se da sua obrigação de prestar esse serviço público e de qualidade voltado aos refugiados, migrantes e apátridas. Em detrimento disso, notando o hiato deixado pelo Poder Público, surgem, de particulares, ações voluntárias para simples remediação do sofrimento alheio, retornando à referida política da compaixão de Fassin.
Em resumo, com a assunção da responsabilidade do Poder Público de prestar auxílio aos migrantes e refugiados feito pelas associações não governamentais – principalmente por meio de termos de cooperação ou convênios – as ONGs acabam perdendo seu papel fundamental: a luta por mais diretos dessa camada. Isto é, mediante parcerias com o setor privado, o Estado delega a estas instituições o dever de prestar toda assistência a essa parcela da população.
Outrossim, diversas são as instituições que trabalham sem parcerias com setor público, isto é, sem receber ajuda financeira. Isso precariza ainda mais estas ações de acolhimento. Em contrapartida, o Poder Público continua a eximir-se de sua obrigação, dado que conta com as atividades das ONGs e entende que elas já são suficientes para desenvolver todo o trabalho necessário nesse setor.
Isto é problemático para um efetivo acolhimento. Não se clama por ações de caridade, de grupos com compadecimento e compaixão dos refugiados. São necessárias leis que reconheçam os direitos que essa camada possui e, dessa forma, implemente, políticas públicas aptas a inseri-la na sociedade. Não por piedade, mas porque, como sujeitos de direito da ordem internacional que são, possuem direitos a estes auxílios, que devem ser prestados pelo Estado Nacional que os acolhe.
É necessário permitir que os refugiados narrem a própria história, sua trajetória de vida para além das razões que o fizeram sair do seu país de origem. Os migrantes e refugiados devem ser considerados atores políticos importantes. É necessário trazer esse debate ao espaço público, muito antes de relegar a discussão aos juristas e legisladores. E, é nesse momento, que o discurso dos refugiados deve ser ouvido. Deve-se levar em conta sua presença e sua opinião. Entretanto, a presença desse segmento nos debates nacionais é baixíssima.
É dever dos Estados que compõem a comunidade internacional darem assistência aos cidadãos que, devido a fatores diversos, acabaram não recebendo proteção de seus países de origem. Com a incapacidade de certos países em oferecer os direitos mais básicos a alguns de seus nacionais, é que surge o dever de proteção subsidiária dos demais Estados, principalmente daqueles signatários de tratados e convenções que versem sobre direitos humanos e direitos dos refugiados. Tal obrigação decorre do conceito de sujeito de direito internacional, em que a responsabilidade de consolidar direitos da pessoa humana ultrapassam as fronteiras. Significa conceder uma proteção internacional aos direitos humanos, independentemente da origem daquela pessoa.
Desse cenário, depreende-se a responsabilidade internacional que os Estados têm em elaborar políticas públicas a fim da proteção dos refugiados. Cabe destacar aqui o Princípio de Não-devolução, em que fica obrigado o Estado a acolher, independentemente de ser signatário de tratados nesse sentido. E, é nessa lógica, que se desenvolve a legislação brasileira para migrantes e refugiados, sendo ela a base para a edificação de políticas públicas no país.
As reais políticas protetivas que deveriam ser implementadas são aquelas que incentivam o protagonismo político de migrantes e refugiados. Trata-se de colocá-los em evidência, fornecendo a oportunidade de ocuparem cadeiras em conselhos, comitês e órgãos diretivos que tratem sobre o assunto. Além da realização de audiências públicas, que ocorram nos fins de semana, e não em horário comercial, para que esta parcela da sociedade – e, diga-se de passagem, a mais interessada no tema – possa participar do debate. É possibilitar, inclusive, que eles participem das discussões das propostas de leis que vão, diretamente, modificar suas vidas.
Só assim, conferindo-lhes protagonismo da sua história, é que se estará, verdadeiramente, possibilitando aos refugiados uma genuína reconstrução de sua vida em outro país. Não por compaixão, não por pena, não porque o Brasil é um país que preza pela caridade e pela fraternidade, mas porque trata-se de sujeitos de direito da ordem internacional, possuindo direitos e garantias que devem ser respeitadas e aplicadas. É somente desta forma que se estará falando em efetividade na inclusão.
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