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Vacinação contra a covid-19: A recusa do empregado e a polêmica da justa causa

Vive-se um momento um tanto inseguro e confuso, no que concerne ao ambiente de trabalho no cenário da covid-19. Sendo assim, vislumbra-se a necessidade de análise de algumas teses jurídicas sobre a recusa do empregado em se vacinar e a possibilidade de configuração da justa causa.

9/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

Recentemente, o Ministério Público do Trabalho emitiu um guia técnico sobre a vacinação da covid-19, destinado aos procuradores da instituição, o qual gerou repercussão no meio jurídico, por se tratar de instituição séria e extremamente atuante, no contexto das relações entre empregados e empregadores.

O documento se fundamenta em leis federais, em normas regulamentadoras do Ministério da Economia, em portarias do Ministério da Saúde, bem como em recente decisão do STF, para atestar a possibilidade de demissão por justa causa do empregado que se recusar a vacinar-se, haja vista o enquadramento dessa conduta como ato faltoso.

É importante ressaltar, preliminarmente, que o documento em apreço pressupõe o contexto em que a vacina contra a covid-19 já esteja amplamente disponibilizada à sociedade civil, integrando o programa nacional de imunizações do governo federal, de forma irrestrita e gratuita.

Os veículos de comunicação circularam a notícia do guia de forma simplista, podendo ter causado a impressão de que ao empregador é permitido proceder, de plano, à demissão por justa causa do empregado que se negar a tomar a vacina sem justificativa. Não é assim.

É preciso entender, a princípio, que há outros requisitos a serem observados, de sorte a se configurar a justa causa pela recusa injustificada à vacinação contra a covid-19, nos termos do guia do MPT.

A CLT determina, claramente, que nenhum interesse de classe ou particular pode prevalecer sobre o interesse público. Essa premissa permite concluir que o direito da coletividade de receber a vacina, prevista em programa nacional de vacinação e aprovada pela ANVISA, deve ser preponderante.

“Diante de uma pandemia como a de covid-19, a vacinação individual é pressuposto para a imunização coletiva e controle da pandemia”, afirma o MPT. Esse cenário consente exigir que seu empregado tome a vacina, de acordo com o referido documento.

Há, entretanto, necessidade de divulgar informações, de elaborar programas de conscientização acerca da importância da vacinação em massa, englobando-as em seus programas de saúde e segurança do trabalho.

Trata-se de estratégia de enfrentamento da covid-19 no ambiente de trabalho, a qual demanda, prioritariamente, a atualização dos programas de controle médico e saúde ocupacional (PCMSO) e de prevenção de riscos ambientais (PPRA), para que passem a incluir expressamente a imunização contra o corona vírus.

O Ministério Público do Trabalho, portanto, apresenta como um dever legal da empresa informar os empregados sobre saúde e segurança do trabalho, no que concerne também à imprescindibilidade da vacinação contra a covid-19.

Apenas depois desse processo de conscientização, da realização de treinamentos específicos, há que se falar em demissão por justa causa, tal qual posto no guia do MPT.

Ainda como requisito a ser observado, antes de demitir um empregado pela recusa à vacinação com fundamento na justa causa, deve-se respeitar a proporcionalidade na aplicação de penalidades.

A instituição atesta, em seu guia, que a empresa não pode utilizar a pena máxima ou qualquer outra penalidade, de imediato.

A mera recusa de um empregado que não queira tomar a vacina contra a covid-19 não justificará sua demissão por justa causa, se a organização empresarial não der cumprimento não só ao seu dever de informar sobre importância do ato da vacinação, mas também acerca das consequências da respectiva recusa.

Segue abaixo transcrição ipsis literis dos itens do guia técnico interno do MPT, no seguinte sentido:

X. Diante da recusa, a princípio injustificada, deverá o empregador verificar as medidas para esclarecimento do trabalhador, fornecendo todas as informações necessárias para elucidação a respeito do procedimento de vacinação e das consequências jurídicas da recusa;

XI. Persistindo a recusa injustificada, o trabalhador deverá ser afastado do ambiente de trabalho, sob pena de colocar em risco a imunização coletiva, e o empregador poderá aplicar sanções disciplinares, inclusive a despedida por justa causa, como ultima ratio, com fundamento no artigo 482, h, combinado com art. 158, II, parágrafo único, alínea “a”, pois deve-se observar o interesse público, já que o valor maior a ser tutelado é a proteção da coletividade. (grifos nossos)

Posta a tese adotada pelo MPT, outras vozes se levantaram em defesa da mantença das relações de trabalho, mesmo nos casos de recusa injustificada acerca da vacinação contra a covid-19.

Essa linha de entendimento afirma que a justa causa com esteio nos argumentos constantes no documento elaborado pelo MPT cria “uma forma coercitivamente irresistível para a vacinação por meio da supressão de direitos que em nada se relacionam ao fato.”

Para eles, a legislação trabalhista não elenca qualquer dispositivo que possibilite a extinção do vínculo de emprego amparado na justa causa, quando trabalhadores se neguem a tomar vacina injustificadamente.

Extinguir o contrato de trabalho nesses moldes seria mais uma “forma de expressão de poder do empregador”, estimulando um tipo de “julgamento moral desse empregado”.

Além disso, o empregador não poder ser visto como o ente responsável pela vacinação em vez do Estado, de modo que não há falar-se em equiparação da vacina contra a covid-19 a qualquer equipamento de proteção individual. Esse fundamento vem como resposta à exigibilidade da vacina, no contexto da obrigação do empregador em manter o ambiente de trabalho hígido e seguro.

Essa corrente doutrinária atesta também que o empregador pode se eximir do risco de reparar eventuais indenizações decorrentes da contaminação pelo corona vírus, no ambiente de trabalho, suspendendo as atividades presenciais. Assim sendo, afasta os trabalhadores do risco de contágio.

Um outro ponto a ser destacado dentre os fundamentos da tese em apreço diz respeito aos trabalhadores integrantes do grupo de risco, os quais, além do afastamento das dependências da empresa, devem continuar percebendo as remunerações.

A tese insiste, por conseguinte, que nem mesmo em “ultima ratio”, tal qual pretende o Ministério Público do Trabalho, deve-se cogitar o enquadramento da justa causa, haja vista seus traços “de reprimenda moral e disciplinamento, de ser um instituto jurídico incompatível com a atual ordem jurídica constitucional democrática.”

A solução apresentada por essa doutrina sugere que o empregador acolha o empregado não vacinado, considerando-se a vacinação disponível no setor público, mas entenda que ele pode gerar risco aos demais empregados.

Nesse contexto, a recomendação doutrinária é pela suspensão do contrato de trabalho do empregado que se recusar a tomar a vacina contra a covid-19 injustificadamente.

Isto posto, vislumbra-se alguma similaridade entre as duas teses, uma vez que ambas privilegiam a manutenção da relação de emprego e do respectivo contrato em um primeiro momento. Separam-se, entretanto, quanto à possibilidade da delimitação da justa causa, ainda que como último recurso acessível.

O Tribunal Superior do Trabalho já esboçou alguma manifestação sobre a matéria, em veículo comunicação de grande circulação nacional.

A ministra presidente entende ser difícil enquadrar a recusa do empregado à vacinação contra a covid-19 como justa causa. De outra feita, lembra que a legislação vigente impõe ao empregador o dever de manter o ambiente de trabalho saudável.

É possível constatar-se, por fim, que a matéria é abordada ainda muito teoricamente. Até este tempo se vive o estado pandêmico em que as rotinas empresariais e as relações de trabalho foram abruptamente alteradas, adequando-se à realidade do corona vírus.

A vacinação, muito incipiente, não atingiu o número desejado, e é possível que grande parte das organizações empresariais sequer tenham enfrentado a recusa de algum empregado em se vacinar.

As duas teorias aqui apresentados só fazem sentido, então, quando considerado o universo do pleno acesso à vacinação contra a covid-19, de forma irrestrita e gratuita.

Não se sabe qual será a posição dos tribunais, ao se depararem com demandas envolvendo recusa à vacinação e justa causa do trabalhador. A despeito disso, é momento de reflexão, de estudo, de qualificação para o enfrentamento de questões complexas, as quais se colocarão à frente de todos os operadores do direito.

É tempo de antever soluções, de permitir o olhar inovador, de buscar saídas extraordinárias, de primar pelo bom senso, de sorte a minorar a grave crise econômica decorrente da pandemia da covid-19. É tempo de empenho conjunto, de amparo às atividades empresariais e de proteção aos postos de trabalho e de preservação da renda.

Lígia Verônica Marrocos Almeida
Sócia do escritório Sebadelhe Aranha & Vasconcelos Advocacia na área trabalhista.

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