A autora Djamila Ribeiro, em seu livro “Quem tem medo do Feminismo Negro?”, considera que o termo “empoderamento” diz respeito a mudanças sociais numa perspectiva antirracista, antielitista e antissexista, trata-se de empoderar a si e aos outros, colocando as mulheres como sujeitos ativos da mudança. O empoderamento, entretanto, torna-se particularmente difícil quando se depara com o contexto de discriminação e violência contra a mulher, obstando o desenvolvimento pleno do projeto de vida, ou seja, impede que cada indivíduo tenha assegurado a sua autonomia para realizar escolhas sobre quais caminhos irá seguir para se realizar existencialmente.
A América Latina é uma das regiões mais perigosas para ser mulher no mundo. Segundo dados da ONU, 14 dos 25 países com as taxas mais altas de feminicídio estão na região, além de 98% dos casos de violência não serem julgados. O Brasil é o país que lidera o ranking, onde 1.133 assassinatos aconteceram só em 2017.
Cerca de 2.795 mulheres foram vítimas de feminicídio nos 23 países da região, em 2017, segundo dados do CEPAL (Observatório de Igualdade de Gênero na América Latina e Caribe).
Além da região ser perigosa, o lugar mais letal para uma mulher é a própria casa, e o agressor normalmente é alguém próximo da vítima ou alguém que ela conhece intimamente. Mas antes de refletir sobre as razões históricas para celebração do dia 8 de março, é importante analisar qual caminho está sendo traçado para a visibilidade dos direitos das mulheres.
Na primeira atualização de um relatório produzido a pedido do Banco Mundial, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) intitulado Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, foi destacado que os registros do 190 apontam a mesma tendência, indicando aumento dos atendimentos relativos à violência doméstica. No Acre, o crescimento foi de 2% em comparação entre março de 2020 e março de 2019; em São Paulo, o crescimento chegou a 45% nas ocorrências registradas via 190. Tais dados reforçam a ideia de que o local onde a mulher deveria se sentir segura é onde ela tem mais razões para ter medo.
Ainda, fazendo um recorte racial, é importante ressaltar que o impedimento dos direitos atravessa o debate da interseccionalidade. Segundo o IPEA (Mapa da Violência de 2019), a desigualdade racial a partir da comparação entre mulheres negras e não negras, vítimas de homicídio, é gritante. Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 4,5% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9% no mesmo período. Em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7%, e entre mulheres negras de 60,5%.
O cenário indica que, infelizmente, a realidade da violência contra a mulher está em todos os lugares e não é por conta da falta de instrumentos normativos que isso acontece, ao contrário, o aparato normativo existe, mas sua implementação está longe do ideal.
A Constituição Federal de 1988 possui a dignidade da pessoa humana como fonte basilar de todos os direitos fundamentais. O artigo 5º da Constituição Federal de 1988 estabelece ainda que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo já em seu inciso I que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Obviamente que tal direito não foi implementado rapidamente, perpetuando-se até os dias atuais o desafio da sua concretização. Trata-se de uma complexa construção histórica de lutas e conquistas ao longo dos anos, em nível nacional e mundial.
Portanto, é possível entender que a violência contra a mulher não se refere apenas à violência física, mas à violência psicológica, os estereótipos sobre seu papel social, bem como aquela violência camuflada que impede o pleno exercício do direito à igualdade: a retirada do poder de escolha da mulher sobre sua vida pessoal, profissional e seu próprio corpo, ou seja, para analisar a questão da violência contra a mulher, deve-se levar em consideração o aspecto de projeto de vida em todas as suas faces e mensurar os prejuízos ao acesso igualitário a oportunidades e direitos.
Nota-se também que a igualdade de direitos, desenvolvimento e paz foram os lemas da década da mulher, instituída pelas Nações Unidas, entre 1976 e 1985. Como resultado foi adotada a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW, na siga em inglês), em 18 de dezembro de 1979. O Instrumento foi um importante passo para o reconhecimento dos direitos da mulher como direitos humanos, criando mecanismos internacionais de monitoramento, como o Comitê Cedaw, que analisa a situação de proteção do direito das mulheres no mundo, também recebe petições de casos concretos, a exemplo do caso de Alyne da Silva Pimentel (Alyne vs. Brasil), que é o primeiro sobre mortalidade materna decidido por um órgão internacional de direitos humanos.
Para além de ser membro da ONU, o Brasil faz parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no bojo da Organização dos Estados Americanos, criada em 1948. A organização conta com a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que tem como vice-presidente a professora brasileira Flávia Piovesan, e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, recebendo casos e petições constantemente.
Dentre os instrumentos de direitos humanos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, vale destacar a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher, “Convenção De Belém Do Pará” que já em 1994, estabeleceu internacionalmente que se entende por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Já entre o sistema regional de proteção dos direitos humanos, é possível verificar que ele teve a oportunidade de se pronunciar diversas vezes sobre a impunidade por violações de direitos humanos nas Américas. Entre os casos mais sensíveis, existe a questão de violação dos direitos das mulheres como foi o caso de violência doméstica da Sra. Maria da Penha vs. Brasil, analisado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em 2001, que responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres.
A Lei Maria da Penha entrou em vigor no Brasil em 2006, sendo reconhecida pela ONU como uma das mais avançadas legislações do mundo para enfrentar a violência doméstica. Essa legislação criou estruturas judiciais de atenção às vítimas e denúncias exclusivamente para as mulheres e endureceu as penas para os crimes de gênero. O sistema de atendimento às vítimas vem avançando, mas ainda enfrenta entraves para implementação e conscientização sobre a lei.
Ressalta-se, também, o caso Campo Algodoeiro, em Ciudad Juárez, no México, onde foram estabelecidos requisitos para a definição de “feminicídio”, qualificado como homicídio em face de mulheres por razão de gênero. Na decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado do México foi responsabilizado pelo desaparecimento das três mulheres, pela impunidade dos possíveis perpetradores do crime, bem como violação dos direitos das crianças (já que duas das vítimas eram menores de idade), tal qual pelas violações da Convenção de Belém do Pará.
O arcabouço legislativo no âmbito nacional e internacional, bem como os exemplos de casos no direito internacional mostram, portanto, que há um grande avanço em direção à proteção dos direitos das mulheres, para que o projeto de vida não seja prejudicado pela desigualdade, discriminação e violência.
Em contrapartida, os dados oficiais do Brasil escancaram que são muitos os passos para se alcançar a equidade prevista na Constituição Federal e nos tratados internacionais de direitos humanos, urgindo que tanto Estado quanto sociedade se atentem para a necessária mudança em direção ao pleno exercício dos direitos fundamentais, recordando que, como estabelecido pela ONU, a igualdade entre homens e mulheres não é apenas um direito humano fundamental, mas a base necessária para a construção de um mundo pacífico e mais justo.