Quando os governos decretaram o fechamento do comércio e a suspensão de toda atividade não essencial, a vida econômica e social da população se voltou para os seus lares.
Contudo, embora se vivesse um momento em que a vida fora momentaneamente suspensa, as pessoas continuaram tendo necessidades, principalmente de bens de consumo diversos.
A demanda por mais produtos de higiene, a adaptação de espaços domésticos para o homeoffice que se iniciava e, sobretudo, o consumo de outros bens de consumo que não mais poderiam ser adquiridos no comércio físico, impulsionaram as vendas do e-commerce.
A ABCOMM (Associação Brasileira de Comércio Eletrônico) estima que em 2020 o e-commerce tenha crescido cerca de 56,8% devido a pandemia. Tal crescimento foi impulsionado pela quarentena decretada inicialmente pelos governos e o lockdown, que fechou basicamente todo o comércio físico Brasil afora.
Nesse cenário, a logística se tornou fundamental para manter a cadeia varejista “respirando”, assumindo o protagonismo e a ponta no comércio de um modo geral.
As entregas passaram a ser fundamentais para que as empresas alcançassem seus clientes e até os mantivessem e para isso o setor se reinventou – atualmente é possível comprar um produto e recebê-lo em horas ou até no mesmo dia.
Pode-se dizer que a união e aprimoramento das vendas varejistas e da logística mitigou um pouco o prejuízo causado pela doença, que foi e é enorme; em verdade, o setor logístico foi aquele que garantiu o fluxo de mercadorias essenciais e não essenciais por todo o país e abasteceu o consumidor final.
Considerando que todas as relações entabuladas no mundo civil são formalizadas por meio de contratos, se percebe a necessidade de que esses instrumentos sejam bem elaborados, para que se garanta que toda a venda possa se aperfeiçoar – com cada parte fazendo o que lhe cabe, sem que seja necessária a tomada de medidas judiciais de uma parte a outra.
Nesse sentido, surge, entre a empresa varejista e o transportador de mercadorias o contrato de transporte, que visa regulamentar essa relação.
No contrato de transporte, o transportador se obriga a transportar de um lugar a outro mercadorias ou pessoas mediante uma remuneração (art. 730, CC/02). O objeto do contrato, que é o transporte, se constitui serviço dotado de utilidade pública que é disponibilizado aos consumidores.
Tal contrato é considerado pela doutrina como sendo típico, porquanto possui previsão expressa no CC. Seu objeto o rege, sendo sua principal atividade o deslocamento físico de pessoas ou mercadorias de um local a outro, assumindo a responsabilidade por sua entrega sem danos.
Tal avença gera para o transportador uma obrigação de resultado, tendo em vista a responsabilidade de entrega da pessoa ou da coisa sem máculas ao seu destino/destinatário final.
Embora tenha regulamentação e características próprias, pode o contrato de transporte ser regido supletivamente pelas disposições aplicáveis ao contrato de depósito se a mercadoria permanecer armazenada nos estoques do transportador (art. 751, CC/2002).
São considerados sujeitos do contrato de transporte o remetente/expedidor/carregador, o comissário de transportes e o destinatário ou consignatário.
O remetente/expedidor ou carregador é o indivíduo que entrega a mercadoria para ser transportada. O comissário de transportes é aquele que se obriga, mediante remuneração (frete), a transportar a mercadoria. Já o destinatário ou consignatário é quem recebe a mercadoria.
No tocante ao transporte de mercadorias, impende destacar que a carga a ser transportada deve ser embalada conforme a sua natureza, sob pena de a mercadoria ser recusada pelo transportador (art. 746, CC/02). Além disso, deve o objeto transportado ser caracterizado segundo sua natureza, valor, peso e quantidade, para que o transportador, no ato de seu recebimento, emita conhecimento contendo “a menção dos dados que a identifiquem, obedecido o disposto em lei especial”, segundo o que rezam os arts. 743 e 744, CC/021.
O contrato de transporte de mercadorias, pois, se aperfeiçoa com a elaboração do recibo de entrega ou do conhecimento de transporte (também denominado conhecimento de frete ou carga), onde o transportador comprova a conclusão do contrato, com dados sobre o recebimento da mercadoria e as condições em que o transporte foi feito. Importante destacar que esse documento serve como título de crédito de natureza imprópria2 e pode ser transferido por endosso simples. Nesse caso, a responsabilidade do transportador está adstrita ao valor constante no recibo de conhecimento, conforme o art. 750, CC/02.
Para que a relação entre a empresa varejista e o transportador flua de maneira perfeita, é necessário que seja elaborado um contrato de transporte dentro dos ditames legais e munidos de cláusulas específicas.
Tal qual todos os contratos, o contrato de transporte possui como requisitos indispensáveis: o objeto, o preço convencionado e o acordo entre as partes.
O objeto é o escopo do contrato, que deve ser o transporte de mercadorias de um lugar a outro, garantida a sua incolumidade. Deve ser cobrado um preço, posto que o contrato de transporte seja oneroso e o remetente se comprometa a pagar um frete ao transportador para a entrega da mercadoria3.
É importante o estabelecimento de um prazo para o cumprimento do combinado, bem como de penalidades para o descumprimento do pactuado em contrato; regras para hipóteses de devolução da mercadoria, perda, furto/roubo e eventuais avarias também devem ser inseridas no instrumento.
Para ter validade, é necessário que ambas as partes contratantes tenham capacidade genérica para a vida civil, objeto lícito e o acordo convencionado seja aceito por todos.
A elaboração de um instrumento seguro serve como um guia para o negócio entabulado, à medida em que através dele se previne riscos, preserva a avença e dá às partes segurança jurídica na consecução de suas atividades, ainda mais em tempos de pandemia.
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1- Caso o transportador sofra qualquer espécie de prejuízo decorrente de informação inexata ou falsa descrição da coisa transportada, deverá ser indenizado. A ação deverá ser ajuizada em face do remetente no prazo decadencial de cento e vinte dias a contar do ato, conforme o art. 745, CC/2002.
2- Trata-se de um título de crédito cambiariforme que é extraído após a celebração de um contrato de transporte por qualquer via e que possibilita a transferência de titularidade por meio de endosso simples. Esse tipo de título de crédito não representa verdadeira operação de crédito, porém, sua forma é de título cambiário e tem conteúdo pecuniário. Alguns autores modernos consideram o conhecimento de transporte um título de representação, haja posto representarem uma carga ou mercadoria.
3- O transporte a título gratuito não é regulamentado pelo Código Civil na seção de contrato de transporte (arts. 730 a 756, CC/2002). A esse respeito, a súmula n. 145 do STJ enuncia que: “no transporte desinteressado, de simples cortesia, o transportador só será civilmente responsável por danos causados ao transportado quando incorrer em dolo ou culpa grave.”