Migalhas de Peso

A pandemia de Covid-19 e os contratos educacionais

A (im)possibilidade de imposição de descontos lineares nas mensalidades escolares durante a pandemia ocasionada pela Covid-19.

3/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

No início de 2020 o mundo foi tomado pela crise sanitária decorrente do Novo Coronavírus, que alterou a dinâmica do comportamento humano, com ordens de isolamento social e restrição de contatos físicos. Uma das principais formas de prevenção da doença é o isolamento social, motivo pelo qual em praticamente todos os países foram impostas restrições de funcionamento em diversas atividades, dentre elas a educação, que foi uma das áreas mais afetadas pela pandemia, que, em todos os níveis (ensinos infantil, fundamental, médio, superior, cursos profissionalizantes, aprendizagem e cursos livres) teve que viabilizar novas formas de aprendizagem não presencial.

No Brasil, o decreto legislativo 6 de 2020, em 18 de março de 2020, decretou a ocorrência do estado de calamidade pública no país. Logo em seguida, os governos estaduais e municipais publicaram decretos proibindo expressamente a realização de aulas presenciais. Visando possibilitar a continuidade da prestação de serviço, o Ministério da Educação, em 28 de abril de 2020 homologou o Parecer CNE 5/20 autorizando a realização de aulas remotas.

As salas de aula às quais estávamos acostumados, muitas vezes cheias de alunos, foram substituídas por salas virtuais, nas quais o conteúdo era (e é) transmitido aos alunos por meio de videochamadas e os debates passaram a se dar na frente da tela do computador ou celular. Em decorrência dessa necessária adaptação, diversos órgãos públicos, notadamente os incumbidos da defesa do consumidor, estipularam, compulsória e unilateralmente descontos lineares no valor das mensalidades em 30%, em média. A justificativa para tanto seria uma presunção, sem qualquer comprovação, de efetivo prejuízo aos alunos e redução de custos das Instituições. Tal conduta judicializou a questão e foram distribuídas diversas ações coletivas e individuais objetivando a determinação de aplicação de descontos lineares nas mensalidades escolares.

Diante da enorme insegurança jurídica em torno do assunto, vários Estados começaram a editar leis determinando a imposição de descontos lineares nos contratos escolares. No âmbito da União também existem projetos de lei1 que determinam a redução dos valores das mensalidades escolares durante a pandemia.

Diante desse cenário, cabe-nos discutir: é possível a interferência estatal, seja por meio do Poder Executivo, seja pelo Legislativo ou pelo Judiciário, para fixação do preço das mensalidades escolares? Tal conduta estaria em consonância com o Princípio da Livre Iniciativa? Quais os efeitos econômicos da referida interferência?  

 

Interferência Estatal Indevida na Iniciativa Privada e Violação à Livre Iniciativa

O princípio da livre iniciativa, estampado no artigo 170 da Constituição Federal, assegura, como regra geral, que as pessoas sejam livres para iniciar, organizar e gerir uma atividade econômica. Trata-se de um fundamento da ordem econômica e da República Federativa do Brasil (art. 1º, IV, CF/88).  A definição de preços é inerente ao princípio da livre iniciativa, razão pela qual o controle prévio e reiterado de preços no mercado é considerado inconstitucional.

Nesse sentido, somente é possível o controle de preços em casos excepcionais, justificados e limitados no tempo, em razão do princípio da livre concorrência, proteção do consumidor ou redução das desigualdades sociais.

Rafael Carvalho2 afirma que o controle estatal dos preços deve respeitar alguns parâmetros, tais como:

a) Excepcionalidade da medida, pautada pela razoabilidade e justificada na necessidade de garantia do funcionamento adequado do mercado concorrencial, evitando lucros abusivos.

b) Essencialidade da atividade econômica que será controlada.

c) Temporariedade do controle de preços.

d) Impossibilidade de fixação de preços em patamar inferior aos respectivos custos.

O STF possui entendimento de que a fixação de preços em valores abaixo da realidade e em desconformidade com a legislação aplicável ao setor obsta o livre exercício da atividade econômica, com desrespeito ao princípio da livre iniciativa3.

No caso das mensalidades escolares, não vem sendo apresentado pelos órgãos de defesa do consumidor nenhum estudo ou perícia que demonstre a razão de impor um desconto linear de 30% (trinta por cento). Além disso, devem ser considerados os efeitos da pandemia para ambos os lados da relação jurídica, bem como devem ser considerados os efeitos concorrenciais de aplicação de descontos lineares a situações díspares.

Dessa forma, a fixação pelo Estado de descontos lineares pode ser considerado tabelamento de preços e, consequentemente, haverá violação ao princípio constitucional da livre iniciativa. 

Efeitos Concorrenciais

Conforme bem delineado pela SENACOM, na Nota Técnica 26/20, a imposição de percentual linear de redução no preço das mensalidades e do repasse de supostas reduções de custos operacionais aos consumidores para todos os tipos de instituição de ensino pode ser bastante prejudicial às relações de consumo de serviços educacionais, uma vez que não há nenhuma ponderação das variáveis incidentes nesse contexto e suas consequências para os consumidores e fornecedores no curto e médio prazo, em um mercado pulverizado e com realidades distintas.

O Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômico avaliou os potenciais efeitos de imposição de descontos percentuais em contratos de prestação de serviços educacionais no contexto da Covid-19, conforme nota técnica 17/20 e concluiu que a interferência nos preços dos contratos educacionais por meio de imposição unilateral e linear de descontos pode desequilibrar as relações comerciais, causando uma série de efeitos macroeconômicos, tais como desequilibrar as relações comerciais, melhorando o ambiente negocial para alguns estudantes de um lado às expensas de eventual piora da situação de estabelecimentos de ensino que terão que diminuir seus gastos, possível diminuição do salário de professores ou demissões. Em casos mais extremos, a falência de estabelecimentos de ensino em razão deste tipo de interferência.

Assim, de acordo com o disposto na referida nota, é possível haver uma série de efeitos macroeconômicos, como diminuição da demanda agregada, diminuição da arrecadação de impostos e, por conseguinte, diminuição até mesmo das condições do Estado gerir o orçamento caso a rede pública seja obrigada a absorver os alunos de estabelecimentos que faliram, talvez, tenha que se aumentar o orçamento público com educação.

Por fim, ainda cita a possibilidade de tal conduta acarretar pressão de preços para cima, pós-pandemia, uma vez que empresas com rivalidade intensa não terão como arcar com diminuições de gastos no mesmo patamar que empresas que possuem elevada margem de lucro. Assim, o mercado ficará mais concentrado e sem agentes do tipo maverick, aquelas empresas com postura de mercado muito agressiva, com menor custo e com capacidade de disciplinar os preços do mercado.

Dessa forma, a imposição de descontos lineares, além de ser uma intervenção estatal indevida, também poderá gerar feitos econômicos maléficos a toda sociedade, gerando custos sociais demasiados e sem causar a proteção almejada, ocasionando o chamado “Efeito Cobra”.

Tal fenômeno, também conhecido pelos economistas e cientistas como lei das Consequências não Intencionais, ocorre quando as consequências não intencionais da tentativa de solução de certo problema o tornam ainda pior. Assim, cada ação a curto prazo tem que ser muito bem medida e calculada, pois pode gerar consequências práticas no futuro que oneram toda a sociedade, intensificando o problema inicial.

Tem-se, portanto, que a imposição de descontos lineares pode causar efeitos econômicos indesejados, onerando a própria sociedade, em efeito contrário ao pretendido pelos órgãos de defesa do consumidor.

Inexistência de Vantagem Manifestamente Excessiva – Inaplicabilidade da Teoria da Base Objetiva do Negócio Jurídico Prevista no CDC

Segundo a jurisprudência pátria, é possível a revisão de contratos consumeristas independentemente da ocorrência de fato imprevisível e inevitável, desde que haja demonstração de desequilíbrio entre as obrigações assumidas pelas partes contratantes, conforme previsão do art. 6º, V, do CDC. Contudo, no caso das mensalidades escolares a crise sanitária causada pela Covid-19 afetou ambas as partes da relação contratual.

Ademais, os serviços contratados estão sendo prestados, mesmo que de forma adaptada à realidade imposta pelos próprios órgãos estatais e pela realidade fática do contexto sanitário do mundo4.

Imperioso reiterar que a intervenção judicial em contrato privado é medida excepcional, admitida apenas em situações específicas e devidamente comprovadas.

Além disso, a revisão contratual por onerosidade excessiva demanda a demonstração clara de que um fato absolutamente imprevisível tenha sido suficiente para deixar um dos contratantes em situação de onerosidade excessiva, enquanto a parte contrária passa a se beneficiar de extrema vantagem, o que não ocorre no caso em questão, pois os efeitos adversos da pandemia atingem a todos, isto é, numa relação contratual esses efeitos deletérios afetam tanto o contratante quanto o contratado5. Dessa forma, conclui-se é inaplicável o artigo 6º do CDC, uma vez que não estão presentes os requisitos ali previstos.  

Outro ponto merece ser discutido: os custos permaneceram praticamente inalterados, mesmo porque as despesas fixas, como luz, por exemplo, são pouco relevantes em relação às demais. Além disso, foram necessários novos investimentos pelas instituições para implantação deste formato de ensino e adequação forçada ao atual cenário.

Importante ressaltar também que o nível de inadimplência durante a pandemia aumentou significativamente no setor, o que também afeta os custos/funcionamento das instituições6. Assim, resta patente a inaplicabilidade do artigo 6º, V, do CDC.

Inaplicabilidade à Teoria da Onerosidade Excessiva

Não existe no nosso ordenamento jurídico a figura da impossibilidade puramente subjetiva, ou seja, não há previsão de obrigatoriedade das partes de se proceder à revisão contratual no caso de abalo patrimonial de qualquer das partes. Também não há determinação legal no sentido de que, diminuídos os custos de certa atividade econômica essa diminuição seja repassada aos consumidores. Tal fato nunca foi motivo de revisão contratual.

O simples fato de o país estar passando por uma crise econômica não é justificativa plausível para que o Estado interfira na composição de preços, determinando a aplicação de descontos lineares em situações distintas.  Além disso, nem todos os alunos e/ou seus responsáveis financeiros perderam renda.

É fato que o Direito atual não dá respostas precisas para a situação sem precedentes. Deve-se reconhecer, portanto, que o cenário atual pressupõe alguns sacrifícios para os dois polos de qualquer relação de consumo.

No caso em análise não houve alteração relevante dos custos dos serviços de educação e sua adaptação para prestação de forma remota não implica necessariamente em perda de valor, uma vez que é a única forma, neste momento, de se preservar a saúde de todos os envolvidos.

O STF, na ADI 2.5517, afirmou que a ideia da onerosidade excessiva ocorre quando o valor cobrado supera os custos do serviço prestado de modo que descaracteriza a relação de equivalência entre as partes.

Contudo, os órgãos de defesa do consumidor, ao determinarem a aplicação de descontos lineares a todos os contratos escolares, ignoram os custos dos serviços e querem impor a redução de preços com fundamento em presunção de que absolutamente todos os consumidores perderam renda, desequilibrando as relações contratuais, aplicando percentual sem qualquer lógica ou fundamento. Entendemos, portanto, que não é possível a aplicação da teoria da onerosidade excessiva às mensalidades escolares durante o período da pandemia.  

Da inexistência de alteração contratual unilateral

Segundo os órgãos de defesa do consumidor, a justificativa para aplicação de descontos lineares se baseia na ideia de que o serviço que está sendo prestado para os consumidores é distinto do originalmente contratado e que as Instituições de Ensino alteraram unilateralmente o modo de prestar seu serviço sem modificar o valor cobrado. Contudo, as escolas foram proibidas de prestar o serviço presencialmente pelo próprio Estado que agora quer afirmar que houve alteração unilateral do contrato.

Nessa situação, em que estavam completamente impossibilitadas de ministrar aulas presenciais, os órgãos responsáveis pela regulação da educação autorizaram que as aulas fossem realizadas de forma remota.

As Portarias 343/20, 345/20 e 376/20 do MEC permitiram que as Instituições de Ensino utilizassem recursos que permitem a interlocução com os docentes e apoio contínuo da equipe pedagógica.

Esta foi a única forma possível para que os serviços contratados continuassem a ser prestados, assim, não se pode dizer que houve alteração unilateral pela Instituição, pois não havia outra opção disponível, repita-se, em decorrência de situação causada por fato completamente fora do âmbito da vontade ou mesmo do controle das escolas.

As instituições de ensino têm arcado não somente com a manutenção do quadro acadêmico, como também com investimentos para a ampliação e manutenção tecnológica, de modo a possibilitar a continuidade do conteúdo, além de toda a sua conversão para as referências digitais, e para que não haja perda de aprendizagem para os alunos.

Conclusão

Dessa forma, a imposição de descontos lineares nas mensalidades escolares em decorrência da suspensão das atividades presenciais, seja por meio do Poder Executivo, seja pelo Legislativo ou pelo Judiciário, além de ser uma intervenção estatal indevida, que viola o princípio da livre iniciativa, também poderá gerar feitos econômicos maléficos a toda sociedade, gerando custos sociais imensuráveis à nação, sem causar a proteção almejada.

__________

1- PL 1119/20; PL 1108/20; PL 1163/20

2- Curso de Direito Administrativo. Rafael Carvalho Rezende de Oliveira – 6. ed. rev., atual. e ampli. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2018. Pág. 557.

3- RE 422941

4- TJMG 10000204489173002, TJMG 1.0000.20.454514-9/001, TJDF 07301167820208070000; TJDF 0730116-78.2020.8.07.0000

5- TJ-SC - AI: 50301373620208240000

7- STF - ADI-MC-QO: 2551 MG

Rogério Evangelista Santana
Assessor Jurídico no Senac em Minas. Graduado em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos, especialista em Advocacia Cível e Empreendedorismo pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Gestão de Pessoas pelo Centro Universitário UNA.

Bruna Noronha Enis
Advogada no Senac em Minas. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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