Nesta quarta-feira (3/3/21), espera-se que o Egrégio STF decida sobre a constitucionalidade do artigo 16 da lei 7.347/85 (LACP) à luz dos arts. 2º, 5º, XXXVII, LIII e LIV, 22, I, e 97 da Constituição Federal, no âmbito do RE 1.101.937-SP, Tema 1.075 de repercussão geral, da relatoria do min. Alexandre de Moraes.
Os operadores do direito e a doutrina esperam, há muito tempo, o posicionamento definitivo da suprema corte do nosso país sobre o assunto. O julgamento do tema em referência foi adiado inúmeras vezes.
Não são nenhuma novidade, para aqueles que se interessam pelo tema, as divergências a respeito da legalidade – abrangida, aqui, a constitucionalidade – e da interpretação do art. 16 da LACP.
Apesar das oscilações de entendimento em sede judicial, podemos dizer que, ao menos desde o julgamento do REsp 1.243.887/PR, submetido ao rito de julgamento de recursos repetitivos, o STJ afastou a interpretação literal do dispositivo, repudiando a limitação territorial da coisa julgada em causas coletivas.
Os desentendimentos em torno do tema não são à toa. O art. 16 da LACP, cuja redação original foi alterada pela lei 9.494/97,1 para atender interesses governamentais, como indica parcela relevante da doutrina, preceitua que a coisa julgada, produzida em ação civil pública, “fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência (...)”.
O grande problema da redação emprestada ao dispositivo, muito distante do seu texto original, é que seu objetivo não encontra amparo científico ou sistemático, tampouco vai ao encontro da nossa tradição normativa.
Tradicionalmente, na legislação processual civil brasileira, a coisa julgada vincula as partes, que participaram do processo ou que foram nele legal e legitimamente representadas, dentro dos limites da demanda.2 Em compasso com a teoria, o art. 472 do CPC/73 já dizia que a “sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada”. Por sua vez, o art. 506 do CPC/15 manteve a tradição, estabelecendo que a coisa julgada da sentença afetará as partes, em texto muito parecido com o da legislação precedente.
A sentença judicial, proferida por qualquer órgão investido de jurisdição, tem validade em todo o território nacional, embora suas consequências sejam arcadas, diretamente, pelas partes do litígio. Barbosa Moreira, em uma de suas muitas contribuições ao Direito Processual, destacou que os efeitos da sentença e a coisa julgada são fenômenos autônomos e não se confundem. Apesar disso, como consequência do princípio do contraditório, tanto os efeitos da sentença, como a coisa julgada, deverão ser suportados pelas partes.3
A coisa julgada, portanto, atinge as partes, legal e legitimamente representadas no processo, recaindo sobre o quanto discutido na causa. A pretensão de limitação da coisa julgada aos limites territoriais do órgão jurisdicional que julga a causa é estranha à tradição normativa brasileira.
Os lindes territoriais do órgão jurisdicional têm relevância para definição da competência para o julgamento da causa, a exemplo do que preveem os arts. 46 e seguintes do CPC e o art. 93 do CDC. A depender da situação concreta, será competente para julgamento da causa o órgão jurisdicional que atua na área de domicílio do réu, no local onde a obrigação tiver de ser cumprida ou no lugar onde praticado o ato ilícito ou provocado o dano.
A redação atual do art. 16 da LACP, portanto, criou uma verdadeira confusão no microssistema da tutela coletiva, criando distorções que tiveram repercussões práticas prejudiciais à tutela dos direitos e interesses coletivos.
Depreende-se do art. 81, parágrafo único, do CDC, que os direitos coletivos são divididos em difusos, coletivos (stricto sensu) e individuais homogêneos. As duas primeiras espécies de direitos são caracterizadas pelas notas da indivisibilidade, ou seja, pertencem ao grupo, não aos indivíduos que fazem parte dele, de forma que os benefícios ou lesões a tais direitos afetam todos. Já a última espécie trata de direitos divisíveis, com titulares identificáveis, mas que, pela origem comum e homogeneidade, admitem tratamento processual coletivizado. 4
Como indica a melhor doutrina, o sistema processual coletivo tem como fundamento a garantia do acesso à justiça no que diz respeito aos interesses difusos e coletivos stricto sensu, justamente porque os grupos detentores de tais interesses não possuem personalidade jurídica e capacidade processual autônomas. Por outro lado, a isonomia e economia processuais fundamentam a tutela coletivizada dos interesses individuais homogêneos, porque esta permite a solução de uma plêiade de litígios em um único processo, em virtude da origem em comum.5
Consequentemente, o art. 16 da LACP acaba criando condições, como a realidade demonstrou, para o tratamento diferenciado entre os titulares de direitos e interesses coletivos, os quais deveriam ter decisões judiciais padronizadas, aplicáveis de forma equânime para todo o grupo, categoria ou classe de pessoas. Enseja, consequentemente, que os efeitos da decisão, com limitação da coisa julgada aos limites geográficos do órgão julgador, atinjam apenas uma parcela do grupo, criando distinções ilegítimas ou não desejadas entre os seus integrantes, exatamente como ocorre – guardadas as devidas proporções - com a previsão do art. 2º-A da lei 9.494/97, já declarado constitucional pelo STF.6
Todavia, não se pode conceber que uma política pública, de amplitude nacional ou regional, tenha sua implementação limitada a uma localidade, em virtude dos lindes geográficos do órgão jurisdicional, tão somente porque uma comarca/seção judiciária foi contemplada com a distribuição de uma ação coletiva e outra, não. O mesmo raciocínio vale para as demais áreas da tutela coletiva, como as relações de consumo, a probidade administrativa e o direito ambiental. 7
Este tipo de distinção contraria não apenas a lógica, mas também as normas do microssistema da tutela coletiva. Pode-se dizer que a regra do art. 16 da LACP viola princípios aplicáveis ao microssistema coletivo.8 9 E, como defendido por muitos, os princípios prevalecem, quando em conflito com regras jurídicas, devido à sua superioridade normativa.10
Neste particular, assume grande relevância a postura metodológica que propõe a existência de um microssistema da tutela coletiva, caracterizado pela interação e interdependência de suas normas, as quais devem ser lidas de forma harmônica e coordenada, tendo como eixo central as regras do CDC e da LACP relativas ao tema.11
Diante da existência de um microssistema coletivo, natural concluir que qualquer exegese quanto à coisa julgada coletiva não pode desconsiderar o teor dos art. 93 e 103 do CDC, que, em confronto com o art. 16 da LACP, preveem regras mais lógicas, claras e adequadas, para o equacionamento dos problemas em torno do tema da coisa julgada coletiva.
Independentemente da discussão acerca da envergadura constitucional da questão,12 tudo leva a crer que o E. STF decidirá o mérito da constitucionalidade do art. 16 da LACP em breve, de modo que a nossa corte suprema não poderá deixar de considerar, no escrutínio da matéria sob o julgamento, as características dos interesses coletivos, da tutela coletivizada de direitos e do microssistema coletivo, e as consequências de sua decisão, sob pena de enfrentarmos notável retrocesso.
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1- Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
2- Pensa-se, aqui, no caso da legitimação extraordinária, que ocorre quando determinado sujeito é autorizado, expressamente, pela legislação. A guisa de exemplo, mencione-se o caso da alienação do direito ou coisa litigiosa no curso da demanda, que não altera a legitimidade das partes (art. 109, §3º, do CPC).
3- BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. In: Temas de Direito Processual, Terceira Série, São Paulo: Saraiva, 1984, p. 99-103.
4- Cf. Ada Pellegrini Grinover. In: et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2. p. 133-134.
5- Cf. Márcio Flávio Mafra Leal. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 17-21.
6- Dispositivo este declarado constitucional pelo STF no julgamento do RE 612.043 de relatoria do Min. Marco Aurélio. No referido julgamento, limitou-se a eficácia do dispositivo à “ação coletiva de rito ordinária” (art. 5º, XXI, da CF).
7-Cf. Mario Luiz Sarrubbo e Alexandre Alberto de Azevedo. Julgamento do tema 1.075 e risco de retrocesso na tutela de interesses coletivos. São Paulo, 24 de fevereiro de 2021.
8- Acesso à justiça, universalidade da jurisdição, participação e economia, princípios aplicáveis ao microssistema coletivo, como bem pontuado pela saudosa Ada Pellegrini Grinover (Direito Processual Coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (coord.).Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006. p. 302-308)
9- Princípios devem ser entendidos como normas definidoras de finalidades, estado ideal de coisas, cf. destaca Humberto Ávila. Teoria dos princípios. 17. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 95-97.
10- Cf. Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 958-960.
11- Cf. Ricardo de Barro Leonel. Manual do processo coletivo. 4. Ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 60.
12- Cf. Camilo Zufelato e Lillian Salgado. Limitação territorial da coisa julgada nas ações coletivas e precedentes de STF e STJ. Consultor Jurídico. São Paulo, 24 de fevereiro de 2021.
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ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 17. Ed. São Paulo: Malheiros, 2016. p. 95-97.
BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. In: . Temas de Direito Processual, Terceira Série, São Paulo: Saraiva, 1984, p. 99- 103.
GRINOVER, Ada Pellegrini. In: et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 2. p. 133-134.
. Direito Processual Coletivo. In: LUCON, Paulo Henrique dos Santos (coord.). Tutela Coletiva: 20 anos da Lei da Ação Civil Pública e do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, 15 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Atlas, 2006. p. 302- 308.
LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998. p. 17-21.
LEONEL, Ricardo de Barro. Manual do processo coletivo. 4. Ed. São Paulo: Malheiros, 2017. p. 60.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 27. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p. 958-960.
SARRUBBO, Mario Luiz; MAGALHAES JUNIOR, Alexandre Alberto de Azevedo. Julgamento do tema 1.075 e risco de retrocesso na tutela de interesses coletivos. São Paulo, 24 de fevereiro de 2021.
ZUFELATO, Camilo; SALGADO, Lillian. Limitação territorial da coisa julgada nas ações coletivas e precedentes de STF e STJ. São Paulo, 24 de fevereiro de 2021.