Migalhas de Peso

O julgamento do leading case “Testarossa” pelo TJ/UE

Lições sobre o uso genuíno de marcas antigas para elidir a caducidade.

3/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Introdução: ponderações sobre o instituto da caducidade

O instituto da propriedade, pautado como direito fundamental pela Constituição da República1, é comumente associado a bens imóveis ou móveis, materiais. No que diz respeito aos bens materiais, pode-se inferir que, ainda que o proprietário não confira o uso legítimo e contínuo, não haverá a perda de propriedade, salvo por poucas exceções legais, como eventual desapropriação, usucapião ou descumprimento da função social.2

Por outro lado, no contexto de bens imateriais, dentro do panorama da propriedade industrial, especialmente no que diz respeito às marcas, a lógica não é a mesma. Por disposição dos artigos 142, III3 e 1434 da Lei de Propriedade Industrial nº 9.279/1996 (LPI), a regra é que, caso não se inicie o uso da marca em até 5 anos a partir da data de concessão do registro, ou, se o seu uso tiver sido interrompido por igual período, o registro estará sujeito à extinção por caducidade, quando requerida por qualquer terceiro com legítimo interesse.

Assim, considerando ser o registro passível de prorrogação a cada 10 anos no país, o que, em tese, permite ao titular a manutenção infinita do seu registro, é que se verifica a relevância do instituto da caducidade, que possibilita terceiros interessados a requererem a extinção de determinado registro por falta de uso genuíno, hipótese em que o titular deverá apresentar provas demonstrando que houve sim o uso do sinal nos 5 anos pretéritos.

Analisando-se tal hipótese sob a perspectiva de bens de consumo assinalados por marcas conhecidas, produzidos no passado e não mais ofertados à sociedade em virtude de mudanças culturais, sociais ou mesmo evoluções tecnológicas, tem-se uma questão, no mínimo, curiosa, já que referidos bens, embora antigos, podem ainda estar em uso por serem duráveis ou por possuírem um rol de consumidores devotos.

Exemplificando, considere a produção de determinados modelos de veículos que, por conta de reestilizações pela indústria automobilística com o passar dos anos, deixaram de ser fabricados em algum momento entre os anos 1970 e 1990, mas que continuam em circulação e revendidos nos dias atuais, conhecidos inclusive como clássicos ou vintages. Questiona-se então, diante desta hipotética, mas comum situação: as marcas destes veículos, não mais produzidos hoje como costumavam ser em décadas passadas, mas que ainda permanecem em circulação, possuem peças manufaturadas e são revendidos, estão sujeitas à caducidade?

No Brasil ainda não temos uma resposta final, mas o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ/UE), ao se deparar com esta questão, entendeu que não.5

O caso “Testarossa” e os fatos por detrás do leading case internacional

A controvérsia central deste caso surgiu inicialmente na Alemanha, em decorrência de um pedido da Autec AG para registrar a marca “Testa Rossa”, visando assinalar bicicletas elétricas e outros produtos.

A Ferrari, por ser titular de dois registros para a marca “Testarossa”, na classe 12, conforme a Classificação Internacional de Nice, para assinalar especificamente veículos e peças correlatas6, concedidos nos anos de 1987 e 1990 pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) e Escritório de Marcas e Patentes da Alemanha (DPMA), apresentou oposição administrativa assim que tomou conhecimento do pedido de registro em referência por parte da Autec AG.

Em contrapartida, a Autec AG requereu a caducidade de ambos os registros em comento, estendendo a disputa ao Tribunal Regional de Düsseldorf, com o intuito de obter judicialmente a extinção dos registros para a marca “Testarrosa” detidos pela Ferrari.

A Corte de Düsseldorf, ao julgar a demanda, considerou que a Ferrari não fez prova de uso genuíno de sua marca, por apenas ter fabricado tal modelo entre 1984 e 1991, e posteriormente em 1996, com os sucessores 512 TR e F512 M, sem criar nenhum novo modelo para comercialização, salvo em 2014, com o exemplar do Ferrari F12 TRS, em edição única.

Assim, segundo o §26 (1) e §49 da Lei de Marcas da Alemanha (Gesetz über den Schutz von Marken und sonstigen Kennzeichen), a fabricação do veículo nas condições apresentadas não seria suficiente para manutenção do registro da marca, pois não comprovaria o seu uso genuíno, durante o período de investigação de 5 anos.

Por não concordar com a decisão, a Ferrari recorreu ao TJUE, sob os processos C-720/18 e C-721/18, alegando que teria sim comprovado o uso genuíno de suas marcas, já que entre os anos de 2011 e 2016, demonstrou ter vendido peças sobressalentes dos veículos “Testarossa”, gerando inclusive um volume de vendas no montante aproximado de 17 mil euros. 

O julgamento pelo TJ/UE

Ao julgar este recurso, formando um leading case europeu, o TJ/UE reformou a decisão anterior, consignando que a Ferrari poderia ter o seu registro mantido com base na venda das peças e na revenda do veículo, já que foram observadas algumas questões relevantes que justificaram a manutenção da marca “Testarrosa”.

A primeira questão a se destacar, é que foi considerado o uso genuíno, por estar a marca empregada em conformidade com a sua função essencial, que é assegurar a identidade de origem dos produtos que assinala, dentro das especificações registradas anteriormente em sua Classe.

Assim, esclareceu o Tribunal que a circunstância da marca não incidir sobre novos veículos ofertados ao mercado, mas apenas sobre peças específicas, seria uma demonstração do uso genuíno, sobretudo porque as peças sobressalentes fazem parte da composição ou da estrutura dos carros esportes de luxo, ou seja, pertencem à mesma subcategoria, dentro da mesma Classe de produtos. Mais que isso, entendeu suficiente como forma de prova o pequeno volume de vendas demonstrado, reconhecendo que a marca “Testarossa” identificava produtos de luxo e destinados a um mercado específico, sendo, em virtude disso, justificável o volume de vendas aproximado de 17 mil euros no período de investigação de 5 anos.

Ademais, observou que um consumidor que pretende adquirir um produto de um mercado muito específico, como por exemplo o de veículos de luxo, certamente associará referida marca com quaisquer outros produtos ou serviços relacionados ao mesmo segmento, por ser um nicho muito característico. Portanto, a prova de uso genuíno da marca para apenas alguns dos produtos ou serviços pertencentes a tal categoria, desde que estejam no rol de especificações da marca registrada, como a Ferrari fez com a marca “Testarossa”, bastaria para elidir a caducidade dos registros.7

Na mesma decisão, o TJUE ponderou a respeito da revenda de produtos usados como meio de prova para elidir a caducidade e concluiu que, se tal revenda ocorrer por parte de terceiros, então não constituiria prova hábil a demonstrar o uso genuíno da marca, em especial porque a recomercialização de produtos antigos pode recair na teoria da exaustão de direito (a impossibilidade de o titular impedir a livre circulação de um bem licitamente posto no comércio). Neste sentido, em um posicionamento inédito, a partir de uma interpretação teleológica do artigo 12 (1) da Diretiva 2008/95, julgou que, se o próprio titular revender o produto perante o mercado, tal conduta é considerada uma forma de prova para caracterizar o uso genuíno, por assegurar a função essencial da marca, garantindo ao consumidor a identificação da procedência dos produtos.

A tese é inovadora do ponto de vista jurídico, já que titulares de marcas antigas, mesmo não mais produzindo bens, por certo poderiam sustentar a manutenção do registro, caso revendam seus produtos readquiridos ou fabriquem e comercializem peças sobressalentes, ao menos com base no julgamento realizado em território estrangeiro, que poderá servir como um precedente para ser estudado no Brasil, de modo a futuramente influenciar decisões sobre caducidade. 

Conclusão

Do leading case em referência, é possível extrair alguns elementos que podem contribuir para melhor análise da caducidade no direito pátrio, considerando ser o instituto extremamente importante, seja para evitar a manutenção infinita da propriedade para quem é titular do registro, mas não faz o uso efetivo da marca, seja para garantir que novos players possam dar novo uso a expressões que são objeto de marcas registradas, mas que se encontram em desuso, seja para assegurar a manutenção de registros de marcas antigas por quem faz o uso genuíno, efetivamente atribuindo, em todas as hipóteses, a função social à propriedade industrial. 

Vale a ponderação no sentido de que, ainda que tenha o TJUE reconhecido a revenda de produtos usados por parte do titular da marca como forma de comprovar o seu uso genuíno, constituindo um precedente inovador, a lição que fica é a de que as provas de uso não podem ser analisadas de forma isolada, ou seja, para cada registro de marca objeto de caducidade deve-se exigir diferentes formas e volumes de provas, a fim de aferir a comprovação do uso genuíno.

Neste sentido, demonstrou o TJUE a importância de avaliar o volume de vendas comprovado pelo titular em cotejo com os produtos assinalados pelo registro, uma vez que, a depender da categoria de produtos, diferentes montantes de vendas devem ser considerados. No leading case em análise, a marca “Testarossa” tratava de produtos exclusivos, de luxo e destinados a um público com alto poder aquisitivo e altamente especializado, razão pela qual entendeu o Tribunal que o pequeno volume de vendas comprovado bastaria para elidir a caducidade. Tal entendimento, porém, poderia não ser aplicável para produtos destinados ao consumo de massa, sobre os quais se deveria exigir um volume de vendas maior.

Por essa razão, não obstante atualmente entenda o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) que “qualquer comprovação durante os 5 (cinco) anos do período de investigação que demonstre o uso da marca elidirá a caducidade, independente da quantidade de provas apresentadas”8, espera-se que os critérios adotados pelo TJ/UE no julgamento do caso “Testarrosa” atravessem o oceano Atlântico e cheguem ao território brasileiro, fazendo com que o INPI reflita sobre o seu atual posicionamento e passe a analisar os requerimentos de caducidade de forma mais minuciosa e de acordo com os fatos de cada caso em análise, buscando cada vez mais decisões acertadas e, principalmente, fundamentadas, evitando-se, assim, a judicialização do tema. 

___________

1 Artigos 5º, caput, XXII e XXIX e 170, II da CRFB.

2 Artigos 5º, XXIII 183 e 191 da CRFB e 1.237 e seguintes do Código Civil.

3 Art. 142. O registro da marca extingue-se: III - pela caducidade.

4 Art. 143 - Caducará o registro, a requerimento de qualquer pessoa com legítimo interesse se, decorridos 5 (cinco) anos da sua concessão, na data do requerimento: I - o uso da marca não tiver sido iniciado no Brasil; ou II - o uso da marca tiver sido interrompido por mais de 5 (cinco) anos consecutivos, ou se, no mesmo prazo, a marca tiver sido usada com modificação que implique alteração de seu caráter distintivo original, tal como constante do certificado de registro.

5 Julgamento integral disponível em: clique aqui.

6 A especificação detalhada se trata de “veículos; aparelhos de locomoção por terra, ar ou água, em especial automóveis e suas peças” e “veículos terrestres, aeronaves e veículos aquáticos e suas peças; motores para veículos terrestres; componentes do carro, ou seja, barras de reboque, porta-bagagens, porta-esqui, guarda-lamas, correntes para neve, defletores de ar, encostos de cabeça, cintos de segurança, cadeiras de segurança para crianças”.

7 Por analogia, consideraram o precedente do Acórdão de 16 de julho de 2020, ACTC/EUIPO, nº C-714/18 P, EU:C:2020:573, nº 51.

8 Manual de Marcas do INPI. Disponível em clique aqui.

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Eduardo Helaehil
Advogado do Helaehil Advogados. Especialista em Propriedade Intelectual e Novas Tecnologias pela FGV São Paulo.

Felipe Lisboa Meiler
Advogado do Salusse, Marangoni, Parente e Jabur Advogados. Especialista em Propriedade Intelectual e Novas Negócios pela FGV São Paulo.

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