Com a reforma da lei 11.101/05 (Lei de Recuperação e Falência de Empresa – LRFE), foi introduzida uma vedação (e uma tipificação penal por consequência) para distribuição de lucros da sociedade que estiver em processo de recuperação judicial até a homologação do seu plano (art. 6º-A e art. 168).
A proibição, tal como escrita, representa muito mais uma necessidade de discurso para opinião pública, no sentido que os sócios deveriam se sacrificar momentaneamente em prol dos credores, do que propriamente uma efetividade em si, com o objetivo de capitalizar a atividade empresarial. O artigo simplesmente veda a distribuição de lucros, porém nada fala sobre a necessidade de se verter a parcela de lucro não distribuída para o soerguimento da empresa e/ou pagamento de eventuais credores (sejam concursais ou extraconcursais). Simplesmente, na sua literalidade, veda que se realize a distribuição de lucro até a homologação do plano.
Assim, aquilo que até poderia representar uma parcela de sacrifício com alocação de recursos para pagamento e/ou meios de reestruturação fica totalmente ilusório, apenas no discurso de dizer para a opinião pública que não são apenas os credores que carregam o ônus da crise da sociedade empresária, mas também os seus sócios.
Além da pouca efetividade no procedimento recuperatório, a vedação de distribuição de lucros é conflitante com as normas constitucionais de propriedade e de livre iniciativa. A reforma da lei impôs uma verdadeira sanção (de não receber lucros) para pessoa distinta daquela que se encontra em processo de recuperação. É incrível que uma lei empresarial negue, nos efeitos de um processo recuperatório, a separação entre indivíduo (sócio) e pessoa jurídica (tão custosa para o direito empresarial e tão necessária à segurança jurídica), querendo de forma antecipada e apressada, retirar o principal direito do sócio em perceber lucros.
Ao agir assim e sem emprestar à vedação uma função social (que poderia até existir, desde que houvesse uma determinação de verter a parcela do lucro para o pagamento ou incremento da atividade em crise), infringe diretamente o direito constitucional de propriedade. A Constituição Federal, enraizada na preocupação da evolução social, impõe que a propriedade privada deverá atender a sua função social. Mas isso não significa ignorá-la, ou, pior ainda, retirar o direito sem explicitação da sua necessidade ou objetivo. Da forma como está expresso no texto vigente da LRFE, não há qualquer destinação social para o lucro (de propriedade do sócio). Simplesmente, existe uma vedação, sem qualquer destinação vinculada para utilidade do soerguimento da empresa e para pagamento dos seus credores.
Ainda que existisse literalmente uma destinação para aquele lucro não distribuído, não poderia a lei criar uma vedação total, sob pena de desestimular por completo a livre iniciativa e o mínimo de segurança (estabilidade) do mercado, infringindo novamente um princípio constitucional (art. 170 da CF/88). Poderia sim, a exemplo do que ocorre na Lei de Sociedades por Ações e em muitos estatutos de Sociedades Anônimas estipular uma distribuição percentual do lucro existente (que poderia ser abaixo do que ocorreria se a empresa estivesse em condições jurídicas normais) com a previsão específica de que o lucro não distribuído seria alocado ou para reserva de pagamento dos credores no plano ou até mesmo para credores extraconcursais garantindo a manutenção das atividades empresariais durante o processo de recuperação (que se sabe é o momento mais tormentoso e crítico, até pela possibilidade mais próxima da empresa ter convolada o seu estado juridico para a falência). Se criaria assim um Fundo Especial de lucro não distribuído para os objetivos do processo recuperatório.
Além do mais, a vedação total de distribuição de lucros contrasta com o mínimo existencial de dignidade da pessoa humana. É de se diferenciar situações em que os sócios de determinada empresa (normalmente de pequenas e médias), possuem com a distribuição de lucros o meio da sua sobrevivência com aqueles sócios apenas investidores de larga escala. A situação no primeiro caso é ainda mais gravosa para se manter a vedação total de distribuição de lucro. Enganam-se aqueles que, por vezes, atrelados a uma visão estritamente acadêmica, acreditam que se vive de pró-labore (comumente estabelecido em piso mínimo nas pequenas e médias empresas), com destinação vinculada ainda para aqueles que exercem a administração. A uma porque nem a existência desse pró-labore é imperativo e a duas é que normalmente se estabelece um valor mínimo, eis que dele decorre carga tributária. Seria, uma hipocrisia ventilar a possibilidade de se aumentar o pró-labore diante da vedação de distribuição de lucros. Ora, o dinheiro que não seria guardado (ou vertido para sua função social), somente mudaria de rubrica contábil e, portanto, seria apenas um triste mecanismo de "jeitinho" para escapar da vedação. Não se pode admitir ser essa a solução. Ainda assim, o pró-labore estabelecido em contrato/estatuto é aquele destinado para quem exerce funções de gestão na empresa, não abarcando todo e qualquer tipo de sócio. É comum em pequenas e médias sociedades empresárias a inexistência da própria figura do pró-labore onde os sócios, todos atuantes, sobrevivem através do lucro da empresa. Dizer que eles serão privados (sob pena de cometimento de crime) de receberem lucros durante o processo de recuperação judicial é querer estimulá-los, diante de um cenário de crise econômica, a procurar outras soluções, que não trarão qualquer segurança jurídica e muitas vezes redundará numa dissolução irregular (com prejuízo a todos, inclusive aos credores).
Para sociedades de grande porte, listadas em bolsa de valores, a vedação também é um estímulo ao desinteresse, insegurança e verdadeira fuga dos acionistas na empresa em crise. Se estimula uma desvalorização das ações antes mesmo da empresa decidir pela recuperação judicial. Entrará no processo, certamente, ainda mais fragilizada. Não considerar o interesse privado do acionista tipicamente rendeiro, que investe na empresa na perspectiva de rentabilizar o seu investimento é viver num mundo de fantasia. O acionista rendeiro movido sim pelo seu próprio interesse (e de forma legitima), acaba por viabilizar que a empresa, como organismo autônomo, possa cumprir o seu papel social (gerando empregos, crédito e pagando tributos). O próprio art. 47 da LRFE ao mencionar os objetivos de uma recuperação judicial, parte da principiologia desse esquema de interesses individuais que fluem para um resultado coletivo (e é esse resultado coletivo alcançado que promove o princípio da Preservação da Empresa). A busca, portanto, é pelo equilíbrio da equação (interesses privados x finalidade coletiva)
Uma outra situação advinda da infeliz vedação de distribuição de lucros, é aguçar o espírito de transgressor, de manobra. Ou seja, se esvazia a reserva de lucros existente na empresa antes de distribuição a recuperação judicial, ou ainda, se distribui juros sobre capital próprio para que não se enquadre no tipo penal (para assim distinguir da "distribuição de lucros"). Veja-se que nestes casos, não se estaria atingido, de nenhuma parte, a função social pretendida (e não escrita na norma), porém infelizmente, deste modo, se estaria cumprindo a determinação legal. O pior aspecto de uma norma flagrantemente inconstitucional é o afloramento do sentimento transgressor e a dominação da hipocrisia nas relações jurídicas.
É necessário que se dê ao art. 6º-A uma interpretação condizente com a preocupação constitucional, especialmente prevista no art. 170 da CF/88. Se a ideia é estimular a livre-iniciativa sem descuidar da necessidade de se conferir à propriedade, a sua função social, vedações e/ou restrições devem vir acompanhadas de destinações, de objetivos. Ou seja, à redação do dispositivo, deve-se depreender o raciocínio de que a sua observância é para se garantir uma função social ao lucro não distribuído. Porém, de outro lado, equilibrando a equação, não se pode desconsiderar o direito de recebimento, ao menos de parte do lucro, aos sócios, até por questões de sobrevivência e de preservação do interesse na livre iniciativa, garantidos pela constituição.
Para se conferir a interpretação constitucional correta, sugere-se ao magistrado, quando deferir o processamento da recuperação judicial, estipular qual o percentual de distribuição de lucros deve ser retida e explicitar que o valor deverá ser utilizado necessariamente na manutenção das atividades da empresa e/ou no pagamento aos credores, de modo inclusive que não dê margem para simplesmente rentabilizar o lucro não distribuído no período do processo (até a aprovação do plano) para, posteriormente, simplesmente se distribuir todo o lucro apurado no período. Deve-se permitir, igualmente que o próprio devedor, em pedido de tutela de urgência, requeira a autorização da distribuição de parte do lucro e que seja dado ao restante a devida destinação social.
Uma interpretação em sentido contrário (pela literalidade do que está escrito) é simplesmente fazer do dispositivo uma letra morta, sem qualquer efetividade e pior, transparecer o intuito da norma circunscrito ao âmbito populista e político (no seu pior sentido) do que propriamente técnico e de estímulo ao esforço para superação do estado de crise.