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Direito ao esquecimento e a decisão do STF no RE 1.010.606/RJ

O STF decide, em fevereiro de 2021, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.

1/3/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O direito ao esquecimento, em fevereiro de 2021, foi pauta dos noticiários jurídicos bem como objeto de comentários de juristas em todo o Brasil. E não é para menos, o assunto é relevantíssimo: o STF decidiu, no RE 1.010.606/RJ1, por maioria de votos, que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.

O tema possui fundamento na Constituição Federal e é também tratado pelo Código Civil, além de possuir aspectos práticos importantes, o que explica toda a comoção com o mencionado julgamento. O direito ao esquecimento traz consigo inúmeros princípios e direitos essenciais ao indivíduo e à coletividade. Sob a névoa do tema, de uma forma bem simples, podemos dizer que de um lado temos: o direito à liberdade de expressão e comunicação, proibição de censura, direito de comunicação da imprensa. De outro lado, também com gigantesca importância, temos a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana expressada principalmente no resguardo da inviolabilidade da personalidade, nos direitos à imagem, à honra, à vida privada e à intimidade. É um tema sensível que traz à tona direitos individuais e coletivos importantes, em ambos os lados.

Em que consiste o direito ao esquecimento?

O direito ao esquecimento origina-se no Direito Penal. Trata-se da garantia concedida ao apenado, após cumprida sua sentença perante o Estado, de não mais carregar o rótulo de "infrator", o que dificultaria sua recolocação na sociedade2.

Trazendo para a esfera cível, na sociedade que até bem pouco tempo conhecíamos, o simples transcurso do tempo ficava encarregado de apagar fatos ocorridos. Contudo, como bem sabemos, a facilidade que hoje em dia possuímos com o acesso à internet, ferramenta de buscas e arquivos on-line, trazem uma profunda alteração na forma de comunicação e na memória coletiva, e, principalmente, na capacidade de retomada de algum episódio, ao ponto de "qualquer deslize" ficar para sempre registrado e poder ser exposto a qualquer momento3. A necessidade de estabelecer regras para o controle sobre as informações do indivíduo se faz fundamental em razão da moderna expansão tecnológica4. Eis aqui a relevância do tema.

Defende-se, por meio do direito ao esquecimento, o poder de impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos, licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação. Consiste no direito de "ser deixado em paz", de impedir a divulgação de informações não contemporâneas e que possam causar a pessoa envolvida diversos transtornos e constrangimentos.

Nesse contexto, é importante ressaltar que falamos de: a. fatos verídicos – obtidos e divulgados licitamente. b. que ocorreram há muito tempo.

Embora muito debatido, a doutrina aponta a falta de clareza com relação ao conteúdo do direito ao esquecimento, bem como a ausência de limites e critérios para verificação do seu reconhecimento no caso concreto5.

Direitos fundamentais que entram em conflito

O direito ao esquecimento é tão polêmico justamente pela natureza dos direitos fundamentais que coloca frente a frente.

Com previsão constitucional6, de um lado temos a liberdade de expressão, de comunicação, a liberdade de imprensa e a proibição da censura. Sabe-se, inclusive, que a liberdade de expressão é essencial "para o pleno exercício da democracia", sendo um de seus valores fundamentais, devendo sua restrição ocorrer em situações excepcionais7.

Em contraponto, e a favor do direito ao esquecimento, trazemos os direitos da personalidade, com fundamento constitucional e civil,  ancorados no fundamento da dignidade da pessoa humana e na proteção dos direitos da personalidade, dentre eles a proteção do nome, da vida privada da honra e da intimidade. A privacidade, em simples palavras, assegura que cada indivíduo é dono de um espaço particular, possuindo o direito de manter esse espaço afastado da curiosidade alheia8. A proteção dos direitos da personalidade faz parte da própria proteção da condição humana9.

Notório é que, portanto, lidamos com direitos fundamentais do nosso ordenamento jurídico, previstos na constituição, e de singular importância coletiva e individual. Ante a existência de conflito entre direitos fundamentais: "liberdade de expressão x direitos da personalidade", é que se faz necessária a ponderação para verificar-se qual deverá "ceder" na análise de uma situação concreta.

O caso concreto analisado pelo STF em fevereiro de 2021

O caso analisado pelo STF10 tem origem em um programa veiculado pela TV Globo, o "Linha Direta". Em um episódio específico, veiculado em 2004, o programa apresentou dramatização buscando reconstituir o trágico caso da menina Aída Curi, que foi brutalmente assassinada em 1958. A família buscou a justiça pretendendo reparação de danos morais, materiais e à imagem decorrentes da exibição do programa, aspirando o reconhecimento do direito ao esquecimento da tragédia familiar que os assolou. O pedido foi indeferido em primeira e segunda instância. O voto do relator min. Dias Toffoli menciona expressamente que, em razão os graves casos de feminicídio no país, crimes como esses "não podem e não devem ser esquecidos".  

A tese, de repercussão geral, firmada no julgamento do STF foi a seguinte:

"É incompatível com a Constituição Federal a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como o poder de obstar, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social – analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais, especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral, e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

Dessa forma o STF decidiu que, como regra geral, a Constituição Federal é contrária a ideia de um direito ao esquecimento – lembrem-se que estamos falando aqui de fatos verídicos, licitamente obtidos e publicados. Contudo, e essa ressalva é muito importante, eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão devem ser analisados no caso concreto, levando-se em consideração a proteção à honra, à imagem e a vida privada.

Assim, ainda que o direito ao esquecimento não tenha sido reconhecido como um direito geral e abstrato, cabe expressamente a análise do caso concreto para evitar excessos ou abusos.

Devemos "esquecer" o direito ao esquecimento após a decisão do STF?

A regra geral continua sendo pela liberdade de expressão para fatos lícitos obtidos e divulgados licitamente, ainda que se retomem fatos passados, aliás, não poderia ser diferente em respeito à memória histórica coletiva. A ressalva incluída no julgamento, contudo, mantém a possibilidade da análise do caso concreto a fim de evitar excessos ou abusos. Para avaliação de eventuais abusos, dentre outros critérios, é imprescindível analisar a relevância pública e social da informação. Deve-se indagar: a informação mais ofende e apenas fomenta a curiosidade alheia ou mais informa, conscientiza e possui papel relevante? Cuida-se aqui, portanto, para não confundir interesse público com a mera curiosidade.

Objetivamente, a violação do direito à privacidade, através da divulgação não autorizada bem como a intromissão na privacidade de alguém, enseja ao interessado o direito de pleitear dano moral / material, gerando o dever de indenizar11. Isso, por óbvio, não fica alterado.

Apenas para traçar um paralelo, mencionamos a ADI 4.815, outra ocasião em que o STF privilegiou a liberdade de expressão e imprensa, em detrimento da proteção da privacidade, ressalvando, contudo, a possibilidade de controle concreto para reparação de abusos. O julgado afastou a exigência de autorização prévia para a publicação de biografias "não autorizadas", levando em consideração o caráter de investigação histórica na narrativa da vida de uma pessoa pública, restando a quem se sentir prejudicado o direito de pleitear em juízo a análise do caso concreto.

Considerações finais

O tema envolve assuntos complexos. De um lado temos a liberdade de expressão, o direito de imprensa, o direito à informação. De outro lado temos a proteção à vida privada, à intimidade, à dignidade da pessoa humana, à honra. São valores igualmente importantes ao ordenamento jurídico, à sociedade como um todo e aos indivíduos particularmente. Quando estamos diante desse tipo de conflito utilizamos da ponderação para resolvê-lo. Assim, apenas a análise do caso concreto pode indicar o que irá prevalecer.

O STF decidiu que o direito ao esquecimento não pode ser utilizado de forma abstrata para proibir a veiculação de fatos verdadeiros, obtidos de forma lícita, após a passagem de um longo período de tempo. Essa é a regra geral. Todavia, caso alguém seja vítima de abusos poderá recorrer ao Poder Judiciário que fará a análise do caso concreto para compatibilizar o exercício do direito à liberdade de expressão e imprensa com outros direitos importantes, como a intimidade e a vida privada.

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1 RE 1.010.606/RJ. Tema 786 - Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares. Acesso em 16/2/2021.
2 MACHADO, José Eduardo Marcondes. O direito ao esquecimento e os direitos da personalidade. In. Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. Coord. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura. Vol 1. P. 245 – 284. P. 249.
3 MACHADO, José Eduardo Marcondes. Op. Cit. p. 249.
4 EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. ACIOLI, Bruno de Lima. Privacidade e os desafios de sua compreensão contemporânea: do direito de ser deixado em paz ao direito ao esquecimento. In. Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Coord. Gustavo Tepedino e Joyceane Bezerra de Menezes. Belo Horizonte: Fórum, 2019. p. 160.
5 FRITZ, Karina Nunes. Direito ao esquecimento não é absoluto, diz Bundesgerichtshof. Migalhas. Publicado em 16 de fevereiro de 2021. Acesso em 16/02/2021.
6 Constituição Federal, art. 5º, incisos IV, IX e XIV.
7 POMPEU, Gina Vidal Marcílio. POMPEU, Inês Mota Randal. Liberdade de expressão e informação em face dos direitos da personalidade: análise com base na ADI n 4.815. . In. Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Coord. Gustavo Tepedino e Joyceane Bezerra de Menezes. Belo Horizonte: Fórum, 2019. P. 270.
8 POMPEU, Gina Vidal Marcílio. POMPEU, Inês Mota Randal. Op. Cit. p. 274
9 Idem.
10 RE 1.010.606/RJ. Tema 786 - Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares. Acesso em 16/02/2021.
11 BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. Coleção Prof. Agostinho Alvim / coord. Renan Lotufo. P.162.

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BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Disponibilidade dos direitos da personalidade e autonomia privada. São Paulo: Saraiva, 2005. Coleção Prof. Agostinho Alvim / coord. Renan Lotufo.
EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. ACIOLI, Bruno de Lima. Privacidade e os desafios de sua compreensão contemporânea: do direito de ser deixado em paz ao direito ao esquecimento. In. Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Coord. Gustavo Tepedino e Joyceane Bezerra de Menezes. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
FRITZ, Karina Nunes. Direito ao esquecimento não é absoluto, diz Bundesgerichtshof. Migalhas. Publicado em 16 de fevereiro de 2021. Acesso em 16/2/2021.
MACHADO, José Eduardo Marcondes. O direito ao esquecimento e os direitos da personalidade. In. Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codidicado no Brasil. Coord. Alexandre Dartanhan de Mello Guerra. São Paulo: Escola Paulista da Magistratura. Vol 1. P. 245 – 284.
POMPEU, Gina Vidal Marcílio. POMPEU, Inês Mota Randal. Liberdade de expressão e informação em face dos direitos da personalidade: análise com base na ADI n 4.815. In. Autonomia privada, liberdade existencial e direitos fundamentais. Coord. Gustavo Tepedino e Joyceane Bezerra de Menezes. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

 

Alina de Toledo Rossi
Advogada. Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Mediadora. Professora universitária. Professora convidada em cursos de pós-graduação.

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