Há quase 25 anos discute-se a questão da pretensa limitação da eficácia territorial das decisões em processo coletivo. O impasse interpretativo tem afetado o adequado emprego das ações coletivas – e talvez seja um dos responsáveis (ainda que não o principal) pelo relativo ocaso do processo coletivo brasileiro. A perspectiva é de que agora a controvérsia venha a ser enfrentada pelo STF no julgamento do RE 1.101.937/SP, em regime de repercussão geral (Tema 1075). O julgamento, que estava previsto para o último dia 25/2, foi adiado para o próximo 3/3.
Propus-me a enfrentar o problema em texto publicado em 2004 (“Limites territoriais da eficácia das decisões no processo coletivo”, em Migalhas, 18/10/04 –). Ora o retomo, com as necessárias atualizações. Desde já adianto minha conclusão – de resto, expressa no título desta nota: não é um caso de “ou tudo ou nada”; a questão comporta e exige interpretação conforme à Constituição.
A origem da questão está em duas regras atinentes ao processo coletivo instituídas mediante medida provisória, quando essa espécie legislativa ainda podia versar sobre direito processual. Trata-se das normas do art. 16 da Lei 7.347/1985, na redação que lhe deu a lei 9.494/97 (fruto da MP 1.570/77), e do art. 2º-A da lei 9.494/97, acrescido pela medida provisória 2.180-35/01.
Dois aspectos contribuem para a confusão reinante.
Primeiro: tais dispositivos são mal redigidos e quem os instituiu provavelmente pretendia mesmo impor severas restrições ao processo coletivo. Mas eles têm como ser adequadamente interpretados, de modo compatível com os valores constitucionais.
É nesse ponto que se põe o segundo aspecto problemático. Parte da doutrina e algumas decisões judiciais têm optado por interpretá-los de modo a desconsiderar por completo sua inserção sistemática. No mais das vezes, fazem-no para atingir um resultado absurdo e, assim, poder tachar tais normas de inconstitucionais e consequentemente desprezar por completo sua aplicação. Por óbvio, isso é tão ilegítimo quanto a intenção inicial – e malsucedida – do “legislador”.
Em suma, radicais defensores e empenhados detratores do processo coletivo interpretam as regras em questão da pior maneira possível – os primeiros na tentativa de aniquilá-las; os segundos, na pretensão de aniquilar o próprio processo coletivo...
O art. 16 da Lei 7.347/1985 (na redação que lhe deu a lei 9.494/97) pretensamente restringe a “coisa julgada” (sic) aos “limites da competência territorial do órgão prolator”. O art. 2º-A da lei 9.494/97 (acrescido pela MP 2.180-35/01) prevê que a sentença prolatada em “ação de caráter coletivo” proposta por entidade associativa na defesa dos interesses e direitos de seus associados abrangerá apenas os “substituídos” (sic) domiciliados, na data de propositura da ação, “no âmbito da competência territorial do órgão prolator”.
A rigor, ambas as regras dizem respeito à eficácia da sentença, e não diretamente à coisa julgada. Ou seja, tratam dos limites em que a decisão é apta a produzir efeitos – e não propriamente da sua imutabilidade, a coisa julgada. Apenas indiretamente a questão concerne à coisa julgada, a qual incide sobre a eficácia da sentença e operará nos limites em que essa se ponha.
A interpretação radical e inadequada que por vezes se dá a essas regras é no sentido de que elas estariam impedindo que uma decisão em ação coletiva pudesse produzir efeitos para além da circunscrição territorial do juízo prolator (a “comarca” estadual ou “subseção” federal). De fato, se fosse esse o sentido das regras, estaria dizimado o instituto da ação coletiva. E, então, tais regras seriam irremediavelmente inconstitucionais, sobretudo por violar a garantia do acesso à justiça (considerada inclusive a “cláusula de proibição de retrocesso”, que veda a supressão do processo coletivo).
Mas não é esse o sentido razoável de tais normas – que aludem à “competência territorial”, conceito processual que não se confunde com os limites territoriais da comarca ou subseção.
As duas regras devem ser interpretadas em harmonia com o art. 93 do Código do Consumidor (CDC), que define o “âmbito de competência territorial” do órgão prolator: as ações de abrangência local devem ser propostas no foro do lugar onde ocorreu o “dano” (inc. I); as de abrangência regional ou nacional, no foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal (inc. II). Trata-se de disposição aplicável a todas as ações de caráter coletivo (cf. art. 21 da lei 7.347/85 e CDC, art. 90). Tal regra, contida no CDC desde sua origem, jamais teve sua legitimidade posta em dúvida. Bem o contrário, é extremamente razoável, ao fixar parâmetros mínimos de competência para processamento da ação coletiva. A interpretação desse dispositivo reclama dois esclarecimentos.
A parte inicial do caput do art. 93 do CDC deixa “ressalvada a competência da Justiça Federal”. Mas isso não significa que as regras ali contidas não se apliquem à Justiça Federal. Quer-se apenas indicar que tais regras não se prestam a autorizar a tramitação na Justiça Estadual do processo que envolva interesse federal, nas localidades que não sejam sedes de varas federais. Lembre-se que, quando editado o CDC, o art. 109, § 3º, parte final, da Constituição permitia que a lei atribuísse amplamente tal competência ao juiz estadual (o que se alterou com a EC 103/19) – e nessa linha vinha sendo interpretado o art. 2º da lei 7.347, que aludia apenas ao foro do local do dano como competente para a ação civil pública. O Superior Tribunal de Justiça chegou a editar Súmula nesse sentido (nº 183), posteriormente cancelada (STJ, ED no CC 27.676) em vista da rejeição dessa interpretação pelo STF (STF, RE 228.955). Foi para evitar que novamente se incidisse em tal equívoco interpretativo que o art. 93 do Código do Consumidor ressalvou “a competência da Justiça Federal”. Mas é apenas essa a finalidade da ressalva. Não faria sentido supor que, quanto ao mais, não se aplicariam aos processos da Justiça Federal as regras ali contidas.
A segunda questão relevante na interpretação do art. 93 do CDC consiste em saber se, no seu inciso II, a competência para ações de abrangência nacional e de abrangência regional que ultrapasse um Estado é atribuída indistintamente ao foro do Distrito Federal e ao de capitais de Estado ou se, nessas hipóteses, a competência é apenas do Distrito Federal, com o foro de capital de Estado sendo competente apenas para ações de abrangência regional limitadas ao Estado. A esse respeito, tem prevalecido no STJ o entendimento de que, para as ações de abrangência nacional ou regional que vá além de um único Estado, é competente não apenas o foro do Distrito Federal, como também o de qualquer capital de Estado (CC 17.533, 2ª S., rel. Min. C. A. Menezes Direito, j. 13.09.2000, DJU 30.10.2000; CC 26.842, 2ª S., rel. Min. W. Zveiter, j. 10.10.2001, DJU 05.08.2002; CC 17.532, 2ª S., rel. Min. Ari Pargendler, j. 29.02.2000, DJU 05.02.2001; REsp 1.101.057, 3ª T., rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.04.2011, DJe 15.04.2011; AgRg no CC 118.023, 1ª S., rel. Min. Benedito Gonçalves, j. 28.03.2012, DJe 03.04.2012; CC 126.601, 1ª S., rel. Min. Mauro Campbell Marques, j. 27.11.2013, DJe 05.12.2013; AgInt no AREsp 944.829, 1ª T., rel. Min. Gurgel de Faria, j. 14.05.2019, DJe 12.06.2019; AgInt no AREsp 1.023.553, 1ª T., rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29.06.2020, DJe 01.07.2020). E parece ser mesmo essa a orientação consentânea com a letra e o propósito do dispositivo.
Assim, de acordo com o art. 93 do CDC, se a ação coletiva visa a uma tutela destinada a operar apenas no âmbito territorial de uma comarca da Justiça Estadual ou de uma subseção da Justiça Federal (i.e., tem alcance “local”), poderá ser proposta no foro dessa comarca ou subseção, mesmo que no interior do Estado. Já se ação coletiva tem objeto que ultrapassa os limites de uma única comarca ou subseção (i.e., tem alcance “regional”) deve ser proposta, a critério do autor, no foro de capital de Estado ou no do Distrito Federal. Essa segunda diretriz aplica-se indistintamente a ações com alcance regional interno a um Estado, com alcance regional interestadual e com alcance nacional. E – repita-se – ambas as diretrizes se aplicam à Justiça Estadual e à Federal.
Pois bem, uma vez conjugadas com esse dispositivo do Código do Consumidor, aquelas duas normas inicialmente mencionadas configuram um regime jurídico especial para a incompetência territorial nas ações coletivas.
Por um lado, se a ação é proposta perante foro incompetente e lá permanece, não há a integral prorrogação da competência, pois a sentença final não terá o alcance que se pretendeu na demanda. Aliás, isso também se aplica, por simetria, à antecipação de tutela que eventualmente se conceda nesse processo.
Mas, por outro lado, os atos decisórios do juiz incompetente, em vez de serem integralmente considerados nulos, têm apenas sua eficácia limitada ao âmbito da competência territorial do órgão prolator, quando isso for possível.
Por exemplo, se com a ação pretendia-se tutela que abrangesse todo o Estado, mas ela foi proposta em foro de comarca do interior, caso o processo não seja oportunamente remetido ao foro competente, da capital do Estado (CDC, art. 93, II), e o juízo incompetente profira sentença ou decisão de tutela antecipada, essa será eficaz apenas para os beneficiários abrangidos pela competência territorial do órgão prolator, que, no caso, limita-se à própria comarca. Haverá casos em que a pretensão coletiva de extensão nacional indevidamente ajuizada em comarca ou subseção do interior do Estado terá como ser segmentada para vigorar apenas no âmbito de competência daquele juiz (CDC, art. 93, I). Assim, se na ação civil pública proposta na comarca do interior se pede a proibição de comercialização de um produto em todo território nacional, a decisão de acolhimento dessa pretensão pelo juiz incompetente tem como ser parcialmente aproveitada: vigorará no seu âmbito regional de competência. Em outros casos, não haverá segmentação possível, e o indevido ajuizamento de pretensão de extensão transregional perante o juiz da comarca ou subseção do interior produzirá pronunciamento de todo inútil e ineficaz: se a ação coletiva é proposta na subseção judiciária de Tefé, no Amazonas, visando a impedir a privatização de estatal federal de energia elétrica sediada na cidade do Rio de Janeiro, onde também está ocorrendo o leilão de seu controle acionário, a decisão concessiva de tutela antecipada ou de acolhimento dessa demanda, por não ser segmentável (para ter sua eficácia restrita ao âmbito regional de competência) é de todo ineficaz.
Mas isso não é nenhum especial óbice à tutela coletiva – e sim mera regra de operacionalidade, razoabilidade e até destinada a coibir a sham litigation. Para que uma ação coletiva possa abranger toda a extensão territorial pretendida que vá além de uma única circunscrição ou comarca (atingindo várias circunscrições ou comarcas, o Estado inteiro, vários Estados ou todo o país), basta ajuizá-la em capital do Estado ou no Distrito Federal. Agora, sendo ajuizada em capital do Estado (qualquer capital de Estado) ou no Distrito Federal, ela terá eficácia nacional. No exemplo dado, bastava propor-se a ação perante a Justiça Federal de Manaus (ou Rio Branco, Macapá ou qualquer outra capital do Estado ou Brasília).
Compreendido nesses termos, não parece haver nenhuma ilegitimidade constitucional no modelo extraível das regras ora brevemente examinadas. Na discussão ora posta no STF, há a tese de que a inconstitucionalidade residiria na limitação, pela lei, da eficácia das decisões judiciais – sob o argumento de que a soberania estatal de que está investido cada julgador não comportaria jamais quaisquer restrições. Mas, com o devido respeito, tal argumento não parece proceder. Se fosse assim, a lei não poderia sequer cominar nulidades (que também conduzem à ineficácia – e integral – das decisões judiciais), prever a ineficácia da sentença em caso de preterimento de litisconsorte necessário (CPC, art. 115, II) ou estabelecer a “inexigibilidade” do título executivo judicial inconstitucional (CPC, art. 525, § 12, e 535, § 5). Pense-se ainda nos casos em que a lei impõe limitações temporais à eficácia da decisão (como o condicionamento da eficácia da sentença ao reexame necessário, previsto no art. 496 do CPC; ou a previsão de perda de eficácia da decisão concessiva de tutela provisória, nas hipóteses do art. 309 do CPC). Esses são apenas alguns entre tantos outros exemplos. O legislador está, sim, autorizado a impor limites à eficácia das decisões. A limitação legal é legítima desde que seus fundamentos e fins sejam constitucionalmente razoáveis – e esse requisito está preenchido, na medida em que se adote a interpretação aqui apresentada.
Em suma, a delimitação de eficácia prevista nas duas normas em questão não pode ser compreendida como vinculada à circunscrição territorial do órgão prolator da decisão (no sentido de que, p. ex., a decisão do juiz estadual de Curitiba só teria efeitos na comarca de Curitiba; a do juiz federal de Brasília apenas na sua respectiva subseção – e assim por diante). Essa leitura é inconstitucional. A delimitação de eficácia incide sobre o âmbito de competência territorial do juízo prolator da decisão, definido pelo art. 93 do CDC. Essa é a interpretação conforme à Constituição dos arts. 16 da LACP e 2º-A da lei 9.494/97.