Migalhas de Peso

O novo enunciado de súmula 76 do TJ/MG e o conhecido problema da instauração de IRDR a partir de processos dos juizados especiais

O Enunciado do TJ/MG, que dispõe que “o incidente de resolução de demandas repetitivas poderá ser suscitado com base em demandas repetitivas em curso nos juizados especiais”, embora importante, ainda demanda algumas reflexões, considerando o contexto do IRDR e juizados.

25/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

O Órgão Especial do TJ/MG aprovou o enunciado de súmula 76, que dispõe: “o incidente de resolução de demandas repetitivas poderá ser suscitado com base em demandas repetitivas em curso nos juizados especiais”.1

Em síntese, o entendimento sumulado no âmbito do TJ/MG é de que os requisitos do CPC para instauração de IRDR, de efetiva repetição de processos que contenham a mesma questão jurídica, gerando risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (art. 976), também se aplicam às demandas em trâmite nos juizados especiais. Mesmo nesses casos, o órgão responsável pelo julgamento do incidente será uma das Seções Cíveis do TJ/MG.

A interseção entre IRDR e juizados especiais é um dos aspectos mais delicados da nova técnica processual e vem sendo paulatinamente enfrentada por doutrina e jurisprudência desde a entrada em vigor do CPC/15.

Afinal, se por um lado o art. 985, I, do CPC prevê que a tese firmada no incidente será aplicada aos processos repetitivos, “inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região” (art. 985, I),2 por outro, é sabido que os juizados têm autonomia em relação aos tribunais de justiça estaduais e tribunais regionais e o seu órgão hierarquicamente superior é a turma recursal, formada por juízes.

Por isso, a doutrina controverte sobre a aplicação do IRDR aos juizados.3 Há quem defenda sua inconstitucionalidade,4 e há quem seja partidário da aplicação,5 alguns afirmando que o IRDR deverá, em tais casos, ser processado e julgado pelas turmas de uniformização próprias dos juizados.6

Tal solução, embora desvie do problema relativo à vinculação jurisdicional dos juizados aos tribunais de justiça estaduais e regionais, não está imune a críticas,7 sobretudo porque pode criar “bolhas” de uniformização independentes – e até mesmo contraditórias – sobre as mesmas questões.

O problema ainda se agrava ao pensarmos sobre o potencial recurso especial contra a decisão que fixe a tese jurídica (art. 987 do CPC), o qual teria o condão de uniformizar a questão a nível nacional, uma vez que, em tese, não se admite a interposição de recurso especial contra decisões oriundas do sistema dos juizados especiais (arts. 98 e 105 da CRFB e súmula 203 do STJ).8

Em tese, porque o STJ, embora tenha inicialmente se mostrado cauteloso em relação ao tema, já se posicionou pelo cabimento do recurso,9 e julgou recentemente o REsp Repetitivo 1.807.665/SC, representativo da controvérsia do Tema 1030,10 que foi interposto contra acórdão proferido nos autos de IRDR instaurado no TRF4 a partir de processo que tramitava no Juizado Especial Federal. É digno de nota que, embora os acórdãos de afetação e de julgamento do recurso e fixação da tese jurídica não tratem expressamente de tal problemática, antes da afetação, o min. Paulo de Tarso Sanseverino, presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ, destacou o ponto:

“O presente processo, portanto, além da relevante matéria de direito, apresenta duas importantes questões relacionadas ao cabimento do recurso especial ainda não decididas em definitivo pelo STJ: a primeira, relacionada à possibilidade de se impugnar acórdão proferido em IRDR admitido de processo oriundo dos juizados especiais; a segunda, relativa à possibilidade de o STJ atuar como Corte uniformizadora de matéria processual de aplicação exclusiva no âmbito dos juizados especiais, a despeito da previsão do citado § 4º do art. 14 da lei 10.259/01, que restringe o cabimento do pedido de uniformização para o STJ a questões de direito material”.

De nossa parte, entendemos que o IRDR pode ser instaurado a partir de processos em trâmite nos juizados especiais, devendo ser processado e julgado pelos Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais, na linha do enunciado de súmula 76 do TJ/MG.  É possível dizer, passados 5 anos de vigência do Código, que essa vem sendo a posição majoritária dos tribunais.11

Mas a questão ainda está em aberto: não basta afirmar que é possível a instauração de IRDR a partir de processos em trâmite nos juizados especiais.12 É preciso definir se, em tais casos, o Tribunal (a) deverá escolher como caso-piloto um dos processos de sua competência (como, por exemplo, uma apelação ou um agravo de instrumento), (b) poderá julgar como caso-piloto o próprio processo dos juizados especiais, ou (c) apenas fixará a tese, em cisão decisória e formação de procedimento-modelo, sem julgamento do caso concreto.13

O tema é bastante relevante. Afinal, voltando ao enunciado de súmula 76 do TJ/MG, embora o Tribunal tenha destacado que o posicionamento que prevalece nas suas duas seções seria “idêntico”, o acórdão cita casos que se enquadrariam nas hipóteses (a) e (c) acima. De um lado, menciona julgado que exige a seleção de uma causa pendente no próprio tribunal (IRDR 1.0433.19.004292-2/001), e, de outro, cita julgamentos admitindo a possibilidade de fixação da tese jurídica pelo Tribunal sem que seja julgado o caso concreto (IRDR nº. 1.0000.16.090193-0/001, IRDR nº. 1.0105.16.000562-2/001 e IRDR nº. 1.0000.16.041441-3/000).

Ambas as soluções nos parecem possíveis, com o especial destaque para a cisão decisória, que decorre também do art. 976, §1º, do CPC, e já foi defendida por nós em outras ocasiões e recentemente admitida em importante julgamento do TRF3.14

O problema do IRDR e sua relação com os juizados especiais é conhecido, mas há ainda muito a se refletir.

_________

1- Processo nº. 1701077-85.2019.8.13.0000, relatado aqui.! O entendimento já havia sido veiculado nos Enunciados 46 e 47 do Grupo de Trabalhos do Fórum de Debates e Enunciados sobre o Novo Código de Processo Civil – EJEF/TJMG.

2- Embora o CPC não fale sobre a suspensão de tais processos, seria incoerente determinar a aplicação da tese sem o sobrestamento. Nesse sentido é o enunciado nº 93 do FPPC: “Admitido o incidente de resolução de demandas repetitivas, também devem ficar suspensos os processos que versem sobre a mesma questão objeto do incidente e que tramitem perante os juizados especiais no mesmo estado ou região”.

3- KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. Incidente de resolução de demandas repetitivas e os juizados especiais. Revista de Processo, vol. 237, nov/2014; CAMPOS, Arthur Sombra Sales. A possibilidade de instauração de IRDR a partir de causas dos juizados especiais. Revista de Processo, vol. 309, nov/2020.

4- ABBOUD, Georges; CAVALCANTI, Marcos. Inconstitucionalidades do incidente de resolução de demandas repetitivas e riscos ao sistema decisório. Revista de Processo, vol. 240, fev/2015, versão digital.

5- CAMARGO, Luiz Henrique Volpe. O incidente de resolução de demandas repetitivas no projeto de novo CPC: a comparação entre a versão do Senado Federal e a da Câmara dos Deputados. In: FREIRE, Alexandre et al (Orgs). Novas tendências do processo civil. Vol. III. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 288.

6- Há enunciados do Fórum da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), sobre o tema: “21) O IRDR pode ser suscitado com base em demandas repetitivas em curso nos juizados especiais; 44) Admite-se o IRDR nos juizados especiais, que deverá ser julgado por órgão colegiado de uniformização do próprio sistema”. Disponível aqui. Acesso em 16.2.2021. V.: “se há divergência entre as Turmas Recursais, há que ser dirimida por órgão Colegiado de uniformização do próprio sistema dos Juizados Especiais (...). Se não há previsão no Regimento Interno das Turmas Recursais acerca da instauração de IRDR perante a Turma de Uniformização, a falta de previsão normativa não pode subverter a norma processual a ponto de permitir a instauração do Incidente perante este Tribunal, quando a questão está afeta a processo que não se submete à nossa competência recursal” (TJDFT, IRDR nº 2017.00.2.011040-2). No mesmo sentido: TRF3, IRDR nº. 0021992-36.2016.4.03.0000 e TJAP, IRDR  0000586-86.2017.8.03.0000.

7- MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ROMANO NETO, Odilon. Análise da relação entre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas e o microssistema dos juizados especiais. Revista de Processo, vol. 245, jul/2015, versão digital. As críticas foram ressaltadas pelo Conselheiro do CNJ Henrique Ávila, na decisão liminar que determinou a suspensão da eficácia da Resolução 023/2016 do TJ/ES, que permitiu a instalação, nas estruturas de Juizados Especiais, de órgãos para julgamento de IRDR e IAC (CNJ, Procedimento de Controle Administrativo nº 0002624-56.2017.2.00.0000, Decisão Liminar, Conselheiro HENRIQUE ÁVILA, 19.4.2017). Tal decisão, contudo, foi revogada, em 26.6.2017, pela Conselheira Maria Tereza Uille Gomes, que, após, em 18.7.2018, proferiu decisão monocrática de improcedência, entendendo que foge das atribuições do CNJ resolver a respeito de competência jurisdicional para processar e julgar incidentes processuais.

8- Quanto aos juizados federais e da fazenda pública, a situação é um pouco diversa, porque estes podem contar com as turmas de uniformização nacional, com eventual manifestação do STJ em caso de divergência. Ver: KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. Incidente de resolução de demandas repetitivas e os juizados especiais. Revista de Processo, vol. 237, nov/2014; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ROMANO NETO, Odilon. Análise da relação entre o novo incidente de resolução de demandas repetitivas e o microssistema dos juizados especiais. Revista de Processo, vol. 245, jul/2015, versão digital.

9- O SIRDR 8 foi negado em 11.12.2017 sob o argumento de que a indefinição jurídica a respeito do IRDR e dos juizados impediriam a suspensão nacional de tais processos, mas, no SIRDR 9, reconsiderando decisão anterior que também havia indeferido o pedido de suspensão nacional, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino consignou que (i) o próprio STJ já entendeu que o rito do IRDR "não pressupõe a adoção de casos-piloto, tratando-se simplesmente de procedimento modelar" (AgInt no CC nº. 147.784/PR); e que (ii) com relação ao obstáculo de inviabilidade de interposição de recurso especial, o Plenário do STF, nos autos do RE 647.827/PR (Tema n. 571/RG), “analisando disposições do CPC/2015, concluiu pela possibilidade do julgamento de recurso extraordinário, mesmo diante da perda superveniente do interesse de agir, em superação ao entendimento consolidado no enunciado n. 513 de sua Súmula”. (STJ, SIRDR9, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julg. 10.8.2018).

10- O REsp 1.807.665 foi distribuído à Primeira Seção Cível do STJ, sob a relatoria do Ministro Sérgio Kukina, e a questão controvertida foi delimitada nos seguintes termos: “possibilidade, ou não, à luz do art. 3º da Lei 10.259/2001, de a parte renunciar ao valor excedente a sessenta salários mínimos, aí incluídas prestações vincendas, para poder demandar no âmbito dos juizados especiais federais”. Em sessão de julgamento do dia 28.10.2020, a tese repetitiva fixada foi: “ao autor que deseje litigar no âmbito de Juizado Especial Federal Cível, é lícito renunciar, de modo expresso e para fins de atribuição de valor à causa, ao montante que exceda os 60 (sessenta) salários mínimos previstos no art. 3º, caput, da Lei 10.259/2001, aí incluídas, sendo o caso, as prestações vincendas”.

11- Entendendo que os IRDRs permanecem sob competência dos tribunais de justiça e tribunais regionais, embora a tese seja aplicável aos juizados especiais, inclusive com a possibilidade de o processo se originar dos juizados: TRF4, IRDR nº 5016985-48.2016.4.04.0000, 5033207-91.2016.4.04.0000 e 5032523-69.2016.4.04.0000; TJMG, IRDR nº 0124879-52.2017.8.13.0000; TJTO, IRDR nº 0009560-46.2017.827.0000; TJPR, IRDR nº 0024611-40.2016.8.16.00000; TJPR, IRDR nº 0011523-95.2017.8.16.0000; TJRS, IRDR nº 0266590-72.2017.8.21.7000; TJAM, IRDR nº. 4002464-48.2017.8.04.0000. O TJSC, além de possuir previsão em seu regimento interno de que a tese firmada em IRDR será aplicada aos juizados especiais (art. 3º, §3º, Ato Regimental 136/2016), já admitiu tal extensão para processos em juizados da fazenda pública (IRDR nº 1000576-74.2016.8.24.0000).

12- Enunciado 605 do FPPC: “Os juízes e as partes com processos no Juizado Especial podem suscitar a instauração do incidente de resolução de demandas repetitivas”.

13- Sobre o tema, ver: TEMER, Sofia. Incidente de resolução de demandas repetitivas. 4 ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 67-102.

14- A 3ª Seção do TRF3, nos autos do IRDR nº. 5022820-39.2019.4.03.0000 (Tema nº. 3), de Relatoria da Desembargadora Federal Inês Virgínia, em razão do falecimento da parte apelante do processo-piloto, fixou a tese jurídica sem julgar o processo-piloto. Nos termos do voto da relatora: “(...) o IRDR forma um procedimento-modelo com a finalidade de fixar a tese jurídica. Em razão disso, entendo ser possível que o IRDR e a causa-piloto sejam julgados em momentos distintos, sempre observando-se a precedência no julgamento do incidente. Importa destacar que a solução da questão comum (veiculada no IRDR) é diferente da solução do caso concreto (veiculada no processo-piloto). Para resolver a questão comum - e fixar a tese jurídica, o processo deve reunir elementos que permitam o conhecimento da controvérsia; e o processo-piloto é um dos elementos que serve de suporte para formação do incidente, mas não é o único para o deslinde da controvérsia da questão de direito”.

Sofia Temer
Doutora e mestre em Direito Processual pela UERJ. Membro do IBDP, do ICPC e da Processualistas. Sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

Juliana Esteves
Graduanda na PUC/RJ. Membro do Grupo de Estudos Processuais da PUC/RJ. Colaboradora do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

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