A “Nova lei de licitações”, aprovada no Senado e aguardando sanção presidencial, eleva as políticas de equidade ao patamar de critério de desempate nos processos licitatórios brasileiros. No trâmite de julgamento dos certames, o legislador empreende louvável iniciativa de fomento institucional à igualdade, mas, ainda que elogioso, este empenho traz consigo alguns aspectos controversos, que merecem destaque.
Eis o teor da previsão no seu art. 59, inciso III:
Art. 59. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem:
(...)
III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento;
Análise
Em primeiro lugar, cabe notar a posição ordinal desse dispositivo: ele figura como terceiro critério de desempate, estando atrás da hipótese de apresentação de nova proposta em ato contínuo à classificação, numa espécie de disputa final (inciso I) e, também, do exame de desempenho contratual prévio dos licitantes (inciso II), ao passo que fica à frente da verificação de desenvolvimento de programas de integridade (compliance) pela parte licitante (inciso IV).
Nesse sentido, cogita-se afirmar pela existência de uma certa inversão de valores – até pelo viés constitucional -, donde parâmetros de histórico funcional e eficiência suplantam a relevância de práticas de isonomia e de decoro intraempresariais.
Em segundo lugar, merece atenção a absoluta generalidade da norma. Pelo grau de abstração do dispositivo, questiona-se se haverá uma análise qualitativa da política institucional, de modo a apurar sua real efetividade e internalização nos quadros do licitante, ou se a simples formulação de um prospecto formal já será considerada suficiente.
Como em qualquer política pública afirmativa, espera-se que o mercado corresponda e implemente critérios rigorosos para a garantia de direitos há muito consagrados tanto pela Constituição Federal, como pela Legislação Trabalhista, que estabelecem, por exemplo, a premente necessidade de equiparação salarial, tendo em vista que as mulheres brasileiras ainda ganham, em média, 20,5% a menos que os homens. Igualmente, almeja-se que os editais estabeleçam severos requisitos de aferição qualitativa sobre as ações formalizadas pelas partes licitantes.
Por último, e talvez mais importante, deve-se atentar para a locução escolhida pelo legislador, qual seja, “(...) equidade entre homens e mulheres (...)”.
Não é sem propósito que ao longo deste artigo não foi utilizada a expressão “equidade de gênero” para referenciar a novidade legislativa, na medida em que, conforme considera Joan Scott no artigo “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, “(...) o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclua não somente o sexo, mas também a classe e a raça” (In Revista de Educação e Realidade (Gênero e Educação), vol. 20, nº 2, Porto Alegre, Jul/Dez 1995, p. 93). Assim, ao falarmos de gênero, em especial do conceito equidade de gênero, a simples locução “homens e mulheres” se mostra insuficiente, vez que, ao menos a princípio, parece não agregar as diferentes identidades de gênero, além das peculiaridades de classe e raça e sua mútua influência, tema este que encontra hoje cada vez mais importância e que já poderia ter sido abarcado pela legislação.
Dúvidas
Já é de se esperar a ocorrência de embates conceituais e ideológicos sobre o binômio disposto na futura lei de licitações, de modo a se aferir a dimensão do conteúdo de sua previsão. É importante lembrar, aqui, de todas as pessoas de identidade transgênero e do seu esforço cotidiano para inserção concreta nas pautas de igualdade, observadas as devidas peculiaridades de sua luta própria.
Ainda neste contexto, interessante rememorar a denominada “Teoria do Impacto Desproporcional”, habitualmente utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para afastar a ocorrência de discriminação indireta, verificada quando dispositivos legais, ainda que involuntariamente, contribuem, na prática, para ações discriminatórias e atentatórias à isonomia material. Apesar dos aprimoramentos essenciais que devem ser realizados, destacamos a importância desta conquista, ainda que incipiente. O avanço na legislação é resultado de inúmeros embates políticos e ideológicos pela luta da igualdade de gênero e, ainda que com dúvidas e imprecisões, merecem ser valorizados e comemorados.
A legislação expressa o desejo e a intenção de pautar novas realidades sociais, tornando-se uma referência fundamental para a população. Além disso, a legislação, quando não efetivada pelo Poder Executivo e devidamente resguardada pelo Poder Judiciário, coloca-se como uma norma orientadora da ação de sujeitos políticos. No entanto, cabe a sociedade a se atentar as dúvidas e imprecisões deixadas pela legislação.
Hoje, iniciativas como a cadeira “Direito e Equidade de Gênero”, da FDUSP, e, no âmbito interno da Manesco Sociedade de Advogados, o Comitê Manesco Mulher e o Comitê de Inclusão Racial, tem movimentado profissionais do direito a pensar medidas que visam à garantia da equidade de gênero, inclusive no recorte de raça. Espera-se que esse debate alcance o ambiente doutrinário e jurisprudencial, de modo que a aplicação da norma da Nova Lei de Licitações se dê de forma mais inclusiva possível, com o alcance de resultados que materializem, de fato, a promoção da equidade de gênero e da igualdade lato sensu.
Aspectos de equidade na nova lei de licitações
Espera-se que esse debate alcance o ambiente doutrinário e jurisprudencial, de modo que a aplicação da norma da nova lei de licitações se dê de forma mais inclusiva possível.
24/2/2021
(Imagem: Arte Migalhas.)