Migalhas de Peso

Aspectos de equidade na nova lei de licitações

Espera-se que esse debate alcance o ambiente doutrinário e jurisprudencial, de modo que a aplicação da norma da nova lei de licitações se dê de forma mais inclusiva possível.

24/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

“Nova lei de licitações”, aprovada no Senado e aguardando sanção presidencial, eleva as políticas de equidade ao patamar de critério de desempate nos processos licitatórios brasileiros. No trâmite de julgamento dos certames, o legislador empreende louvável iniciativa de fomento institucional à igualdade, mas, ainda que elogioso, este empenho traz consigo alguns aspectos controversos, que merecem destaque.
 
Eis o teor da previsão no seu art. 59, inciso III:

Art. 59. Em caso de empate entre duas ou mais propostas, serão utilizados os seguintes critérios de desempate, nesta ordem: 
(...)
III – desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento;
 
Análise
Em primeiro lugar, cabe notar a posição ordinal desse dispositivo: ele figura como terceiro critério de desempate, estando atrás da hipótese de apresentação de nova proposta em ato contínuo à classificação, numa espécie de disputa final (inciso I) e, também, do exame de desempenho contratual prévio dos licitantes (inciso II), ao passo que fica à frente da verificação de desenvolvimento de programas de integridade (compliance) pela parte licitante (inciso IV).

Nesse sentido, cogita-se afirmar pela existência de uma certa inversão de valores – até pelo viés constitucional -, donde parâmetros de histórico funcional e eficiência suplantam a relevância de práticas de isonomia e de decoro intraempresariais.

Em segundo lugar, merece atenção a absoluta generalidade da norma. Pelo grau de abstração do dispositivo, questiona-se se haverá uma análise qualitativa da política institucional, de modo a apurar sua real efetividade e internalização nos quadros do licitante, ou se a simples formulação de um prospecto formal já será considerada suficiente.

Como em qualquer política pública afirmativa, espera-se que o mercado corresponda e implemente critérios rigorosos para a garantia de direitos há muito consagrados tanto pela Constituição Federal, como pela Legislação Trabalhista, que estabelecem, por exemplo, a premente necessidade de equiparação salarial, tendo em vista que as mulheres brasileiras ainda ganham, em média, 20,5% a menos que os homens. Igualmente, almeja-se que os editais estabeleçam severos requisitos de aferição qualitativa sobre as ações formalizadas pelas partes licitantes.

Por último, e talvez mais importante, deve-se atentar para a locução escolhida pelo legislador, qual seja, “(...) equidade entre homens e mulheres (...)”. 

Não é sem propósito que ao longo deste artigo não foi utilizada a expressão “equidade de gênero” para referenciar a novidade legislativa, na medida em que, conforme considera Joan Scott no artigo “Gênero: uma categoria útil para a análise histórica”, “(...) o gênero deve ser redefinido e reestruturado em conjunção com uma visão de igualdade política e social que inclua não somente o sexo, mas também a classe e a raça” (In Revista de Educação e Realidade (Gênero e Educação), vol. 20, nº 2, Porto Alegre, Jul/Dez 1995, p. 93). Assim, ao falarmos de gênero, em especial do conceito equidade de gênero, a simples locução “homens e mulheres” se mostra insuficiente, vez que, ao menos a princípio, parece não agregar as diferentes identidades de gênero, além das peculiaridades de classe e raça e sua mútua influência, tema este que encontra hoje cada vez mais importância e que já poderia ter sido abarcado pela legislação. 
 
Dúvidas
Já é de se esperar a ocorrência de embates conceituais e ideológicos sobre o binômio disposto na futura lei de licitações, de modo a se aferir a dimensão do conteúdo de sua previsão. É importante lembrar, aqui, de todas as pessoas de identidade transgênero e do seu esforço cotidiano para inserção concreta nas pautas de igualdade, observadas as devidas peculiaridades de sua luta própria. 

Ainda neste contexto, interessante rememorar a denominada “Teoria do Impacto Desproporcional”, habitualmente utilizada pelo Supremo Tribunal Federal para afastar a ocorrência de discriminação indireta, verificada quando dispositivos legais, ainda que involuntariamente, contribuem, na prática, para ações discriminatórias e atentatórias à isonomia material. Apesar dos aprimoramentos essenciais que devem ser realizados, destacamos a importância desta conquista, ainda que incipiente. O avanço na legislação é resultado de inúmeros embates políticos e ideológicos pela luta da igualdade de gênero e, ainda que com dúvidas e imprecisões, merecem ser valorizados e comemorados.

A legislação expressa o desejo e a intenção de pautar novas realidades sociais, tornando-se uma referência fundamental para a população. Além disso, a legislação, quando não efetivada pelo Poder Executivo e devidamente resguardada pelo Poder Judiciário, coloca-se como uma norma orientadora da ação de sujeitos políticos. No entanto, cabe a sociedade a se atentar as dúvidas e imprecisões deixadas pela legislação.  

Hoje, iniciativas como a cadeira “Direito e Equidade de Gênero”, da FDUSP, e, no âmbito interno da Manesco Sociedade de Advogados, o Comitê Manesco Mulher e o Comitê de Inclusão Racial, tem movimentado profissionais do direito a pensar medidas que visam à garantia da equidade de gênero, inclusive no recorte de raça. Espera-se que esse debate alcance o ambiente doutrinário e jurisprudencial, de modo que a aplicação da norma da Nova Lei de Licitações se dê de forma mais inclusiva possível, com o alcance de resultados que materializem, de fato, a promoção da equidade de gênero e da igualdade lato sensu.

Nina Nobrega Martins Rodrigues
Advogada do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

Elisa Martinez Giannella
Advogada no escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024