Migalhas de Peso

Modulação: Como, em que momento e por quem?

É ao próprio Tribunal, que modifica o entendimento firmado em precedente vinculante ou jurisprudência pacificada, que cabe o dever de se manifestar sobre o alcance temporal da eficácia da nova regra criada, o que deve ser feito no momento da alteração da tese antes adotada

24/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas.)

1) Quando e como?

O CPC de 2015, como se sabe, deu imenso valor à jurisprudência, às súmulas, aos precedentes.

De acordo com o sistema de valorização da jurisprudência, súmulas e precedentes do CPC/15, é possível, a partir de dados do direito positivo, identificarmos circunstâncias objetivas nas quais a confiança do jurisdicionado deve ser (ou não) protegida no caso de haver mudança de orientação dos Tribunais.

Assim, nos casos de entendimentos consagrados em precedentes vinculantes e súmulas, arrolados no art. 927, incisos II, III e IV do CPC, em razão do dever de respeito obrigatório pelos juízes e tribunais, é forçosa a conclusão no sentido de que o abandono da orientação anteriormente adotada e a opção por uma outra “tese”, muitas vezes, se preenchidas determinadas condições e atendidos certos critérios, não deve retroagir. Muitas vezes é necessário decidir-se com base no entendimento consagrado no precedente, na súmula ou na jurisprudência pacificada, se este só veio a ser superado após a prática da conduta.

Nestas situações, a nosso ver, pouco ou nada importa se a superação do entendimento ocorreu antes do julgamento no qual se avalia a conduta. O importante é saber se a conduta foi praticada e a situação jurídica foi consolidada antes de se ter abandonado a orientação anterior.

Aos critérios que devem ser levados em conta pelos Tribunais quando decidem se vão ou não modular os efeitos da alteração de orientação firme anterior (jurisprudência pacificada, súmula vinculante ou não, precedente vinculante etc.) se pode chegar se se compreende profunda e essencialmente a razão de ser da modulação.

O primeiro critério que aparece como fundamental para identificar casos em que deve haver a modulação é o de que, com ela, se estará protegendo a confiança que teve o jurisdicionado na orientação anterior.1

A orientação anterior deve ter sido, como regra, firme e duradoura. Deve ter representado, para o jurisdicionado, confiável pauta de conduta (= direito).2 Isso pode ocorrer, entretanto, no direito brasileiro, também quando se trata de apenas um precedente do STF.

Esse, a nosso ver, é o primeiro dos pressupostos para que se modulem os efeitos da alteração da orientação de um Tribunal: deve-se, por meio da modulação, proteger a confiança do particular nos atos do Estado3 – no caso específico, a confiança do jurisdicionado na pauta de conduta criada pelo Poder Judiciário.4

Não é incorreta a afirmação no sentido de que a modulação se revela adequada quando a mudança de orientação do tribunal “equivale” à mudança da lei5 (que tem efeitos ex tunc, prospectivos).6

É relevante frisar que a pauta de conduta, que gera confiança no jurisdicionado, pode resultar de decisões iterativas de outros tribunais que não o STF ou o STJ e que, quando este tribunal decide a questão pela primeira vez, se decidir de modo contrário àquele que estava, até então, orientando o agir do jurisdicionado, deve haver modulação.

Então a confiança do jurisdicionado na pauta de conduta que deve seguir (da posição pacificada ou de súmula, ou de precedente vinculante) pode emanar de Tribunal diferente daquele que veio, posteriormente, a alterar a orientação.

Por via de consequência, a modulação, quando tem lugar, nos casos superação de entendimento sumulado ou consagrado em precedente vinculante ou em jurisprudência pacificada deve proteger todos aqueles que adquiriram direitos, praticaram atos e celebraram negócios jurídicos ou seja, planejaram suas vidas, enquanto existia a orientação, agora superada.

O cumprimento dos deveres de estabilidade, integridade e coerência são suficientes para gerar a confiança do jurisdicionado, pois sugerem que a jurisprudência será mantida e aplicada, no futuro, razão pela qual sua modificação, pura e simples, deve ser excepcional e não pode, via de regra, ser banalizada.

Entretanto, em caso de alteração da jurisprudência firme, há uma dificuldade adicional, não existente nas hipóteses de jurisprudência cristalizada em súmula ou precedente vinculante. É a necessidade de constatação acerca da efetiva anterior convergência da jurisprudência em torno do entendimento que está sendo superado.

Por isso, caberá ao Tribunal, ao modificar a orientação, reconhecer que havia, antes, consolidação em sentido contrário e, em razão disso, eventualmente modular os efeitos da nova orientação, de modo a proteger aqueles que confiaram no entendimento jurisprudencial, até então consolidado.

Evidentemente, há uma maior dificuldade em se verificar ter ou não havido consolidação da jurisprudência, se comparada à necessidade de verificação da existência de súmula ou precedente qualificado anterior. De toda forma, dada a influência da jurisprudência firme na necessidade de modulação de efeitos do novo entendimento para fins de proteção à confiança, o tema precisa ser expressamente enfrentado.7

Por fim, uma terceira situação pode se configurar: a consagração de um entendimento, quiçá em súmula ou precedente vinculante, sobre um tema, até então, a respeito do qual a jurisprudência era divergente.

Parece-nos que, nessas situações, o critério ora referido não pode funcionar como norte para fins de modulação, dado que, em um ambiente de divergência jurisprudencial, não há confiança a ser protegida.

Em outras palavras, em um ambiente de divergência jurisprudencial inexiste pauta de conduta firme, capaz de gerar confiança e orientar a conduta do jurisdicionado. Por isso, nessas situações, como regra, o entendimento formalizado em um precedente vinculante tem o condão de revelar aquela que, dentre as hipóteses reconhecidas na jurisprudência dispersas, é a correta e, portanto, aplicável a todos os casos.

Nesse cenário de ‘loteria jurisprudencial’, diante da falta de um critério único anterior, o entendimento uniformizado deve, normalmente, retroagir, alcançando inclusive situações pretéritas, em homenagem ao princípio da isonomia, sem que possa se falar em ofensa à segurança jurídica em função desta “retroatividade” do entendimento, pois não havia confiança e previsibilidade a serem protegidas na hipótese.8

Portanto, o critério da proteção da confiança que teve o jurisdicionado na orientação anterior se aplica de modo diferente, a depender de três cenários distintos:

1) no primeiro, de modificação de entendimento consagrado em súmula ou precedente vinculante, esta confiança existe e deve ser protegida, razão pela qual a modulação se impõe;

2) Na outra ponta, em um ambiente de divergência jurisprudencial, não há pauta firme a ser observada, logo não há confiança a ser protegida, razão pela qual este critério não orienta a decisão sobre a modulação. O entendimento pode, inclusive, retroagir, por razões de isonomia;

3) Já na situação intermediária, nas quais não há entendimento formalizado mas, também, não há divergência, havendo jurisprudência consolidada, ainda que não formalmente enunciada, deve haver modulação, de modo a se protegerem todos aqueles que agiram de acordo com a jurisprudência firme e estável da época, uma vez que esta é suficiente para gerar a confiança do jurisdicionado (art. 926 CPC). Para tanto, a pacificação da jurisprudência deve ser reconhecida pelo julgado que a supera.

Por fim, cumpre novamente frisar que o momento a ser considerado quando da análise acerca da situação do tema na jurisprudência (se consolidada, divergente ou mesmo formalizada em súmula ou precedente vinculante) é o momento da conduta do jurisdicionado e não a fase ou o momento em que está o processo em que se discute o tema.

Assim, ainda que na data do julgamento exista um precedente vinculante sobre o tema – v. g., pagamento de um tributo ou incidência de uma multa voltada a punir determinada conduta - caso o fato gerador da obrigação tributária ou a prática do ato que se pretende sancionar, tiverem sido praticados em momento no qual a jurisprudência consolidada era no sentido de que o tributo não era devido e que ato não era ilícito, o precedente forjado após a conduta não deve se aplicar, mesmo que este já exista quando do julgamento do caso.

Com isto quer-se, aqui, dizer que a data da conduta da parte é o que importa como critério da modulação, não devendo ser levado em conta se já há processo, se há liminar, se há recurso.

Tais exemplos reforçam a afirmação, no sentido de que a manifestação de um Tribunal em sentido contrário à orientação até então consolidada e a necessidade de proteção das condutas praticadas neste ambiente jurisprudencial, devem ser reconhecidas e protegidas pela decisão que modifica a orientação. O instrumento jurídico apto a proporcionar tal proteção é a modulação.

Clique aqui para ler a íntegra do artigo.

__________

1- Por isso é que aludem Marinoni e Mitidiero à necessidade, para que haja modulação, de que em tese existam soluções distintas para o mesmo caso: circunstâncias fáticas idênticas e mais de uma solução possível (MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Recurso extraordinário e recurso especial: do jus litigatoris ao Jus constitutionis. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 281). Como argumentos para sustentar decisão de dar efeitos apenas prospectivos para overrulings, levou-se em conta, no direito americano, em Linkletter v Walker: “the purpose of the [new] rule; the reliance placed upon the [previous] doctrine; and the effect on the administration of justice of a retrospective application of 'the new rule]”. Em tradução livre: o objetivo da [nova] regra; a confiança depositada na doutrina [anterior]; e o efeito na administração da justiça de uma aplicação retrospectiva da 'nova regra'. Entretanto, em outros casos, entendeu-se que poderia haver também prospective effects se a orientação anterior não fosse clara, e, nesta medida, se tratasse de um “case of first impression”. “First, the decision to be applied nonretroactively must establish a new principle of law, either by overruling clear past precedent on which litigants may have relied...or by deciding an issue of first impression whose resolution was not clearly foreshadowed.... Second, it has been stressed that ‘we must…weight the merits and demerits in each case by looking to the prior history of the rule in question, its purpose and effect, and whether retrospective operation will further or retard its operation’. Finally, we have weighed the inequity imposed by retroactive application, for ‘[w]here a decision of this Court could produce substantial inequitable results if applied retroactively, there is ample basis in our cases for avoiding the ‘injustice or hardship’ by a holding of nonretroactivity”. Em tradução livre: Primeiro, a decisão cujos efeitos seriam aplicados não retroativamente deve estabelecer um novo princípio de direito, quer ignorando precedentes passados, em que os litigantes possam ter confiado...ou decidindo uma questão pela primeira vez, cuja resolução não foi claramente prefigurada.... Em segundo lugar, tem sido salientado que "devemos...ponderar os méritos e deméritos em cada caso, olhando para a história anterior da regra em questão, o seu objetivo e efeito, e se os efeitos retrospectivos irão promover ou atrasar a sua eficácia’. Finalmente, ponderámos a iniquidade imposta pela aplicação retroativa, pois ‘aqui uma decisão deste Tribunal poderia produzir resultados substancialmente injustos se aplicada retroativamente, há uma ampla base nos nossos casos para evitar a ‘injustiça ou dificuldade’ por uma ‘holding’ de não-retroatividade. (MARTINEZ, John. Taking time seriously: the federal constitutional right to be free from “startling” state Court overrulings. Harvard Journal of Law & Public Policy, v. 11, n. 297, 1988, p. 297-346, especialmente p.303). A nosso ver, no entanto, o que justifica, fundamentalmente, a modulação é haver pauta de conduta estável e confiável anterior.

2- “A revogação de precedente, ao alterar o entendimento da Corte a respeito da interpretação da lei federal, tem grande impacto sobre as situações levadas a efeito sob o império do precedente revogado. De forma que exige do Tribunal, em primeiro lugar, a análise acerca da existência de “confiança justificada”, uma vez que nem todo precedente gera confiança capaz de legitimar a conduta praticada. Depois, há que se verificar se o ato ou a conduta realmente deriva da confiança que se depositou no precedente” (MARINONI, Luiz Guilherme. Eficácia temporal da revogação da jurisprudência consolidada dos Tribunais Superiores. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 48, n. 190, p. 15-34, abr.-jun. 2011; Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 906, p. 255-284, abr. 2011). Paul J. Mishkin menciona a proteção da confiança como um dos principais fundamentos dos efeitos prospectivos de overruling no direito americano: “The most commonly accepted ground for denying retroactive operation to new judicial precedent (when such a power is recognized at all) is that such operation might unjustly inflict harm on those who justifiably relied on preexisting authority”. Em tradução livre: O motivo mais comumente aceito para negar os efeitos retroativos de um novo precedente judicial (quando tal poder é reconhecido) é que estes efeitos podem injustamente infligir danos àqueles que, justificadamente, confiaram na autoridade preexistente. (MISHKIN, Paul J.. The Supreme Court 1964 Term. Harvard Law Review, v. 79, n. 1, nov./1965, pp. 56-211, especialmente p. 73).

3- Parte da doutrina alemã, também já se apercebeu da relevância da modulação e faz, também, alusão à condição essencial para que aconteça: confiança na pauta de conduta anteriormente existente. Esta confiança não existe, por exemplo, como tudo indica que haverá uma mudança. „So z B wenn das Vertrauen eines Burgers in den Fortbestand der bisherigen Gesetzeslage deshalb nicht schutzwürdig ist, weil nach Lage der Umstände mit einer Änderung zu rechnen ist, oder weil schwerwiegende gründe des jemeinen Wohls die Rückwirkung verlaugen“. Em tradução livre: Por exemplo, se a confiança de um cidadão na existência da situação jurídica anterior não vale a pena de ser protegida, porque se podia antever uma mudança, à luz das circunstâncias, ou porque razões sérias do seu próprio bem-estar teriam efeito retroactivo. Na verdade, ainda há muita obscuridade: „Im einzelnen ist noch vieles unklar“. Em tradução livre: No plano dos detalhes, muitas coisas ainda não estão claras. (GRUNSKY, Wolfgang. Grenzen der Rückwirkung bei einer Änderung der Rechtsprechung (Vortrag). Juristische Studiengeselschaft Karlsruhe Schrift enreihe, Heft 94. Vereg C.F. Müller Karlsruhe 1970. Bruno Hensinger. Zum 70. Geburtstag in Verehrung und Dankbarkeit, p. 5).

4- CUEVA, Ricardo Villas Bôas. A modulação dos efeitos das decisões que alteram a jurisprudência dominante do STJ (art. 927, § 3º do NCPC). In: ARAUJO, Raul; LIMA, Tiago Asfor Rocha; SOUZA, Cid Marconi Gurgel de (Org.). Temas atuais e polêmicos na Justiça Federal. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 116.

5- Exatamente nesse sentido, Alaor Leite: “Afinal, uma substancial e brusca inflexão jurisprudencial pode piorar a situação jurídica de um acusado em maior grau do que uma leve e marginal alteração legislativa. Contudo, nos termos da posição tradicional, apenas a última está proscrita de retroagir” (LEITE, Alaor. Proibição de retroatividade e alteração jurisprudencial: a irretroatividade da jurisprudência constitutiva do injusto penal. In: RENZIKOWSKI, Joachim; GODINHO, Inês Fernandes; LEITE, Alaor; MOURA, Bruno. Actas do Colóquio o Direito Penal e o Tempo. Coimbra: Instituto Jurídico da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016. p. 45).

6- “(...) o único momento em que a superação de precedentes se aproxima da alteração do texto normativo é quando um determinado entendimento bastante consolidado e que não tenha sido alvo de inúmeras modificações no decorrer do tempo é completamente superado sem qualquer espécie de sinalização anterior”. (PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. Salvador: JusPodivm, 2015 p. 271).

7- Na prática do Supremo Tribunal Federal, especialmente no procedimento de reconhecimento da repercussão geral da questão objeto de recurso extraordinário, a pré-existência da jurisprudência consolidada é ponto enfrentado, ainda que por motivos diversos. Isso porque, o plenário virtual do STF contém, além das indagações atinentes à natureza constitucional da matéria e de sua repercussão geral, uma terceira questão, qual seja, se se trata de ‘reafirmação da jurisprudência’.

Nesta sede, portanto, os integrantes do colegiado avaliam se a questão já está pacificada na jurisprudência da Corte para fins de avaliação da possibilidade de submissão do mérito do RE com RG reconhecida ao julgamento pelo plenário virtual.

Entretanto, apesar de não ser a finalidade precípua, essa deliberação sobre a existência ou inexistência de jurisprudência pode ser aproveitada para fins de modulação de efeitos do julgado, orientando a retroatividade do entendimento quando reconhecida a pré-existência de jurisprudência no sentido do entendimento consagrado ou, fundamentando a modulação dos efeitos quando o colegiado consagrar entendimento diferente do até então formalizado.

Ademais, dada a importância do enfrentamento do tema para fins de proteção da confiança e modulação de efeitos da decisão, tal deliberação precisa ser estendida para além dos casos submetidos ao plenário virtual do Supremo Tribunal Federal, devendo ser enfrentada em todas as situações em que um novo entendimento venha a ser consagrado em sede de precedente vinculante.

8- Diferentemente pode-se passar com matéria processual.

Teresa Arruda Alvim
Sócia do escritório Arruda Alvim, Aragão, Lins & Sato Advogados. Livre-docente, doutora e mestre em Direito pela PUC/SP.

Fábio Victor da Fonte Monnerat
Doutorando e Mestre pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Coordenador e professor do Curso de Pós-graduação em Direito Processual Civil Aplicado da Escola Superior da Advocacia da OAB São Paulo (ESA OAB/SP). Procurador Federal (AGU).

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