Migalhas de Peso

O suposto crime de reúso de produtos médicos reprocessados

O assunto é bem antigo, como revelam muitos estudiosos do assunto.

22/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Operações policiais, normalmente precedidas de concordância do Ministério Público e autorização da Justiça Criminal, têm levado à prisão médicos e outros profissionais da saúde, acusados de reúso de produtos médicos de uso único que não deveriam ser reprocessados, ou seja, esterilizados, desinfectados para sucessiva utilização, sob fundamento de realização do tipo de crime do art. 273 do Código Penal e suas modalidades derivadas.

Fatos de tal natureza somente em aparência se ajustariam naquele tipo legal de crime. O preceito descritivo do art. 273 do Código Penal, “falsificar, corromper, adulterar ou alterar produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais” poderia ensejar dúvida ao intérprete; não quanto ao redundante “destinado a fins”, mas porque tudo no mundo é produto, e infinitas coisas podem, amplamente e até onde possa chegar a imaginação, ter “fins terapêuticos ou medicinais” e, para exagerar, o esfregão que higieniza o quarto do doente, a música que pode aplacar a alma, ou mesmo o silêncio que mitiga o paciente perturbado.  Obviamente, o legislador não se teria havido com tão fértil imaginação e nem ido tão longe. A princípio, o fato inicialmente configurado pareceria encontrar acomodação na descrição abstrata da norma; entrementes, elementos de natureza histórica, sociológica e filosófica complementam o sentido aparente que a interpretação literal de início sugeriria revelar.

Produto médico e produto medicinal

Produto médico não é elemento do tipo do art. 273, CP. Por definição legal, diferentemente do produto medicinal ou terapêutico, produto médico não utiliza meio farmacológico, como se infere da Resolução ANVISA RDC 185, de 22 de outubro de 2001, no seu Anexo I (definições), item 13 – Produto médico: Produto para a saúde, tal como equipamento, aparelho, material, artigo ou sistema de uso ou aplicação médica, odontológica ou laboratorial, destinado à prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação ou anticoncepção e que não utiliza meio farmacológico, imunológico ou metabólico para realizar sua principal função em seres humanos, podendo entretanto ser auxiliado em suas funções por tais meios.

Essa mesma definição vem reproduzida ipsis litteris no art.2º, II, da RDC n. 156, de 11 de agosto de 2006. Alguns dos exemplos são aqueles arrolados na Resolução ANVISA -RE 2605, de 11 de agosto de 2006  que estabelece a lista de produtos médicos de uso único proibidos de serem reprocessados, como são bisturis, agulhas, sondas, coletores de urina etc.

Poder-se-ia enxergar no elemento produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais do art. 273 do Código Penal, sobretudo pelos cognatos médico e medicinal, uma fórmula dilargada, como que trazendo ínsita uma autorização prévia de analogia de produto médico com produto medicinal (ou farmacêutico). Mas, a figura descrita não apresenta fluidez ou contornos esgarçados, e não gera, ou pelo menos não deveria gerar, incerteza sobre a conduta proibida. O produto médico é o aparelho, o equipamento ou o dispositivo médico utilizado por profissionais da saúde e sua ação principal não é obtida por um medicamento, enquanto o produto medicinal é qualquer substância ou composição apresentada como tendo propriedades curativas ou preventivas em relação a doenças humanas ou animais, com vista a estabelecer um diagnóstico médico ou restaurar, corrigir ou modificar as suas funções fisiológicas, e exerce uma ação farmacológica, imunológica ou metabólica.

Há entre eles diferença substancial. Enquanto o produto médico interage com o paciente através de um intermediário, que é o profissional de saúde dotado de habilidade técnica no momento da sua utilização, o  produto medicinal é um fármaco ou remédio destinado para fins terapêuticos ou medicinais, que interage com o paciente diretamente. A ação do produto médico é física, ao contrário do produto medicinal ou farmacêutico que atua de modo bioquímico.

Destinados a fins terapêuticos ou medicinais, são os produtos medicinais ou farmacêuticos, os fármacos1 e medicamentos que são deglutidos, injetados, inoculados, ou usados através da pele e têm finalidade profilática, curativa ou paliativa, e são regidos na forma da lei n. 6.360/1976 a que ficam sujeitos os medicamentos, drogas, insumos farmacêuticos e correlatos. E a Farmacopeia Brasileira (aprovado pela RDC da ANVISA  298/19, estabelece as exigências mínimas de qualidade, autenticidade e pureza de insumos farmacêuticos, de medicamentos e de outros produtos sujeitos à vigilância sanitária. O não atendimento integral às exigências farmacopeicas poderá resultar no enquadramento do produto como alterado, adulterado ou impróprio para uso, nos termos daquela lei, incorrendo os responsáveis nas sanções e providências estabelecidas na Lei 6.437/77.

O objeto material do crime do art. 273, CP, é o produto medicinal ou farmacêutico (remédio, medicamento, droga, fármaco, insumo), não o produto médico 

As normas jurídicas se compõem de palavras para traduzir a conduta humana e, muitas vezes, o legislador usa vocábulos que tira da linguagem cotidiana para  transmitir o pensamento semelhante ao que de costume se fala. E se o costume é norma jurídica sobre determinada relação de fato e resultante de prática cotidiana e uniforme, nem seria preciso lembrar que, na linguagem coloquial, produtos destinados a fins medicinais (melhor: produtos medicinais ou produtos de fins medicinais) são os remédios, os medicamentos no sentido geral. Jamais ocorreu ao vulgo chamá-los de produtos médicos. Até mesmo em dicionários é possível encontrar: significado de medicinal: (adjetivo): Que serve de remédio: “a camomila é uma planta medicinal”. A maconha tem fins medicinais.

Para alcançar o que o legislador talvez não teria logrado manifestar com a necessária clareza e segurança (lex certa), é preciso fixar o verdadeiro sentido e alcance da norma penal incriminadora, sobretudo porque o Direito Penal impõe, em razão do princípio nullum crimen sine lege, que ela deve ser interpretada de forma restritiva, não admitindo a analogia in malam parte. 

O objeto material sobre o qual recai a conduta descrita no tipo do art. 273 do Código Penal e suas derivações, em aplicação da lex stricta, não é qualquer produto, nem mesmo produtos médicos como mencionados, e sim o produtos medicinais ou farmacêuticos que, conceitualmente, estão arrolados dentre os itens do parágrafo 1º-A do mesmo artigo: medicamentos, matérias-primas, insumos farmacêuticos e os de uso em diagnóstico.

Ocorre que os nossos legisladores têm deliberado sempre às pressas, descurando a dimensão do assunto e sua profundidade, tomando os termos absolutos em sentido relativo, e os termos relativos em sentido absoluto. Criam cipoais legislativos em que se perdem todos, assistematizando o direito, gerando dificuldades enormes de aplicação e, quando interpretadas as leis, não são poucas as interpretações e correntes, doutrinárias e jurisprudenciais.

E nesse diapasão, foi editada a Lei dos Remédios a promover importantes alterações no Código Penal, mas com grandes equívocos, não apenas quanto ao preceito sancionador do art. 273 dando-lhe  gravidade bem superior ao homicídio que ocupa o ápice na orografia dos crimes, já objurgado de inconstitucional por desproporcionalidade. Ou equiparar medicamentos a substâncias saneantes e cosméticos, não equiparáveis, como já censurado pela doutrina e pela jurisprudência. Os principais e mais evidentes equívocos recaíram, mais gravemente, sobre o seu preceito descritivo, na cabeça da norma incriminadora, o que não passou  desapercebido à professora Carla Liliane Waldow Esquivel: “O objetivo do legislador era, a princípio, criar um tipo penal específico de fraude farmacêutica (aquela que é particularmente dirigida aos medicamentos), o que pode ser verificado pela coincidência entre as novas disposições relativas ao artigo 273 e os eventos que as motivaram. Nesse afã, no entanto, o legislador equivocou-se ao trazer para o tipo de injusto os objetos denominados como produtos terapêuticos ou medicinais, quando deveria ter sido mais preciso e feito alusão específica a medicamentos.(destaquei).

Como se não bastasse, para bem evidenciar que o objeto material do crime não pode ser o produto médico (instrumento, equipamento, dispositivo, material etc.), mas, sim, o produto medicinal ou farmacêutico como substância para fins terapêuticos ou medicinais, é importante perquirir o sentido e a inteligência do texto legal para se ter sua compreensão, sua exata significação ou sentido.

Como toda lei, apesar de sua clareza, deve ser interpretada, note-se que: 

1) em interpretação histórico-sociológica, buscando o sentido efetivo na circunstância e momento de criação da norma, considerando os antecedentes, há de ser lembrado que na década de 1990 houve uma sequência de escândalos públicos sobre o que ficou conhecido popularmente como “remédios B.O.” (bom para otário), envolvendo a falsificação de remédios no Brasil, a exemplo de antibióticos (Trioxina, Triaxin e Cefoxitina), e outros usados no combate ao câncer (Granulokine e Androcur), sem falar do anticoncepcional feito de farinha (Microvlar).

Nesse cenário, em precedentes preparatórios para recrudescer a repressão penal no combate a essas práticas perigosas, foi apresentado o projeto de lei n. 214/95 para inserir esse crime entre os hediondos; em sua exposição de motivos, o Dep. Benedito Domingos destacou que “A incidência da ação de fraudadores inescrupulosos, ávidos de enriquecimento ilícito, ainda que à custa da disseminação de substâncias nocivas, e até danosas, à saúde, hoje, vem ocorrendo com frequência, explorando a boa fé pública, com a falsificação de medicamentos, em sua maioria, autousáveis pelo povo”.

Como sucedâneo desses escândalos, surgiu também o Projeto 4.207/98 que foi convolado na lei 9.677 de 2 de julho de 1998, chamada no âmbito da saúde e no meio jurídico de ... LEI DOS REMÉDIOS, denominação  indicativa e inequívoca, por obviedade, do objeto material do delito, e assim por ele dando nova redação ao artigo 273 do Código Penal. Deveras, nunca antes fora cogitada a falsificação, adulteração ou corrupção de aparelhos, materiais, equipamentos, dispositivos etc., enfim, de produtos médicos. E se o quisesse, o legislador de 1998 teria aproveitado a oportunidade de inseri-los no § 1º-A do art. 273, CP, “incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo...”

2) em interpretação sistemática, as normas devem ser consideradas como parte do sistema mais amplo que o envolve, permitindo conhecer o espírito de uma e das outras. Vocábulos no seu conjunto e sua conexão com outros, podem identificar os seus significados em mais de um trecho da mesma lei. Por inferências deduzíveis do seu contexto, a tutela jurídica da saúde pública no Código Penal brasileiro, primitivamente, de forma unificada previa no art. 272 do CP “corromper, adulterar ou falsificar substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo, tornando-a nociva à saúde”. Depois, foram desdobrados os tipos: art. 272 quanto à substância ou produto alimentício, e art. 273 quanto à substância ou produto medicinal. Ao empregar para o nominador comum (substância) as adjetivações (alimentícia, medicinal) fez denotar a essência  e a equipolência quanto a ser o objeto do crime coisa de consumo humano, nele ministrado com fins  profiláticos, curativos e paliativos.

Afastando qualquer dúvida, é elementar em hermenêutica que, quando uma disposição legal contém uma fórmula genérica e em seguida uma fórmula derivada ou exemplificativa, devem ser compreendidos, segundo a natureza, os casos análogos. Nesse sentido, é  importante destacar que: 

a)  na modalidade derivada (§ 1º, do art. 273, CP) descreve o tipo a conduta de importar, vender etc. ou entregar a consumo o produto falsificado, corrompido ou alterado (i.e., produto medicinal ou farmacêutico destinado a consumo humano, o que não é feito com o produto médico);

b)  o § 1º-A, do art. 273, CP, coerentemente, dispõe incluir entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas e os insumos farmacêuticos (i.e., os fármacos, a exemplo do IFA – ingrediente ou insumo farmacêutico ativo, e os de uso em diagnóstico a exemplo do contraste). Segundo a communis opinio doctorum, a inserção de cosméticos e saneantes é aberração jurídica por equipará-los, na ofensibilidade à saúde pública, produtos não equiparáveis.

c) o § 1º-B, do art. 273, CP,  refere              

(inciso I) a produto sem registro, como previsto especialmente nos arts. 3º, X, 6º, §, e 12 a 24-B, da Lei n. 6.360/1976  que “Dispõe sobre a Vigilância Sanitária a que ficam  sujeitos os Medicamentos, as Drogas, os Insumos Farmacêuticos e Correlatos, Cosméticos, Saneantes e Outros Produtos, e dá outras Providências”.

(inciso II) a produtos em desacordo com a fórmula - que é composição com apresentação dos ingredientes e dosagens, e tais são os preparados oficinais segundo indicação da farmacopeia ou a fórmula magistral com uma prescrição específica, atendendo às necessidades de um paciente único (evidentemente, produto médico, sobre não possuir substância, não contém fórmula). Essa previsão tem correspondência, por infração administrativa na lei n. 6.360/76 que em seu art. 62 considera alterado, adulterado ou impróprio para o uso o medicamento, a droga e o insumo farmacêutico: II - quando houver sido retirado ou falsificado, no todo ou em parte, elemento integrante de sua composição normal, ou substituído por outro de qualidade inferior, ou modificada a dosagem, ou lhe tiver sido acrescentada substância estranha à sua composição, de modo que esta se torne diferente da fórmula constante do registro, e

(inciso IV) a redução de seu valor terapêutico ou de sua atividade, relacionado à eficácia e segurança do medicamento quanto aos benefícios para a saúde (i.e. no índice terapêutico, a redução da concentração tóxica segura). Essa disposição é correlata à infração administrativa prevista na lei n. 6.360/76 que em seu art. 62 considera alterado, adulterado ou impróprio para o uso o medicamento, a droga e o insumo farmacêutico: I – que houver sido misturado ou acondicionado com substância que modifique seu valor terapêutico ou a finalidade a que se destine.

 

3) em interpretação teleológica, há de ser buscado o sentido do espírito da lei e sua razão finalística, mediante compreensão do direito do seu ponto de vista funcional, acrescendo-se a realidade concreta que motivou a produção da norma em questão, que foi, como dito linhas atrás, de exacerbar a repressão em face da profusão, não de produtos médicos, mas de medicamentos falsificados, através da Lei dos Remédios. Norteado por esses parâmetros, pode ser visto que a mens legis e a mens legislatoris sempre foi de punir a contrafação, corrupção e alteração apenas de medicamento, remédio, fármaco etc., como produto ou substância destinada para fins terapêuticos ou  medicinais:

a) que pode ser objeto de consumo humano, impossível em se tratando de produto,  instrumento, dispositivo ou material médico (obs: é necessário distinguir na semiótica o significado de consumo na acepção civil e, em interpretação lógico-sistemática, a adequação e coerência do emprego desse vocábulo ao ramo do direito penal), como expressamente indicado nos tipos penais, relacionando-os à substância: em envenenamento de  água potável ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo (art. 270), corrupção ou poluição de água potável tornando-a imprópria para consumo ou nociva à saúde (art. 271),  corrupção, adulteração, falsificação ou alteração de substância ou produto alimentício destinado a consumo (art. 272), emprego no fabrico de produto destinado a consumo, de substâncias não permitidas (art. 274), venda, exposição, entrega a depósito produto a ser entregue a consumo (art. 276) e fabricar, vender etc. ou de qualquer forma entregar a consumo substância nociva à saúde (art. 278);

b) quanto às informações inverdadeiras, de produtos alimentícios, terapêuticos ou medicinais, da existência de substância que não se encontra em seu conteúdo ou em quantidade menor (art. 275), vale dizer, inexistência ou redução do valor alimentício ou do valor terapêutico do produto medicinal ou farmacêutico, absolutamente incabível tratando-se de produto médico;

c) quanto à substância destinada à falsificação de produtos alimentícios, terapêuticos ou medicinais (art. 277), ou seja, ingredientes ou insumos que se ajuntam à final contrafação, e

d) quanto ao fornecimento de substância medicinal em desacordo com a receita médica (art. 280); esse documento integra o prontuário médico, e indica uma medicação; chama-se prescrição quando o fármaco vai registrado no prontuário. Ou seja, sempre foi indicativa para remédio ou medicamento, não para produto médico.

Em comum, todos os tipos e subtipos penais (arts. 270 a 280, do Código Penal), direta ou indiretamente, tratam de substância como produto para consumo humano.

Quando o tipo do art. 273 caput  e  outros que dele derivem, descrevem o produto destinado a fim terapêutico ou medicinal, outra coisa não é senão o produto farmacêutico, seja fármaco ou medicamento, mesmo porque, elementarmente - e como decorre do seu conceito normativo -, produto médico não é uma substância, não tem composição química, e, além do mais, não contém fórmula, mas sim conformação estrutural a permitir repetidos processos de limpeza, preparo, desinfecção (inativação irreversível de microorganismos) ou esterilização (redução a uma chance em milhões, de existência de um organismo viável até que perca sua eficácia e funcionalidade).

Criminaliza-se no artigo 273, portanto, a contrafação, corrupção ou adulteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais que contém, em si, o remédio, o medicamento (genericamente) que também pode se constituir em produto para fins de diagnóstico (especialmente, o fármaco para contraste).

4) em interpretação doutrinária, Júlio Mirabete (CP anotado, ed. 2005, p. 157) em comentários a esse tipo penal, já ensinava que “O crime pode ser praticado com o emprego de substância diversa das que entram na composição normal do produto, embora externamente tenha esta aparência idêntica ou semelhante à genuína”. (destaquei)

Em outra oportunidade, o mesmo jurista e  Renato N. Fabbrini3 esclarecem que: “A lei inclui expressamente, no § 1º-A, todos os medicamentos (substâncias ou preparados que se utilizam como remédios), as matérias-primas (substâncias brutas principais com que são fabricados os medicamentos), os insumos farmacêuticos (componentes da produção), cosméticos (produtos utilizados para a limpeza, conservação ou maquiagem da pele), saneantes (produtos de limpeza) e os de uso em diagnóstico (conhecimento ou determinação de doença)”.

Luiz Régis Prado, anota que  “No tipo penal, a expressão “fins terapêuticos ou medicinais é definida por Maggiore como “as matérias preparadas ou empregadas para prevenir ou curar as enfermidades humanas (não animais), vendidas por farmacêuticos ou não farmacêuticos, de uso externo ou interno, inscritas ou não inscritas na farmacopéia oficial4.

Cezar Roberto Bitencourt, tratando dos produtos sobre os quais recaem as condutas tipificadas no art. 273, discorre que  “...isto é, devem ser produtos efetivamente destinados a fins terapêuticos ou medicinais. Nesse âmbito estão incluídos “todos os meios empregados com o objetivo de prevenir ou de curar doenças, e estão relacionados com sua composição farmacêutica” (apud Carla Liliane Waldow Esquivel, Breves considerações a respeito da fraude em produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais prevista no artigo 273 do Código Penal, Revista de Ciências Jurídicas, UEM, v. 6, n. 2, 2008, p. 13)5.              

Na doutrina de  Guilherme de Souza Nucci6 sobre os elementos do tipo do art. 273: “Falsificar (reproduzir, por meio de imitação, ou contrafazer), corromper (estragar ou alterar para pior), adulterar (deformar ou deturpar) ou alterar (transformar ou modificar) produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (é a substância voltada ao alívio ou à cura de doenças – fins terapêuticos –, bem como ao combate de males e enfermidades – fins medicinais). O parágrafo 1º-A, do artigo 273, do Código Penal, norma de caráter explicativo, por sua vez amplia o rol de objetos materiais sobre os quais pode recair a conduta do autor do delito. Preceitua: Incluem-se entre os produtos a que se refere este artigo os medicamentos, as matérias-primas, os insumos farmacêuticos, os cosméticos, os saneantes e os de uso em diagnóstico”.

O reúso de produto médico reprocessado não é crime

O reprocessamento de  produto material médico de uso único, é legalmente previsto e admitido, ao contrário do que se tem sido suposto. O problema estaria não na realização do reprocessamento em si, mas em como estaria sendo realizado por empresas o reprocessamento e a reutilização de produtos médicos, se em desacordo com as normas da ANVISA.       

O produto médico de uso único, ou descartável, tem uma vida funcional que não pode ser precisamente determinada. O que difere um produto médico de uso único, de outro reusável, transcende questões econômicas, ou de complexidade tecnológica. Centra-se na exclusiva descrição e intenção do fabricante do produto, como se infere da norma.

Os dizeres “Uso Único”, ou “O fabricante recomenda o uso único” (art. 7º, § único, RDC n° 156/2006), posto que rotulados pelo fabricante, não significam o enquadramento automático do produto como não passível de reprocessamento. Assim, quando o fabricante apõe essa menção sobre o produto que ele vende, significa dizer que sua responsabilidade se limita ao primeiro uso que dele é feito, dela se exonerando se o utilizador do material não seguir suas instruções e advertências procedendo à sua reutilização.

Em razão disso, a Nota Técnica n. 001/2013/GEMAT/GGTPS/ANVISA em seu item 9, alínea “d”, registra que a inscrição “fabricante recomenda uso único” é exclusiva para produtos considerados passíveis de processamento e não pode ser acompanhado de frases tais como “descartar após o uso” ou “destruir após o uso”, que orientem como uso único. Utiliza-se para a vedação a inscrição “proibido reprocessar”.

Importantíssimo observar que a referência “uso único” ou assemelhado, portanto, não constitui em si mesmo uma prova que a reutilização comporta riscos, mas sobretudo um meio para o fabricante de limitar sua responsabilidade recusando de assumir um risco potencial associado à reutilização, tal como se depreende do art. 9º, da mesma Resolução ao dispor que “a segurança na utilização dos produtos reprocessados é de responsabilidade dos serviços de saúde”.

Quanto ao reprocessamento de produtos médicos de uso único, o assunto vem normatizado estabelecendo duas condições:

a) primeira, é se o material consta da lista publicada pela RE/ANVISA n. 2605/2006 que arrola os produtos médicos enquadrados como de uso único, cujo reprocessamento é proibido, e

b) a segunda condição é quando a rotulagem do produto apresentar os dizeres “Proibido Reprocessar”, conforme estabelece a RDC/ANVISA n.156/2006, que dispõe sobre o registro, rotulagem e reprocessamento de produtos médicos.

Quando as duas condições acima referidas não são evidenciadas, o produto será considerado passível de processamento, ou seja, não há proibição quanto ao seu reprocessamento, desde que os serviços que se propõem a realizar essa atividade sigam o que preconiza a RE/ANVISA n. 2606/2006, sobre a elaboração, validação e implantação de protocolos de reprocessamento de produtos médicos, e a RDC/ANVISA n. 15/2012, que dispõe sobre requisitos de boas práticas para essa atividade.

Assim, a RESOLUÇÃO ANVISA RE n. 2605, de 11 de agosto de 2006, dispõe: considerando o disposto no inciso II do artigo 8º da Resolução RDC/ANVISA nº 156 de 11 de agosto de 2006; considerando a necessidade de indicar os produtos que no estágio atual de conhecimento não devem ser reprocessados, e considerando que a matéria foi submetida à apreciação da Diretoria Colegiada, que a aprovou em reunião realizada em 7 de agosto de 2006, resolve: Art. 1º Estabelecer a lista de produtos médicos enquadrados como de uso único proibidos de ser reprocessados, que constam no anexo desta Resolução”.

Como ensinam as professoras Eliana Auxiliadora Magalhães Costa e Ediná Alves Costa, do Instituto de Saúde Coletiva e da  Universidade Federal da Bahia “Quanto aos aspectos de ordem legal, ainda não existe, no Brasil, legislação específica que impute ao promotor do reúso qualquer responsabilidade criminal, situação freqüente nos Estados Unidos”7.

O dilema ético quanto à reutilização de produto médico de uso único

O dilema reside entre a obrigação de garantir a gestão mais eficiente dos recursos para a prestação de serviços, e a necessidade de proteger a saúde e segurança de pacientes nos quais o equipamento de uso único está planejado para ser reutilizado. Diante da incerteza quanto ao risco associado a esta prática, as opções seriam: não reutilizar o produto médico de uso único ou gerenciar este risco responsavelmente, garantindo uma prática segura mediante supervisão estrita do reprocessamento e reutilização.

O assunto é bem antigo, como revelam muitos estudiosos do assunto. Na Europa proíbem o reprocessamento de descartáveis, mas o único país que não os reutiliza é a França. Na Espanha, o fazem em mais de oitenta por cento. Outros permitem, mas exigem rígido controle, como é o caso da Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Holanda, Eslováquia e Suécia. Na Ásia, quase cem por cento dos serviços de saúde reprocessam os produtos médicos de uso único. Na África, América Central e América do Sul, o reprocessamento é prevalente por falta de recursos médicos e financeiros.

No Brasil, conforme vasta literatura, o reprocessamento dos produtos de uso único é uma realidade nos serviços de saúde, sem dados ou informações  sobre o volume e intensidade dessa prática. Sabe-se apenas que os hospitais brasileiros os reprocessam devido às grandes diferenças sócio-econômicas e culturais existentes entre as diferentes regiões do país.

Por estas e inúmeras outras razões, muitos países inclusive o Brasil, não se animaram a dar configuração criminal ao fato da reutilização de material médico de uso único.

________________

1 Seguindo terminologias da portaria ministerial n. 3.916/ MS/GM, do Ministério da Saúde, há estreita relação entre fármaco e medicamento: o fármaco é princípio ativo para a formulação dos medicamentos que são o produto final para ingestão do paciente na busca da melhoria das condições de saúde. Ou seja, o medicamento é o fármaco beneficiado em doses ou concentrações terapêuticas, com finalidade de curar ou demais ações relacionadas à saúde do paciente. Existem os fármacos/medicamentos que também  são produtos aplicados no corpo com a finalidade de auxiliar o diagnóstico de doenças ou avaliar os funcionamentos de órgãos, como são os contrastes radiológicos (renal, hepático, digestivo, etc.), meios auxiliares para o diagnóstico oftalmológico e outros.

2 (p. 195) “Tratamento Jurídico-Penal das fraudes farmacêuticas no âmbito da saúde pública brasileira na atualidade”, Curitiba, 2016. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Direito, área de concentração em Direito do Estado. Disponível em clique aqui.

3 Manual de direito penal: parte especial, arts. 235 a 361 do CP. 22°, ed. São Paulo: Atlas, 2007. v. 3.

4 Curso de Direito Penal Brasileiro, vol. 3/166, São Paulo, Editora RT, 2008

5 Tratado de Direito Penal, Parte Especial 4/p.358, 9ª. Edição revista, ampliada e atualizada,2015

6 Manual de Direito Penal, Parte Especial, 7ª. ed. São Paulo,  Revista dos Tribunais, 2011.

7 Eliana Auxiliadora Magalhães Costa e Ediná Alves Costa, Reprocessamento de produtos médicos: da política regulatória à prática operacional, 5ª.folha, p. 4791, in fine do PDF. Clique aqui.

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Fernando Fukassawa
Promotor de justiça aposentado/SP.

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