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Exceção de contrato não cumprido: conceito e aplicabilidade atrelada à pandemia do coronavírus

O momento vivido foi de caráter ímpar tamanho, que o Direito precisou, de forma rápida, se adequar e tentar, de certa forma, amenizar os danos resultantes dos incontáveis inadimplementos.

18/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

Pensar no cenário ideal em termos contratuais é imaginar o pleno adimplemento entre as partes. Há um vínculo obrigacional entre duas ou mais pessoas e o cumprimento da obrigação, ou seja, a entrega da prestação, se dá de forma perfeita, conforme todas as cláusulas e prazos previamente estabelecidos. Tal situação, apesar de devidamente cumprida, não surte maiores efeitos para o Direito, afinal, é justamente o inadimplemento que irá inaugurar a necessidade da parte de se recorrer ao belo mundo jurídico a seu dispor, como bem pontuava Pontes de Miranda ao afirmar que "o Direito nasce quando ele é violado". 

Há, entretanto, certas circunstâncias em que, antes mesmo do adimplemento e visando afastar a resolução do contrato, a parte resolve, tendo vista as atitudes omissivas da contraparte, usar de seu direito a não cumprir, por certo período de tempo, com suas obrigações. Tal fenômeno descrito vem apresentando, principalmente na conjuntura atual pandêmica, bastante notabilidade e é denominado exceção de contrato não cumprido, previsto no Código Civil nos artigos 476 e 477.

Como um episódio ligado a preceitos de reciprocidade, a exceptio non adimpleti contractus  se configura como uma oportunidade que é dada pelo ordenamento, de fazer com que o contratante, que agiu lealmente e de boa-fé, não cumpra com suas obrigações, tendo em vista que a outra parte também não cumpriu com as dela. Essa ideia é apresentada no texto do artigo 476, que, de forma clara, afirma que, em contratos bilaterais (aqueles em que há obrigações para ambas as partes), nenhuma das partes pode exigir, antes do cumprimento de sua obrigação, a realização da do outro, de modo que existe uma interdependência de deveres entre cada um dos envolvidos na relação. 

Nesse sentido, há de se fazer referência ao conceito de causa do contrato que, apesar da nomenclatura, nada se assemelha ao motivo subjetivo que levou o indivíduo a contratar. Na verdade, a causa está, de maneira objetiva, relacionada ao propósito jurídico social de realização daquele negócio. Portanto, vê-se que a prerrogativa de exceção de contrato não cumprido está intimamente relacionada à função social e econômica oriunda do pacto realizado. Em outras palavras, a causa do dever de cumprir a prestação da parte A, está diretamente ligada à causa que fará com que a parte B tenha de arcar, também, com suas incumbências.

Como há de se observar, o tema atua como um interessante meio de defesa da parte que quer manter o vínculo obrigacional ativo e está em dia com suas obrigações, porém não quer acabar se prejudicando e agindo de forma unilateral em um negócio jurídico que compreende exigências bilaterais e, portanto, mútuas. Desse modo, para não ter de resolver o contrato, a lei dispõe de tal alternativa.

Um exemplo concreto e bastante corriqueiro seria em um contrato de compra e venda, em que um indivíduo resolve adquirir um imóvel na planta com uma construtora. Ele inicia o pagamento de suas prestações e, quando vai visitar o andamento da obra, se depara com um cenário de obra sequer iniciado, quando, no cronograma estabelecido, as ações da contraparte já deveriam ter começado. Nesse caso, ele se depara diante de uma situação conflitante visto que, apesar de poder pedir a resolução do vínculo e ter a oportunidade de recorrer ao que já foi pago, ele deseja manter a relação, pois quer o seu imóvel e entende que atrasos podem ocorrer.

É justamente sob essa ótica complexa que a prerrogativa da exceção de contrato não cumprido entra em ação, atribuindo, ao contratante, o direito de suspender com seus pagamentos, sem extinguir com o contrato, estabelecendo, de tal modo que, enquanto a construtora não inicia a obra, ele, de forma recíproca, não permanecerá pagando, ou seja, cumprindo com sua obrigação.

Uma questão fundamental dentro do tópico é o entendimento de que há situações em que a exceção do contrato não cumprido é afastada, seja por renúncia, impossibilidade de prestação ou se determinada cláusula estiver disposta como, por exemplo, a cláusula solve et repete, que envolve toda uma análise de a quem competia oferecer a prestação primeiro.

Em linhas gerais, a cláusula impõe ao devedor que há de se cumprir com sua obrigação, independentemente da postura da contraparte, ou seja, em caso de dúvidas quanto ao adimplemento, primeiro o devedor realiza o seu, efetua o pagamento e, depois, se for o caso, exige o cumprimento do negócio estabelecido ou a resolução em perdas e danos.

O artigo 477 do Código Civil traz, ainda, uma circunstância interessante como objeto de reflexão. O texto pontua que, em caso de uma das partes vir a apresentar, depois de concluído o contrato, explícitas dificuldades patrimoniais que acabem por tornar duvidosa ou dificultada a entrega da prestação, pode a outra parte suspender suas obrigações, até que a situação se regularize ou ela ganhe garantia de fato de que será satisfeita. Assim, tal regra evita a inauguração de situações em que, clara e notoriamente, a entrega da prestação não será realizada, afinal, o artigo corresponde a uma maneira de solucionar excepcionais imprevistos ou tentativas de má-fé na atuação.

A partir do que foi exposto, há de se conceber que, apesar de atuar como uma prerrogativa de defesa, a exceção do contrato não cumprido não pode ser convertida em um desejo da parte de se valer do inadimplemento, mesmo menor que seja, da outra, para que, com isso, não cumpra também com o seu. O mecanismo está, portanto, diretamente relacionado à boa-fé e às concepções de função social, como foi supracitado.

Nesse sentido, no julgamento de um caso que envolva o tema, há de se apresentar bastante sensibilidade para evidenciar, de fato, a relevância do comportamento de uma das partes, para que a outra parte possa se utilizar de tal prerrogativa. Em outras palavras, como a exceção do contrato não cumprido é uma ótima oportunidade de equilíbrio para aqueles que agem devidamente e buscam o efetivo cumprimento do contrato e não a sua resolução, há de se analisar com cautela os casos em que há evidências de abuso do uso de tal mecanismo.

Por fim, torna-se evidente que o tema é de importância ímpar para a pacificação e preservação das relações obrigacionais, principalmente, no cenário atual em que encontram-se os contratos ao redor de todo o mundo, afinal, a pandemia instalou uma atmosfera de instabilidade, incerteza e mudanças e, desse modo, há de se enaltecer e refletir ainda mais quanto ao mecanismo tratado, visto que este é um direito subjetivo e disposto para cada um de nós.

Lucas Jansen de Mello Schymura
Estudante do 5º período de Direito da PUC-RJ. Atualmente estagiando na 7ª Vara da Fazenda Pública na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

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