Migalhas de Peso

Covid-19 – Vacinação dos trabalhadores – Direito/Dever de todos

Os impasses podem ser resolvidos com bom senso e, preferencialmente, por regulamentação legal ou negociação coletiva.

11/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A chegada das vacinas contra o covid-19 suscita duas polêmicas no mercado de trabalho: a possibilidade de empresas adquirirem doses para seus trabalhadores e a obrigatoriedade da vacinação.

São discutidos os aspectos éticos, jurídicos e sociais do patrocínio empresarial da vacinação.

A instituição de uma parceria público/privada para imprimir mais agilidade à vacinação sofre resistência em vários setores, em entrevistas, em artigos publicados na imprensa e revistas especializadas.

A verdade é que, no campo das relações de trabalho as empresas sempre participaram de campanhas de vacinação, o que se pode considerar um procedimento absolutamente corriqueiro há dezenas de anos.

A intervenção empresarial gera evidentes reflexos positivos sobre toda a população ao propiciar mais doses, reduzindo a carga sobre o Ministério da Saúde e a fila de espera na vacinação.

Alega-se que isso configura discriminação porque os trabalhadores, em várias situações, teriam tratamento preferencial ou mais vantajoso na comparação com outras pessoas, inclusive grupos de risco.  

Não nos parece haver conduta discriminatória.

A preocupação com a igualdade de oportunidades, absolutamente correta, não permite atentados a dois valores fundamentais da civilização: liberdade e igualdade. Formas muito rígidas, repressivas, de impor igualdades assumem feição autoritária, quase estalinista.

A igualdade moderna é estreitamente relacionada ao princípio da não-discriminação, que só condena a diferença de tratamento arbitrária, sem base em critérios razoáveis, objetivos e proporcionais.

Discriminar é criar diferenças para o exercício de direitos com base em critérios injustificados. Na doutrina se costuma dizer que o critério de justiça, ao invés da igualdade, passou a se sustentar na equidade.

Equidade é equilíbrio entre igualdade e direito. A igualdade está sujeita a diferentes significados e a certo subjetivismo interpretativo, ao passo que a não-discriminação é conceito único e concreto, identificável mediante critérios objetivos.

Quando se combate a discriminação, está-se a tutelar a dignidade da pessoa humana e a oferecer bem-estar individual e coletivo, com reflexos econômicos e sociais.

Qualquer tratamento diferenciado deve ser proporcional, necessário e razoável. A igualdade tem duas faces: situações iguais não podem ser tratadas de modo diferente e situações diferentes não podem ser tratadas de modo igual, a menos que se tenha uma razão objetiva.

No caso de vacinação nas empresas há uma causa objetiva, o vínculo jurídico de trabalho, sendo vários os valores em jogo:

a)       interesse individual dos trabalhadores e empresas:

b)       interesse coletivo no normal desenvolvimento da atividade empresarial, na geração e manutenção de empregos;

c)       interesse público na retomada econômico como condição de desenvolvimento do país.

Não se sustenta o argumento de que as empresas concorreriam com o Estado na aquisição das vacinas. Bastam algumas regras para evitar esse problema, como a preferência de compra de laboratórios que não vendam para o governo.

Na prática, aliás, a autorização de compra pela iniciativa privada será estimulo à produção por outros laboratórios, pois terão assegurado acesso ao mercado. A proibição, ao contrário, favorece apenas os laboratórios escolhidos pelo Estado, desincentivando investimento dos demais.

A saúde é uma garantia do trabalhador prevista no artigo 7º., inciso XXII, que estabelece "redução dos ricos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança",

O artigo 198 da CF diz que o sistema único de saúde tem como diretriz a participação da comunidade e, no artigo 199, estabelece que a assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

Portanto, em nosso ordenamento jurídico nada está a vedar a vacinação dos trabalhadores nas empresas.

O meio ambiente saudável constitui direito humano fundamental, conforme assentado pela moderna teoria geral do direito.

O que se pretende preservar é o acesso à qualidade de vida, para que a saúde física e mental não seja comprometida por agressões ambientais de todo tipo, desde a tecnologia até os vírus que atacam o organismo humano.

Há uma ordem pública ambiental específica com regras imperativas para tutela do trabalhador que se aplica também a doenças que não têm relação com o trabalho, como é o caso da covid-19. O direito ambiental do trabalho, em sentido amplo, é o conjunto de normas, princípios e instituições voltados a preservar a vida, saúde e o equilíbrio entre a natureza e o homem.

Trata-se de um direito/dever tanto dos trabalhadores como das empresas, estendendo-se não apenas a empregados, mas também autônomos, avulsos, temporários, eventuais, de plataformas etc;

A covid-19 não é doença ligada ao trabalho porque, afinal, se trata de uma pandemia.  Mas os cuidados sanitários - "compliance" sanitário - devem abranger todos os que nela trabalham. A preservação da saúde não pode ser desigual apenas pelo fato de os trabalhadores manterem vínculos jurídicos formalmente distintos pois, afinal, o meio ambiente nocivo os agride igualmente.

No direito internacional, a Convenção 148 da Organização Internacional do Trabalho, que cuida dos riscos profissionais no local de trabalho decorrentes de contaminação do ar, do ruído e vibrações, tem como princípio fundamental a eliminação do atentado à saúde, independentemente de sua origem.

Caminhamos para a noção de "habitat laboral", ou seja, o ambiente de trabalho como fator de qualidade de vida, a partir de uma concepção ampla que atrai tudo que envolve e condiciona, direta e indiretamente, o local onde o ser humano busca sua realização profissional, pessoal e financeira.

Neste passo, é preciso estimular o diálogo social, com participação efetiva dos sindicatos profissionais nos protocolos sanitários e códigos de conduta aplicados pelas empresas.

Ao invés de proibir, o Estado deve estimular as empresas a vacinar seus trabalhadores contra a terrível covid-19.

A recusa a receber a vacina oferecida é questão jurídica relevante. Ninguém pode ser obrigado a oferecer o braço para vacinação porque, além de tal conduta violenta tipificar crime contra a pessoa, se estaria a violar outro direito humano fundamental.

O STF, ao julgar as ADIs 6586 e 6587, fez distinção entre vacinação compulsória e vacinação forçada. O indivíduo não pode ser forçado à vacinação, mas, na hipótese de vacinação compulsória, a recusa gera licitamente consequências como a restrição de acesso a ambientes e ao exercício de determinadas atividades.

Ficará sujeito a medidas restritivas de toda ordem e até mesmo à dispensa por justa causa, se empregado, ou rescisão contratual, se outra for a qualificação. O tema não é de interesse individual; o interesse coletivo e o interesse público impõem imunização ampla para neutralização do vírus.

Os impasses podem ser resolvidos com bom senso e, preferencialmente, por regulamentação legal ou negociação coletiva.

Claro que a recusa justificada pelo trabalhador deve ser aceita quando, por exemplo, exibir laudo médico vetando a vacinação.

Não se sustenta a recusa por serem vacinas "experimentais", pois, diante da gravidade da pandemia, o uso emergencial foi autorizado pela ANVISA e diversas agências.

A propósito, se a empresa tem o poder de exigir a "apresentação do comprovante de vacinação" contra as doenças especificadas na portaria 597/2004 do Ministério da Saúde, tem também o de impor vacinação contra uma pandemia de gravidade sem precedentes.

Muitas empresas, se não garantirem um meio ambiente saudável, do qual a vacinação é componente essencial, serão prejudicadas em sua atividade econômica, no plano concorrencial e nas relações com os consumidores (restaurantes, bares, cinemas etc.)

As opiniões divergentes revelam riscos contrapostos ao empregador. Para alguns a omissão significa submeter trabalhadores a ambiente nocivo. Para outros, a exigência de vacinação é ilícita, não pode implicar sanções e enseja indenização por dano moral.

Tudo está a recomendar a urgente regulamentação pelo Estado e, em sua ausência, a negociação de regras claras entre empresas e sindicatos.

  

Luiz Carlos Amorim Robortella
Sócio de Robortella e Peres Advogados.

Antonio Galvão Peres
Sócio advogado do Robortella e Peres Advogados.

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