Com grande júbilo, a comunidade jurídica e notadamente os processualistas civis receberam a notícia, no amiudar do difícil ano de 2020, da instituição, pelo Conselho Nacional de Justiça, de um Grupo de Trabalho “para diagnosticar, avaliar e apresentar medidas voltadas à modernização e à efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de execução e cumprimento de sentença, excluídas as execuções fiscais”. A constituição do grupo se deu por meio da Portaria-CNJ 272, de 4 de dezembro de 2020.
Destacados estudiosos do Direito Processual Civil, professores, advogados, magistrados, defensores públicos e tabeliães trabalharão sob a batuta do Ministro Marco Aurélio Bellizze, do Superior Tribunal de Justiça, para o hercúleo esforço de diagnosticar os problemas do processo executivo civil brasileiro e propor soluções no formato de “recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário”.
A iniciativa do CNJ de reunir um grupo de notáveis processualistas é louvável. É fundamental que os órgãos de gestão judiciária se abram para ouvir o que os demais setores da sociedade têm a dizer para que os seus serviços sejam otimizados e o sistema funcione sempre em modo de aperfeiçoamento.
Dito isso, serve esta missiva para uma tentativa de contribuição para com os trabalhos do grupo, a fim de levantar alguns pontos que este professor julga pertinentes que sejam analisados se o que se pretende é a melhora do sistema processual de execução civil.
O Relatório Justiça em Números 2020, ano-base-2019, editado e publicado pelo CNJ, revela dados preocupantes com relação ao processo executivo brasileiro. Vale relembrá-los: os processos de execução totalizam 55,8% do total de processos em trâmite.
Dentro desse universo, 70% dos processos executivos têm natureza fiscal, que são responsáveis pelas altas taxas de congestionamento. No próprio relatório o CNJ reconhece que, em boa parte dos casos, foram esgotados os meios previstos em lei para a localização de patrimônio em nome do devedor, sendo infrutíferas as tentativas.
Com relação ao tempo médio do processo, percebe-se que, na Justiça Comum, o grande problema está na execução. Enquanto que a fase de conhecimento em primeiro grau dura em média 1 ano e o procedimento em segundo grau, 10 meses, a execução judicial dura em média 2 anos e 5 meses. No campo da execução extrajudicial, alavancados os números pelo problema da execução fiscal, a situação é ainda mais aterradora: a média global de duração é de 7 anos e 9 meses. Excluídas as execuções ficais, o tempo cai, mas ainda é largo: 5 anos e 8 meses.
Apesar dos gargalos da execução ainda serem um problema, não se pode dizer que a legislação não avançou. Para ficar em exemplos de reformas operadas neste século, tem-se em 2002 a entrada em vigor da lei 10.444/02, com mudanças pontuais nas regras do processo executivo.
Já em 2005, a lei 11.232/05 promove mudanças mais impactantes no sistema processual, trazendo para o CPC/1973 a ideia de sincretismo processual, com vistas a garantir maior efetividade da tutela executiva.
Com o advento do CPC/2015 busca-se reorganizar a dinâmica das normas processuais, mantendo-se muito do que já vigia, mas com inserções de novos institutos importantes para otimizar a sistemática do processo civil.
Essas mudanças legislativas todas já indicam que os esforços no âmbito da norma processual foram empreendidos. Não se pode acusar os processualistas e nem mesmo o legislador de serem coniventes com o estado de coisas em que se encontra o processo executivo brasileiro.
Não que não possa haver novas reformas legislativas ou que não se possa pensar em soluções no âmbito dos textos legais para aprimorar o sistema. Deve haver ainda meios inovadores à disposição. Talvez mesmo a desjudicialização da execução, que se pretende a partir de dois Projetos de Lei que estão tramitando no Congresso Nacional, seja uma saída para desafogar o Judiciário e conferir maior efetividade à tutela executiva.
Entretanto, essa missiva tem a finalidade de levantar alguns questionamentos periféricos a essa discussão sobre a desjudicialização e provocar a reflexão sobre temas que fogem do âmbito do direito processual.
Pelo que se apresenta, cabe, antes de tudo, questionar se a mudança ou a edição de novos textos legais sobre direito processual seja a real necessidade e seja aquilo que vai, de fato, gerar uma otimização do processo executivo.
Cabe ainda firmar posição em sentido contrário a qualquer ideia que resulte em relativização das garantias processuais do jurisdicionado. Um exemplo claro está no que vem ocorrendo com a adoção de medidas executivas atípicas, autorizadas pelo CPC/2015, art. 139, IV, por meio de decisões judiciais que desrespeitam as garantias fundamentais do contraditório e da fundamentação das decisões judiciais, em nome de uma suposta efetividade da tutela executiva.
Diante dos números que se tem e que devem ser analisados em retrospectiva para que o caminho percorrido até aqui seja também considerado, é preciso verificar se no âmbito do direito material o regramento sobre as obrigações e sobre o patrimônio das pessoas tem dado condições de garantia de satisfação das obrigações assumidas/constituídas. Isso porque, antes do processo executivo, que deve ser considerado a ultima ratio para a efetivação das obrigações, é preciso pensar em construir meios garantidores dentro do âmbito do direito material. E nesse ponto cabe que a reflexão se dê pelos estudiosos do direito material.
Mas ainda assim os questionamentos não acabam, porque talvez seja necessário, antes de verificar sobre a necessidade de reformas no âmbito do direito material, analisar se o problema da inefetividade da tutela executiva é um problema jurídico.
E nesse ponto, sugere-se ao Grupo de Trabalho que busque ouvir economistas, historiadores, sociólogos, antropólogos e até mesmo psicólogos, pois é necessário verificar se há no Brasil uma cultura do inadimplemento. É comum que se ouça dizer sobre o “jeitinho brasileiro”, sobre a famosa “lei de Gerson” e é preciso verificar se há, de fato, no âmbito social, esse tipo de cultura de desrespeito às obrigações, para então pensar-se em meios de reeducar a sociedade, se for o caso. A profícua academia brasileira no âmbito das Ciências Sociais certamente terá muito a contribuir.
Essa discussão deve considerar não só a cultura humana, mas também a cultura empresarial e dos agentes públicos.
Vale ressaltar: se há um problema dessa natureza, ele não será resolvido pelo Direito e sem travarmos uma discussão com profissionais de outras áreas, experts em comportamento humano e social, permaneceremos eternamente reféns da inefetividade da tutela executiva, pois continuaremos a tentar resolver com normas processuais um problema que talvez não esteja ao alcance delas.
E, por fim, além de travarmos essa discussão sobre a cultura brasileira no cumprimento das obrigações é preciso questionar, antes de qualquer medida de alteração do processo ou da gestão do Poder Judiciário na condução dos processos, se a dificuldade de tornar efetiva a tutela executiva não reflete um problema econômico.
Precisamos saber se há um problema econômico, se há uma crise econômica, se essa crise se perpetua, o que a gera, o que a alimenta, quais os seus impactos no âmbito das obrigações e das relações humanas e sociais... tudo isso precisa ser considerado.
E é com base nisso e no afã de contribuir para os debates que, humildemente, faço essas sugestões aos eminentes membros do Grupo de Trabalho, desejando a todos um ano produtivo e de boas ideias.