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Venire contra factum proprium: comentários ao acórdão do REsp 1.894715 - MS

Há que se ter cautela na invocação do venire contra factum proprium diante da controvérsia e complexidade em que o tema se envolve.

9/2/2021

(Imagem: Imagem Migalhas)

A quebra da confiança legitimamente inspirada em terceiro por comportamento posteriormente contrariado encontra, na figura do venire contra factum proprium, fundamento para se buscar repelir/obstar prejuízos decorrentes da confiança defraudada.

Embora se possa dizer ser intuitivo e facilmente compreensível a repulsa por atos contraditórios que suprimam a confiança inspirada em determinada conduta de um amigo, parceiro ou terceiro com que se mantém algum vínculo ou laço, traduzido no sentimento de traição, a mesma facilidade não se encontra para aplicação da figura do venire contra factum proprium1na solução de conflitos.

Ao lado da diminuta doutrina existente sobre a figura do venire contra factum proprium, a complexidade do tema já se verifica de partida2 a respeito de qual seja seu fundamento (boa-fé3, solidariedade social4, confiança de forma autônoma aos deveres que dimanam da boa-fé objetiva5), existindo até mesmo aqueles que questionam a sua necessária existência6. Não há, até mesmo, definição tranquila a respeito de quais sejam os requisitos para sua configuração e aplicação, conquanto aqui se note alguma homogeneidade na doutrina nacional.

Apesar da diferença de entendimentos sob diferentes aspectos, é uníssona a invocação do venire contra factum proprium como mecanismo de tutela da confiança legitimamente despertada, enquanto substância cuja presença assegura o adequado desenvolvimento do tráfico negocial7. 

Em linhas gerais, a doutrina8, havendo dissonâncias pontuais, aponta como requisitos para aplicação do venire contra factum proprium a concomitante existência de (i) um primeiro comportamento do agente (factum proprium) que gere um benefício a alguém (ii) que por todas as suas particulares características, seja objetivamente capaz, no meio em que foi praticado, de despertar legítimas expectativas em terceiro de que futuros comportamentos serão coerentemente praticados com o factum proprium; (iii) a posterior adoção de comportamento lícito, todavia contraditório ao anteriormente adotado; (iv) a imposição de dano ou potencialidade de causar danos a esfera jurídica do terceiro que legitimamente confiou que o agente seria coerente ao factum proprium no futuro; (v) identidade do sujeito praticante do factum proprium e do posterior ato contraditório.

No direito brasileiro o venire contra factum proprium, conquanto seja pouco estudado com a intensidade que o tema requer, acabou por se difundir principalmente sob a simplista noção de existência de proibição pelo ordenamento jurídico de exercício de comportamentos contraditórios, que, com efeito, não existe de forma ampla no direito brasileiro9. A generalidade de situações em que se pode argumentar a existência de contradição entre comportamentos como conduta, por si só, violadora de direitos, sem atenção aos seus requisitos, ganhou receptividade pela jurisprudência brasileira10 na solução de casos não somente de direito privado, expandindo-se para o direito processual civil, comercial, penal e do consumidor.

Nesse quadro, a aplicação do venire contra factum proprium, sobretudo sempre que invocado pelo C. Superior Tribunal de Justiça como fundamento de suas decisões, chama a atenção pelo interesse de se observar quais requisitos se tem exigido para a sua aplicação e, por conseguinte, buscar conferir maior segurança e uniformidade ao tema ainda não alcançadas no direito brasileiro.

No final do ano de 2020, o C. Superior Tribunal de Justiça julgou o REsp 1.894715-MS, cuja discussão consistiu na aferição da (i)legalidade da conduta de uma das partes que, a despeito de estarem vinculadas por contrato com previsão de cláusula compromissória de arbitragem, por duas vezes ajuizou ações perante o Poder Judiciário contra a outra contratante, e, posteriormente, quando a contraparte contra ela promoveu ação de cobrança também perante o Poder Judiciário, alegou em sede de preliminar de contestação que o conflito deveria ser resolvido pela via arbitral conforme fora pactuado.

Em primeira instância, o juízo da 2ª Vara Cível de Corumbá-MS acolheu a preliminar de convenção de arbitragem alegada pelo Réu, e extinguiu o feito (art. 485, VII, do CPC/15).  Em sede de apelação, o E. TJ-MS, por maioria de votos, entendeu que a despeito de o Réu ter anteriormente promovido duas ações perante o Poder Judiciário contra o Autor, aludida conduta não implica renúncia tácita à cláusula compromissória, sobretudo porque na presente ação fora invocada a sua existência no momento processual oportuno, isto é, em preliminar de contestação.

A controvérsia ascendeu ao C. Superior Tribunal de Justiça por meio do REsp 1.894715-MS que foi distribuído à Terceira Turma.  Sob o entendimento de que seria hipótese de aplicação do venire contra factum proprium, por decisão unânime, declarou-se que:

“na espécie, não se pode admitir que uma parte contratante (ora recorrida) proponha ações perante o juízo estatal, renunciando tacitamente ao compromisso de arbitragem e induzindo na outra parte contratante (ora recorrente) a crença de sua aquiescência de que o litígio entre elas estabelecido seja resolvido pelo Poder Judiciário, e não mais pelo juízo arbitral, como previsto na cláusula compromissória. Deve ser enfatizado, finalmente, que a circunstância de não ter havido renúncia expressa é de todo irrelevante, pois o que se veda é a conduta contraditória da recorrida (nemo potest venire contra factum proprium), em clara violação ao princípio da boa-fé objetiva”.

A decisão é sucinta e deixa de explorar requisitos absolutamente centrais da figura do venire contra factum proprium como, por exemplo, (i) de que forma se pode afirmar a existência de legítima confiança em determinada conduta (e não meras expectativas) de modo que o direito seja chamado a tutelar essa situação, ou (ii) quais danos ou potenciais danos seriam impostos a uma das partes por ter seu conflito resolvido pela via da arbitragem, ou ainda, (iii) toda conduta contraditória é vedada pelo ordenamento? O acerto da decisão, segundo nos parece, pode ser questionado sob diferentes enfoques, seja do ponto da sua arbitrabilidade, do direito processual civil, e do direito privado, mormente sobre o pacta sunt servanda, o que não é possível abranger nesta oportunidade.

Relativamente aos requisitos aludidos acima para invocação do venire contra factum proprium, chama-nos especial atenção no acórdão em comento a afirmação de suposta vedação ampla pelo ordenamento das condutas contraditórias pois imediatamente violadoras da boa-fé objetiva e, sobretudo, a ausência de construção argumentativa de como se apresenta a legítima confiança defraudada merecedora de tutela do direito, consistente no fundamento do venire contra factum proprium.

A respeito da proibição de comportamento contraditório, anota-se que o ordenamento jurídico não detém princípio ou norma geral expressa que obste ou taxe de ilícita a conduta contraditória por si só11 12. Nesse sentido ensina Judith Martins Costa que “não é possível ao direito vedar, de forma absoluta, as contradições da conduta humana. Somos afeitos a lidar com o acaso e com o inesperado; nossa própria sobrevivência como espécie não toleraria o rígido e imutável planejamento. A total coerência seria um injusto cárcere, pois nossa liberdade compreende o mudar de opinião, e a auto-escuta frequente vezes leva à contradição. A proibição de toda e qualquer conduta contraditória seria, pois, mais que uma abstração, um castigo”13.

Mas, afinal, qual é a contradição que se subsume ao venire contra factum proprium?

Como apontado no início desse ensaio, integram os requisitos do venire contra factum proprium a contradição que defrauda a legítima confiança inspirada num comportamento futuro coerente, impondo danos ou potenciais danos a esfera jurídica de terceiros.

É, portanto, a legítima confiança inspirada em terceiro que vincula o comportamento do agente e impede sua contradição no futuro. Sua configuração ocorre a partir dos fatos concretos “racionalmente apreensíveis e objetiváveis”14 que, dentro daquela realidade e meio negocial, possam, pela pessoa média, incutir confiança na adoção de comportamentos futuros em conformidade ao anterior. Por outro lado, sublinha-se, nas palavras de Anderson Schreiber, “a confiança que se perquire aí não é um estado psicológico, subjetivo, daquele sobre quem repercute o comportamento inicial. Trata-se, antes, de uma adesão ao sentido objetivamente extraído do factum proprium15.

A legítima confiança, numa metáfora, pode ser comparada a uma fita em que cada uma de suas pontas segura uma das partes da relação, e que a depender dos gestos daquele que a maneja, resultará em laço, que, por sua vez, representará o vínculo estabelecido com terceiro que não poderá mais ser desfeito a seu bel prazer sem considerar a união que se estabeleceu.

Caso em que se pode afirmar a existência de atos cujo condão tem o poder de incutir legítima confiança de modo a se invocar a figura do venire contra factum proprium de forma adequada é da “assinatura do vice-presidente”, em que foram partes os clubes de futebol Corinthians e Grêmio16. Relata Judith Martins Costa que os clubes firmaram “contrato de compra e venda de direitos federativos de atleta profissional de futebol. Posteriormente, porém, o Grêmio recusou-se a pagar o que devia, sob a alegação de invalidade do título executivo, já que, segundo os estatutos do clube, haveria vício na constituição do pacto. Aqueles estatutos determinavam ser necessária a assinatura do vice-presidente de finanças, mas o contrato fora assinado apena pelo presidente. (...). O Tribunal do Rio Grande do Sul rejeitara a pretensão bem apontando que o Grêmio [se valer da própria torpeza, tentando afastar a força executiva de um título executivo extrajudicial através de um suposto vício que ele mesmo deu causa]. Esse entendimento foi acolhido pelo Superior Tribunal de Justiça(...)17”.

No caso subjacente ao RESp 1.894715-MS, como bem ressaltou o TJ/MS em seu acórdão, e não considerou o C. STJ, existe um negócio jurídico e uma cláusula compromissória que as partes escolheram contratar, para que a arbitragem fosse o meio de solução de conflitos decorrentes da sua relação contratual.

A existência de um contrato válido composto por cláusula compromissória válida, segundo nos parece, é fato absolutamente relevante para se depositar confiança e, por outro lado, não pode ser ignorado de modo a se falar que qualquer das partes pudesse legitimamente confiar na sua ineficácia ou renúncia tácita à cláusula, em mínima atenção ao princípio orientador dos contratos pacta sunt servanda18.

 Lado outro, como autoriza o Art.22-A (Lei de arbitragem 9.307/96), a convenção de arbitragem não exclui que qualquer das partes busque o Poder Judiciário em situações urgentes, ou até mesmo para as demais ações relativas ao contrato entabulado, desde que o réu não alegue a existência de convenção de arbitragem, o que não impede que as partes, em futuro conflito, optem por resolvê-lo pela via da arbitragem.

Todos esses fatos são objetivos e mais do que suficientes para que se impeça a criação de legítima confiança na contraparte a respeito da renúncia à utilização da arbitragem como via de solução de conflito, afinal, além de serem de conhecimento dos contratantes (ou deveriam ser), tem abrigo legal19.

Por derradeiro, vale mencionar que dentre os requisitos acima relacionados para invocação do venire contra factum proprium, a doutrina também elenca a necessária existência de benefício ou potencial benefício decorrente do factum proprium ao terceiro, além de a contradição ao factum proprium causar danos ou poder vir a causá-los, requisitos que também não se podem dizer presentes no caso em comento.

Ao se verificar a complexidade que envolve a figura do venire contra factum proprium consistente no preenchimento de seus requisitos – embora não haja consenso a seu respeito na doutrina – conclui-se não ter sido acertada a decisão proferida pelo STJ no julgamento do REsp 1.894715 – MS.

Nesse quadro, por tudo que se expôs, há que se ter cautela na invocação do venire contra factum proprium diante da controvérsia e complexidade em que o tema se envolve. O seu tratamento, como se deu no REsp 1.894715-MS, é sintomático da frequente redução simplista do venire contra factum proprium à ideia de que existiria vedação categórica no ordenamento jurídico à contradição. Tal conclusão está à margem de toda a problematização e dificuldades que a doutrina revela existir a seu respeito.

______________

1 “Por essa definição e pelos requisitos que contém, já se vê que duas dificuldades pelo menos, cercam a sua operatividade, razão pela qual chega a ser considerada ‘uma das figuras mais complicadas de todo o direito privado’. A primeira diz respeito ao seu âmbito de delimitação e a segunda concerne à articulação com a boa-fé objetiva”. (MARTINS COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 675).

2 “A articulação interna do venire contra factum proprium, o seu âmbito, a sua fundamentação, as suas ligações às outras regulações típicas do exercício inadmissível dos direitos e, até, a sua recondução à boa fé suscitam, pelo contrário, controvérsias acesas”. (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 742).

3 WIEACKER, Franz. El principio General de la Buena Fe. Trad. Espanhola de Jose Juiz Carro. Madrid: Civitas, 1977, p. 60-61. MARTINS COSTA, Judith. Op.cit, p. 677;  TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O princípio da boa-fé no Direito Civil. Almedina Brasil: São Paulo, 2020, p.177 e ss; MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2015, p. 753.

4 SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela de confiança e venire contra factum proprium. 4.ª edição. Revista e atualizada de acordo com a jurisprudência do STF e do STJ. São Paulo: Atlas, 2016, p. 70 e seguintes.

5 CARNEIRO DA FRADA, Manuel António de Castro. Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 2016, p. 452.  

6 “No entanto, a máxima do nulli conceditu venire contra factum proprium não somente é uma das figuras mais complicadas do todo o direito privado, como também é extremamente controversa, inclusive quanto à sua necessidade e admissibilidade”. (SCHMIDT, Jan Peter. Alegação de invalidade como comportamento contraditório proibido? – Comentários ao acórdão do REsp 1.461.301/MT. Revista de Direito Civil Contemporâneo. Vol.7. ano.3. p. 421).

7 “Portanto, o que o princípio proíbe como contrário ao interesse digno de tutela jurídica é o comportamento contraditório que mine a relação de confiança recíproca minimamente necessária para o bom desenvolvimento do tráfico negocial”. (MARTINS COSTA, Judith. Op. Cit., p. 676).

8 SCHREIBER, Anderson. Op. Cit., p. 57 e ss; MARTINS COSTA, Judith. Op. Cit., p. 679; TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Op.Cit., p. 178; MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Op.Cit, p. 745.

9 MARTINS COSTA, Judith. Op. Cit., p.676;

10 SCHREIBER, Anderson. Op. Cit., p. 130; MARTINS COSTA, Judith. Op. Cit., p.680.

11 Anderson Schreiber, mencionando os arts. 428,IV, 438, 791, 1.969, do Código Civil, afirma que “pode-se, por abstração lógica, extrair uma orientação implícita, qual seja, a de permitir a adoção de um comportamento contraditório à conduta anterior da mesma pessoa”. (Op.Cit., p. 52).

12 “(...) é importante focar a inexistência, na Ciência do Direito actual e nas ordens jurídicas por ela informadas, de uma proibição genérica de contradição. Apenas circunstâncias especiais podem levar à sua aplicação”. (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Op.Cit., p. 750.)

13 MARTINS COSTA, Judith. Op.Cit., 676.

14 Idem, ibidem.

15 Op.Cit., p. 92-93.

16 STJ, REsp 681856-RS, 4ªTurma, j. 12.06.2007, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 06.08.2007.

17 Op.Cit., p. 685.

18 “Não se pode, contudo, ir tão longe nessa via que, ao factum proprium, se dê mais consistência do que ao próprio negócio jurídico: também este, afinal e por maioria de razão, suscita, no espaço jurídico, confiança digna de protecção e, não obstante, cede perante vectores que, em casos determinados, se apresentem com peso maior”. (MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha. Op.Cit., p. 761).

19 “Porém, não se pode falar em deslealdade quando a parte lesada sabia ou devia saber que a parte podia voltar atrás em sua decisão anteriormente tomada, sobretudo quando há permissão legal para tanto, pois a confiança despertada não é suficiente para ser protegida por meio deste instituto jurídico”. (TOMASEVICIUS, Eduardo. Op.Cit., p. 180).

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Dante Olavo Frazon Carbonar
Advogado do escritório Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.

Mauri Marcelo Bevervanço Filho
Sócio do Wambier, Yamasaki, Bevervanço e Lobo Advogados.

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