Migalhas de Peso

PL 2633/20 – grilagem, posse de terras devolutas ou de terceiros e a regularização fundiária

Tem-se que, infelizmente, a prática da grilagem acaba contribuindo para alimentar o mercado ilegal de terras, desencadeando, por via de consequência, uma corrida incessante por novas áreas de floresta.

2/2/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A MP 910/19, teve por escopo alterar a lei 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, a lei 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações e contratos da administração pública, e a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos.

Todavia, diante da inocorrência da sua votação, a MP 910/19, também conhecida como “MP da grilagem”, perdeu a sua eficácia, tudo porque entendeu o Poder Legislativo pela imprescindibilidade da apresentação de um Projeto de Lei de regularização fundiária no País, visando tornar efetivas as conquistas constantes no seu relatório.1

Nesse contexto, é de se considerar que a regularização, se realizada a partir de critérios justos, estimula a cidadania, permite dinamização econômica ao atribuir segurança jurídica, e inclusive, estimular o cuidado ambiental, por permitir uma visão de longo prazo, bem como possibilitar uma melhor fiscalização pelo Estado2.

A medida provisória valeria para todo o país, mas com maior impacto na Amazônia Legal, região que engloba os nove Estados onde há vegetações amazônicas e que concentram as terras públicas assim designadas no país.3

O PL, por sua vez, estabelece critérios para a regularização fundiária de imóveis da União, incluindo assentamentos. As regras são restritas a áreas ocupadas até julho de 2008 com até seis módulos fiscais — unidade fixada para cada município pelo Incra, que varia de 5 a 110 hectares4.

A medida criada sob o manto do combate da prática da grilagem, MP 910/19, também conhecida como “MP da grilagem”, foi retirada da pauta de votação da Câmara dos Deputados em maio de 2020, e substituída pelo PL 2633/20 que segue em discussão.5

A grilagem pode ser caracterizada como uma organização ou um sistema de procedimentos de aquisição recorrente e irregular de terras. Sendo assim, em diversas partes do país, informações sobre “grilagem de terras”, fazem parte do cotidiano. A prática grileira faz cair por terra o direito real imobiliário, que por si só, tem o objetivo de contribuir para a satisfação das garantias fundamentais, direito de propriedade, direito de vizinhança e da posse, dentre outros direitos concebidos à luz do nosso ordenamento jurídico, trazendo consigo uma problemática social que advém dos tempos do Brasil Imperial, que impacta diretamente na função social da propriedade.

O termo grilagem vem da descrição de uma prática antiga consistente em envelhecer documentos forjados para obtenção da posse de determinada área de terra. Fazendeiros, lavradores e posseiros disputam uma parcela de terra, num jogo de força que revela interpretações conflitantes sobre o direito à propriedade imobiliária. Ao ocuparem áreas devolutas nas fronteiras das fazendas, pequenos posseiros desafiam o poder dos grandes fazendeiros. Mesmo derrotados em suas lutas, eles procuraram defender o que então acreditavam ser justo, ou seja, a legitimidade de sua ocupação em contraponto à apropriação territorial dos fazendeiros6.

Atualmente, artifícios mais sofisticados substituem a ação dos grilos, com o registro no cartório de títulos de imóveis, mediante cruzamento de registros, em que o grileiro almeja dar uma aparência legal à fraude. Na atualidade, a grilagem ocorre devido às deficiências encontradas no sistema de controle de terras no Brasil. Apesar das diversas propostas, o governo ainda não implementou um registro único de terras ou ao menos um cadastro específico para as grandes propriedades.7

Outra não poderia ser a solução para a problemática para que o Registro mantenha uma efetiva conexão entre os diferentes negócios modificativos da situação jurídico-real, senão através dos assentamentos registrais.8

Pelo viés ambiental, a grilagem tem sido a responsável por grande parte do desmatamento no país. Os grileiros desmatam áreas públicas, simulando a posse dos imóveis com documentos falsos. Normalmente, as terras acabam sendo vendidas a grandes proprietários, sendo destinadas a atividades agropecuárias.9

Tal prática acaba sendo amparada principalmente na aventada necessidade de consolidação da forma escrita exigida em lei para validade dos negócios jurídicos em nosso ordenamento, pois, basta a apresentação do documento, ainda que falso, para que se exteriorize a suposta manifestação da vontade das partes, dentre os demais elementos do negócio jurídico, o que por si só, conduz à produção dos efeitos jurídicos desejados.

A doutrina civilista, por sua vez, dispõe sobre a importância da prova documental nos negócios jurídicos

“Os negócios jurídicos são, por excelência, provados através de documentos, o que se afirma com supedâneo no CC, arts. 108, 129, 130, 134, 1.227 e 1.245”.10

A aquisição da propriedade imobiliária nos ditames legais de nosso ordenamento, se dá através do registro do negócio jurídico, decorrente da  acessão de construções, plantações, formações de ilhas, avulsão, aluvião e do abandono. Além disso, a propriedade pode ainda ser oriunda da usucapião, posse-trabalho, direito hereditário e do casamento. A aquisição imobiliária, em regra, pode ser considerada um negócio jurídico solene, sendo a escritura pública essencial à validade dos negócios jurídicos sobre direitos reais imobiliários.11

Assim, a prática de desmatar áreas públicas e fraudar documentos simulando a posse dos terrenos, conhecida como grilagem, tem o objetivo de simular negócios jurídicos de terras, visando atribuir licitude à aquisição da propriedade imobiliária, tendo, por fim, a obtenção de lucros, principalmente, com o desenvolvimento da atividade agropecuária, considerada atualmente como uma das principais práticas causadoras do desmatamento em áreas de floresta e de impactos ao meio ambiente.

Dessa forma, tem-se que, infelizmente, a prática da grilagem acaba contribuindo para alimentar o mercado ilegal de terras, desencadeando, por via de consequência, uma corrida incessante por novas áreas de floresta.12

______

1- Camara 

2- CHAGAS, Elisa. Agência Senado. MP da regularização fundiária perde validade e é substituída por projeto de lei.Disponível aqui. Acessado em 28 de jan. 2021.

3- FELLET, João.  Como a 'MP da grilagem' pode mudar o mapa de regiões da Amazônia. Disponível aqui. Acesso em: 28 jan. 2021.

4- CHAGAS, Elisa. Agência Senado. MP da regularização fundiária perde validade e é substituída por projeto de lei. Disponível aqui. Acessado em 28 de jan. 2021.

5- PL 2633/2020. Altera a Lei n° 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União; a Lei n° 8.666, de 21 de junho de 1993, que institui normas para licitações e contratos da administração pública; a Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos; a fim de ampliar o alcance da regularização fundiária e dar outras providências. Disponível aqui. Acessado em 28 de jan. 2021.

6- MOTTA, Márcia Maria Menendes. A grilagem como legado. Disponível aqui. Acesso em: 28 de jan. 2021.

7- MARETTI, Cláudio. Grilagem. WWF-Brasil. Disponível aqui. Acessado em 28 de jan. de 2021.

8- DIP e JACOMINO. Ricardo, Sérgio. Direito Registral, Doutrinas Essenciais. Vol. I, Ed. 2ª Ed. São Paulo, Ed. Afiliada, 2014, p. 545.

9- OLSEN, Natasha. MP da Grilagem se transforma em Projeto de Lei. Disponível aqui. Acesso em: 28 jan. 2021.

10- SCAVONE. Luiz Antonio. Direito Imobiliário, Teoria e Prática. 16ª Ed. Rio de Janeiro, Ed. Forense LTDA, 2021, p. 76.

11- SCAVONE. Luiz Antonio. Direito Imobiliário, Teoria e Prática. 16ª Ed. Rio de Janeiro, Ed. Forense LTDA, 2021. p. 15.

12- FELLET, João.  Como a 'MP da grilagem' pode mudar o mapa de regiões da Amazônia. Disponível aqui. Acesso em: 28 jan. 2021.

Debora Cristina de Castro da Rocha
Advogada fundadora do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia, especializado nas áreas do Direito Imobiliário e Urbanístico, Mestre em Direito Empresarial e Cidadania e Professora.

Claudinei Gomes Daniel
Acadêmico de Direito pela Faculdade Anchieta de Ensino Superior do Paraná - FAESP. Colaborador do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Secretário da presidência do Sindicato dos Advogados do Estado do Paraná.

Edilson Santos da Rocha
Sócio Administrador do escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia - Especializado em Direito Imobiliário e Sócio Administrador na Empresa Domínio Legal Soluções Imobiliárias

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