Há algum tempo as empresas beneficiárias de benefícios fiscais de ICMS, notadamente de créditos presumidos, têm buscado no Poder Judiciário o reconhecimento de que tais benefícios não sofrem a incidência do IRPJ e da CSLL.
O pleito possui, em síntese, dois fundamentos. O primeiro deles diz com a classificação desses benefícios como subvenção para investimento e, como tal, a exclusão desta receita do campo de incidência do IRPJ e da CSLL pela própria legislação que rege esses tributos. Segundo o art. 30, da lei 12.973/2014, as subvenções para investimento, inclusive mediante isenção ou redução de impostos, concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos não serão computadas na determinação do lucro real.
O segundo fundamento utilizado é o de que os incentivos fiscais concedidos por um ente federado, não pode ser suprimido por outro, sob pena de afronta ao princípio federativo.
Após alguns embates, o STJ, julgando os embargos de divergência EREsp 1.517.492/PR, decidiu que o crédito presumido de ICMS não compõe as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL. A decisão do STJ baseia-se, sobretudo, na impossibilidade de a União retirar, por via oblíqua, o incentivo fiscal que o Estado-membro, no exercício de sua competência tributária, outorgou. O julgamento do recurso não levou em consideração os §§ 4º e 5º, incluídos no art. 30, da lei 12.973/2014, uma vez que estes somente entraram em vigor após o julgamento.
Diz-se isso porque o dito § 4º do art. 30, da lei 12.973/2014 veio agregar subsídio à consideração de que os créditos presumidos de ICMS não são computados na determinação do lucro real, pois definiu que, independentemente da razão que levou o ente concedente a outorgá-los, eles devem ser considerados subvenções para investimento. E, mais do que isso, da leitura do referido dispositivo legal, pode-se concluir que não só os créditos presumidos passaram a ser considerados, por imposição legal, subvenção para investimento, mas todo e qualquer incentivo, benefício fiscal ou financeiro fiscal relativo ao ICMS foram alçados a tal condição. Nisso se inserem, indubitavelmente, as isenções, reduções de base de cálculo, reduções de alíquota, ou qualquer outra norma que proceda a recortes na regra geral de incidência do ICMS.
Com tal definição legal, a Receita Federal, na solução de consulta - Cosit 11/2020, definiu que:
A norma em questão insere novo comando legal ao dispositivo que confere o adequado tratamento tributário, no que tange ao IRPJ e a CSLL, às subvenções para investimento. A LC 160, de 2017, atribui a qualificação de subvenção para investimento a todos os incentivos e os benefícios fiscais ou econômico-fiscais atinentes ao ICMS. Significa dizer que a essa espécie de benefício fiscal não mais se aplicam os requisitos arrolados no PN CST 112, de 2017, com vistas ao enquadramento naquela categoria de subvenção.
A partir deste entendimento, muitas empresas, com ou sem solução de consulta em seu favor, passaram a considerar os incentivos ou benefícios fiscais de ICMS como subvenções para investimento, excluindo-os da base de cálculo do IRPJ e da CSLL.
No entanto, no final de 2020 a Receita Federal do Brasil, por sua Coordenação-Geral de Tributação (Cosit), reformou o entendimento exarado na solução de consulta 11/2020, ao publicar a solução de consulta 145/2020. Nela, a Receita Federal do Brasil argumenta que:
(...), ainda que qualificado pelo legislador como uma subvenção para investimento, os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiro-fiscais relativos ao ICMS só receberão o tratamento conferido pelo art. 30 da lei 12.973, de 2014, caso tenham sido concedidos como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos, e obedeçam as demais prescrições previstas naquele artigo.
Percebe-se que o fisco federal desconsiderou a qualificação dos benefícios fiscais de ICMS como subvenção para investimento por imposição legal, restabelecendo a barreira existente antes da vigência do aludido § 4º do art. 30, da lei 12.973/2014, tornando-o absolutamente inócuo.
Não nos parece, entretanto, a interpretação mais adequada, pois não há regra legal inócua e não há qualquer outro sentido ao § 4º do art. 30, da lei 12.973/2014 do que complementar o previsto no seu caput, estendendo o tratamento tributário por ele conferido aos incentivos e benefícios fiscais de ICMS. Atente-se para o previsto na alínea c, do inciso III, do art. 11, da LC 95/1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis:
Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:
III - para a obtenção de ordem lógica:
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;
Se o § 4º do art. 30 não faz jus ao tratamento tributário previsto no caput, que complementariedade é esta? Qual o sentido da regra?
A nosso ver, o caput do referido art. 30 estabelece que toda e qualquer subvenção para investimento não deve ser computada na determinação para o lucro real, sejam as concedidas como estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos – estando isso expressamente previsto em seus atos concessivos –, sejam aquelas assim definidas por lei. E a lei define que os incentivos e os benefícios fiscais ou financeiros fiscais relativos ao ICMS são considerados subvenções para investimento.
Neste ponto, deve-se lembrar que as subvenções para investimento podem ser concedidas por qualquer ente, por meio de diversos instrumentos. Não sendo benefício ou incentivo relativo ao ICMS, logicamente que, para ser considerada subvenção para investimento e, como tal, ter o tratamento tributário previsto no art. 30 da lei 12.973/2014, a concessão deve ter como fundamento o estímulo à implantação ou expansão de empreendimentos econômicos.
Há, todavia, como já mencionado, outro fundamento para afastar a incidência do IRPJ e da CSLL sobre os benefícios fiscais, fundamento que supera a discussão do que é ou não subvenção para investimento e qual o tratamento tributário deve ser a ela dispensado. Este fundamento reside no fato de que optamos, quando da elaboração da Constituição Federal, ser um Estado constituído sob a forma federativa, definição esta alçada à categoria de cláusula pétrea. E, sendo o Brasil uma Federação em que convivem três ordens jurídicas distintas – União, Estados e Municípios – concedendo a cada uma dessas ordens competências tributárias distintas.
O Estado-membro, ao conceder incentivo fiscal relativo a tributo de sua competência, está exercendo-a, para o que detém plena autonomia. Por outro lado, a União, ao buscar tributar o benefício fiscal concedido por Estado-membro, passa a intervir na autonomia estatal, em clara invasão de competência tributária, acarretando afronta ao princípio federativo. Neste sentido entendeu o STJ no julgamento do ERESP 1.517.492:
Examinada a questão sob valores ético-constitucionais da Federação, limitadores do próprio exercício dessa competência, como também pelo princípio da subsidiariedade, fator de salvaguarda da autonomia dos entes federados perante a atividade tributante federal, constata-se que a concorrência desses elementos, adiante sopesados, é capaz de inibir a pretensão de incidência tributária defendida pela União.
Com efeito, o juízo de validade quanto ao exercício da competência tributária há de ser implementado em comunhão com os objetivos da Federação, insculpidos no art. 3º da Constituição da República, dentre os quais se destaca a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III), finalidade da desoneração em tela, ao permitir o barateamento de itens alimentícios de primeira necessidade e dos seus ingredientes, reverenciando o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento maior da República Federativa brasileira (art. 1º, III, C.R.).
Desse modo, a tributação pela União de valores correspondentes a incentivo fiscal estimula competição indireta com o Estado-membro, em desapreço à cooperação e à igualdade, pedras de toque da Federação.
Naturalmente, não está em xeque a competência da União para tributar a renda ou o lucro, mas, sim, a irradiação de efeitos indesejados do seu exercício sobre a autonomia da atividade tributante de pessoa política diversa, em desarmonia com valores éticos-constitucionais inerentes à organicidade do princípio federativo, e em atrito com a subsidiariedade, "um princípio de bom senso", no dizer do professor André Franco Montoro (Federalismo e o fortalecimento do Poder Local no Brasil e na Alemanha. Coleção Debates da Fundação Konrad Adenauer: Rio de Janeiro, 2002. p. 59), que reveste e protege a autonomia dos Estados-membros.1
Assim, para além da consideração de o benefício fiscal concedido por um ente ser ou não subvenção para investimento, sobre ele não deve interferir outro ente, buscando tributá-lo.
Logo, é possível concluir-se que os incentivos e benefícios fiscais de ICMS não devem compor as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL.
Por fim, diante do entendimento manifestado pela Receita Federal do Brasil na solução de consulta 145/2020, não resta alternativa ao contribuinte que desejar garantir o seu direito de excluir os benefícios fiscais de ICMS das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL senão pleiteá-lo perante o Poder Judiciário.
1 STJ. EREsp 1517492/PR, Rel. Ministro OG FERNANDES, Rel. p/ Acórdão Ministra REGINA HELENA COSTA, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 08/11/2017, DJe 01/02/2018.