Não é tão comum no Brasil, de um modo geral, as pessoas se preocuparem com a morte. A uma, porque falar da morte já não é uma questão simplesmente fácil para muitas pessoas, já que o medo dela acompanha o brasileiro durante toda a sua vida. A duas, porque geralmente o brasileiro, em termos gerais, não tem bens tantos bens a partilhar. A três, porque a ordem de vocação hereditária prevista da legislação, apesar de não ser imune a críticas, é, de certa forma, justa, pois preserva a legítima dos herdeiros necessários (art. 1845, CC), que constitui a metade dos bens da herança (art. 1846, CC).
O planejamento sucessório tem sido muito falado nos últimos anos como forma preventiva e eficiente para evitar conflitos entre os herdeiros, privilegiando a autonomia privada (TARTUCE; HIRONAKA, 2019, p. 88), que é a prerrogativa que as pessoas têm de regulamentar seus próprios interesses. O planejamento sucessório, na visão de Rolf Madaleno (2013, p. 196), tem por objetivo "o exercício prático de uma atividade preventiva com a adoção de procedimentos realizados ainda em vida pelo titular da herança com vistas à distribuição e ao destino de seus bens para após a sua morte".
Dentre os diversos mecanismos para a realização do planejamento sucessório, elencam Tartuce e Giselda Hironaka (2019, p. 89) a: a) escolha por um ou outro regime de bens no casamento ou na união estável, até além do rol previsto no Código Civil (regime atípico misto) e com previsões específicas; b) constituição de sociedades, caso das holdings familiares, para administração e até partilha de bens no futuro; c) formação de negócios jurídicos especiais, como acontece no trust; d) realização de atos de disposição em vida, como doações – com ou reserva de usufruto –, e post mortem, caso de testamentos, inclusive com as cláusulas restritivas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade; e) efetivação de partilhas em vida e de cessões de quotas hereditárias após o falecimento; f) celebrações prévias de contratos onerosos, como de compra e venda e cessão de quotas, dentro das possibilidades jurídicas do sistema; g) eventual inclusão de negócios jurídicos processuais nos instrumentos de muitos desses mecanismos; h) pacto parassocial, como se dá em acordos antecipados de acionistas ou sócios; e i) contratação de previdências privadas abertas, seguros de vida e fundos de investimento.
Dos instrumentos citados, a doação constitui o contrato pelo qual uma pessoa, por liberalidade, transfere de seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra (art. 538, CC). Dentre as diversas possibilidades de doação, destacam-se em relação ao planejamento sucessório a doação de ascendentes para descendentes, a doação entre cônjuges, a doação com cláusula de reversão e a com reserva de usufruto. Pode-se dizer que a doação de ascendentes para descendentes é a forma mais comum de ser realizada na prática, mas há diversas confusões terminológicas em relação à compra e venda em casos tais. De início, preceitua o art. 496 do Código Civil que "É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido". Seu parágrafo único, por sua vez, menciona que tal autorização do cônjuge é dispensada se o regime for o da separação obrigatória de bens. Na compra e venda, pois, faz-se necessária a autorização dos demais descendentes e do cônjuge, a depender do regime de bens, justamente pelo fato de que, em casos tais, não haverá a necessidade, quanto da realização de eventual testamento, de colacionar os bens recebidos, uma vez que a compra e venda entre ascendentes e descendentes não implicará adiantamento de herança. É por tal motivo que se faz necessária certa fiscalização por parte dos demais herdeiros e do cônjuge para se prevenir possíveis lesões à sua legítima (art. 1846, CC).
Por sua vez, a doação de ascendentes para descendente apresenta diversas peculiaridades em relação à compra e venda. A uma, porque não necessita de autorização dos demais descendentes, exceto a outorga conjugal do cônjuge a depender do regime de bens (art. 1647, CC). A duas, porque, ao contrário da compra e venda, o consentimento dos demais descendente não se justifica justamente pelo fato de que, neste contrato, a consequência jurídica em relação ao donatário será a antecipação da herança, consoante dicção do art. 544 do Código Civil: "A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança"1.
Quanto à doação entre cônjuges, em tese, todo e qualquer regime admite a possibilidade de tal contrato, a depender das peculiaridades do caso. Todavia, no ano de 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por sua terceira turma, decidiu pela impossibilidade jurídica da doação entre cônjuges casados no regime da comunhão universal de bens, já que, em tal caso, o produto da doação passaria novamente ao patrimônio do casal. Pela importância do tema, segue-se parte da ementa:
[...] 5- É nula a doação entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens, na medida em que a hipotética doação resultaria no retorno do bem doado ao patrimônio comum amealhado pelo casal diante da comunicabilidade de bens no regime e do exercício comum da copropriedade e da composse. 6- Na vigência do Código Civil de 1916, a existência de descendentes ou de ascendentes excluía o cônjuge sobrevivente da ordem da vocação hereditária, ressalvando-se em relação a ele, todavia, a sua meação, de modo que, reconhecida a nulidade da doação entre cônjuges casados sob o regime da comunhão universal de bens, deve ser reservada a meação do cônjuge sobrevivente e deferida aos herdeiros necessários a outra metade. 7- O provimento do recurso especial por um dos fundamentos torna despiciendo o exame dos demais suscitados pela parte. Precedentes. 8- Recurso especial conhecido e parcialmente provido, a fim de julgar procedente o pedido formulado na petição inicial e declarar a nulidade da doação realizada entre os cônjuge (STJ, REsp 1787027/RS, rel. ministra Nancy Andrighi, terceira turma, julgado em 4/2/2020).
De qualquer forma, por não ter sido objeto do julgado, entendemos que é possível tal forma de doação no que tange aos bens excluídos da comunhão universal (art. 1668), especialmente se for gravado com cláusula de incomunicabilidade. Conquanto a doação de um ascendente para um descendente, e até mesmo em relação ao cônjuge donatário, implique antecipação de herança, fato é que em tais casos será necessário igualar as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente, obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador, já não possuírem os bens doados (art. 2003, CC), procedimento que vai se dar por meio da colação.
Para se perceber a importância da colação é preciso lembrar que o art. 1992 do Código Civil institui a pena de sonegados ao herdeiro que sonegar bens da herança, quer não os descrevendo no inventário quando estejam em seu poder, quer os omitindo na colação quanto estejam no poder de outrem com o seu conhecimento, ou, ainda, quando deixá-los de restituí-los. A consequência da não descrição dos bens no procedimento de inventário será a perda do direito que sobre eles lhe cabia, de sorte estarão, se for o caso, sujeitos à sobrepartilha (art. 669, I, CPC). De todo modo, como importante forma de planejamento sucessório, o art. 2.005 do Código Civil aduz que "São dispensadas da colação as doações que o doador determinar saiam da parte disponível, contanto que não a excedam, computado o seu valor ao tempo da doação". Assim, basta que o doador mencione que tal doação tem saído da parte disponível que eventual herdeiro estará dispensado de proceder à colação, motivo pelo qual não lhe será imposta a pena de sonegados. De mais a mais, permite-se, ainda, que a dispensa da colação seja outorgada tanto em testamento, quanto no próprio título de liberalidade (art. 2006, CC).
Por outro lado, à doação com cláusula de reversão e a com reserva de usufruto, em tal caso, o doador estipula que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobrevier ao donatário (art. 547, CC). É, na verdade, uma doação com cláusula de condição resolutiva, já que, com o seu advento, haverá fim ao negócio jurídico firmado, produzindo-se efeitos desde logo. Tal forma de doação como meio de planejamento sucessório é muito bem explicada por Tartuce e Giselda (2019, p. 102):
Conforme o seu teor, o doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário. É possível conciliar essa cláusula com a reserva de usufruto, completando o mecanismo sucessório ora citado, retornando o patrimônio ao cônjuge sobrevivente caso haja a morte de seus filhos, para uma nova partilha. Não se pode esquecer, contudo, que a cláusula de retorno é personalíssima para o doador, não prevalecendo em favor de terceiro (parágrafo único do art. 547). Trata-se de hipótese de nulidade absoluta, por afronta à proibição do art. 426 da própria codificação. Vedada está, assim, a doação sucessiva, pois, para gerar efeitos a ela similares, existem o testamento e as formas de substituição testamentária.
Como se vê, a doação com cláusula de reversão fica subordinada a uma condição, qual seja, a de o donatário falecer antes do doador, de sorte que os bens doados voltarão ao patrimônio do doador, vedada a reversão a favor de terceiro, pois seria espécie de fideicomisso inter vivos. Nada obsta, todavia, "que o doador estipule uma doação a termo, no sentido de o bem doado reverter ao patrimônio do doador antes mesmo da morte do donatário (MADALENO, 2013, p. 198)". Nada impede que essa cláusula seja conciliada com a reserva de usufruto, retornando o patrimônio ao cônjuge sobrevivente caso haja a morte de seus filhos, para uma nova partilha.
A doação com cláusula de reserva de usufruto é muito comum nos casos em que a pessoa deseja dispor de todos seus bens em vida, dividindo-os favor dos herdeiros necessários para a preservação da legítima, de sorte que, quando do momento de sua morte, todos os bens já terão sido partilhados em vida, cabendo aos herdeiros tão somente proceder ao inventário negativo, quer para evitar eventual causa suspensiva do casamento (art. 1523 c/c art. 1641, todos do CC), quer para limitar sua responsabilidade patrimonial em relação aos bens deixados pelo falecido, uma vez que os herdeiros só respondem pelas forças da herança (art. 1792, CC).
Como se viu neste artigo, várias são as formas de planejamento sucessório que podem ser retiradas de diversos institutos brasileiros, destacando-se, dentre elas, a doação de ascendentes para descendentes, que possibilita a transmissão de todo o seu patrimônio em vida para os seus descendentes, respeitadas, é claro, as disposições legais que garantem o direito à legítima. Por meio de tal ato, todo o patrimônio do falecido é dividido em vida, evitando-se futuras discussões e desavenças entre os herdeiros, já que todos os bens já vão ter sido divididos em vida. De mais a mais, sequer será necessário proceder ao inventário, exceto para questões específicas, a exemplo do inventário negativo, que, dentre outras funções, permite a limitação da responsabilidade do herdeiro, pois só responde até as forças da herança, e a não incidência da causa suspensiva do casamento constante do art. 1523 do CC.
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1 Por todos, Cf. "[...] A doação realizada pelos pais aos filhos, com exclusão de um ou mais herdeiros, é válida e independe do consentimento de todos os descendentes, configurando-se adiantamento de legítima, cabendo aos prejudicados, tão somente, ao ensejo da abertura da sucessão, postular pela redução dessa liberalidade até complementar a legítima, desde que ultrapasse a metade disponível". (TJMG, Ap. Cível n. l.0106.06.023157-3/001(1), rei. Tarcisio Martins Costa, j. 22.07.2008).
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DINIZ, Maria Helena. Código Civil Comentado. 12. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MADALENO, Rolf. Planejamento Sucessório. Anais do IX Congresso Brasileiro de Direito de Família. Famílias: Pluralidade e Felicidade, 2013.
TARTUCE, Flávio; HIRONAKA, Giseda Maria Fernandes Novaes. Planejamento sucessório: conceito, mecanismos e limitações. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil | Belo Horizonte, v. 21, p. 87-109, jul./set. 2019, p. 88.