Foi noticiada, aos 11 dias do mês de dezembro de 2020, a intenção da União em requisitar vacinas compradas por Estados e municípios que serão utilizadas para imunizar a população destes entes federados.1
O fato foi corroborado pelo Governador do Estado de Goiás2, Ronaldo Caiado (DEM), que tentou justificar a medida argumentando o seguinte:
Todas as vacinas indiscutivelmente requisitadas pelo governo federal e distribuídas igualitariamente a todos os estados da federação. Já é prerrogativa dele, isso é inerente ao cargo de ministro da Saúde.
Mas, o que diz a Constituição da República? É possível o Governo Federal (através do Ministério da Saúde) requisitar vacinas adquiridas por Estados e municípios?
A resposta é negativa, a União não pode requisitar vacinas adquiridas por outros entes federados, porquanto o instituto da requisição administrativa só pode ter por objeto a propriedade particular.
Inicialmente, é preponderante tecer alguns comentários acerca do instituto da requisição administrativa que é uma intervenção do Estado na propriedade na modalidade restritiva, ou seja, o Estado “impõe restrições e condicionamento ao uso da propriedade pelo terceiro, sem, contudo, retirar-lhe o direito de propriedade.”3
O instituto da requisição administrativa encontra seu fundamento na Constituição (art. 5º, XXV) que autoriza a autoridade competente, no caso de eminente perigo público, usar a propriedade particular, assegurada ao proprietário a devida indenização posterior, caso haja dano.
A regra constitucional que prevê a requisição administrativa é clara acerca de seu objeto, qual seja: propriedade particular; esta deve ser interpretada em sentido amplo e abrange os bens (móveis e imóveis) e os serviços, mas nunca bens públicos (bens de uso comum do povo, bens de uso especial ou bens dominicais).
O Supremo Tribunal Federal, certa feita, decidiu pela inadmissibilidade da requisição de bens municipais pela União em situação de normalidade institucional, sem a decretação de Estado de Defesa ou Estado de Sítio.4
Noutra ocasião, o ex-ministro da Suprema Corte Celso de Mello deferiu tutela provisória de urgência, no bojo da ação civil originária 3.385 MA, determinando que a União não pratique quaisquer atos requisitórios sobre respiradores que foram adquiridos pelo Estado do Maranhã, citamos, por considerá-lo sobremodo relevante para compreensão do tema, o seguinte trecho da decisão interlocutória:
Vê-se, desse modo, que não se revelava lícito à União Federal, porque ainda não instaurado qualquer dos sistemas constitucionais de crise (estado de defesa e/ou estado de sítio), e analisada a questão sob uma perspectiva de ordem estritamente constitucional, promover a requisição de bens pertencentes ao Estado do Maranhão, que se insurge, por isso mesmo, contra o ato, emanado do Departamento de Logística em Saúde do Ministério da Saúde, que requisitou à empresa Intermed Equipamento Médico Hospitalar Ltda., ora litisconsorte passiva, “a totalidade dos bens já produzidos e disponíveis a pronta entrega, bem como a totalidade dos bens cuja produção se encerre nos próximos 180 dias”, não obstante mencionado ato requisitório tenha sido praticado em data posterior à aquisição, pelo Estado autor, dos ventiladores pulmonares objeto da presente ação ordinária.5
Transparece-nos que só é permitido (leia-se permitido pela Constituição) à União requisitar bens ou serviços públicos nas hipóteses de estado de defesa ou estado de sítio, conforme autorizam os artigos 136, § 1º, II e 139, VII, da CRFB/88.
Em conclusão, defendemos que eventuais requisições de vacinas que pertençam a Estados e municípios pela União, fora das hipóteses de estado de defesa ou estado de sítio, são inconstitucionais, porquanto viola regra prevista no artigo 5º, XXV, da Constituição Federal.
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1 Governo prepara medida para requisitar vacina comprada por estado e município. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26/12/20.
2 Caiado: Governo não precisa de MP e 'indiscutivelmente' vai requisitar vacinas. Disponível clicando aqui. Acesso em: 26/10/20.
3 CARVALHO, Matheus. Manual de direito administrativo. – 6. ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : JusPodivm, 2019, p. 1026.
4 BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. MS25295 DF. Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 20/4/05, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-117 DIVULG 4/10/07 PUBLIC 5/10/07 DJ 5/10/07.
5 BRASIL, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ACO 3.385 MA. Relator: Min. Celso de Mello, Data de Julgamento: 20/4/20, Data de Publicação: DJe-099 24/4/20.