No último dia 1º de dezembro de 2020, a Terceira Turma do STJ concluiu o julgamento do REsp 1820330/SP, de relatoria da Min. Nancy Andrighi, o qual tinha por objeto uma ação coletiva ajuizada pelo Ministério Público de São Paulo contra duas empresas do mercado imobiliário.
A ação do MPSP questionava os contratos "padrões" dessas sociedades empresárias pedindo a declaração da abusividade das cláusulas resolutórias expressas — ou seja, as disposições contratuais que disciplinavam as consequências financeiras da extinção dos contratos por culpa dos adquirentes, decorrentes do inadimplemento do pagamento das parcelas devidas pela compra e venda — que determinavam a retenção de valores entre 50% e 70%, além de pedir a condenação dessas empresas na obrigação de fazer consistente na modificação dos seus contratos “padrões” para permitir a desistência imotivada e unilateral dos consumidores, bem como definir a limitação da retenção dos valores de restituição, em ambas as hipóteses (resolução por inadimplemento e desistência imotivada) em 20%, incluindo-se, neste montante, os valores referentes à comissão de corretagem, taxas administrativas e demais despesas com a confecção do contrato.
No julgamento, a Terceira Turma repetiu o mesmo erro que a jurisprudência brasileira, de forma geral, vem cometendo ao processar e julgar as ações que tratam de extinção de contrato de compra e venda de bens imóveis: não cuidou de distinguir, tecnicamente, o que caracteriza uma resolução culposa e o que caracteriza uma simples desistência — denominada de resilição unilateral — e, a partir da delimitação temática destes institutos, analisar a base legal que disciplina, no campo do Direito Privado, o regime jurídico de cada um dos institutos.
Assim, o acórdão proferido pela Turma utilizou, indistintamente, os termos resolução, desistência e resilição para dar-lhes a mesma consequência prática.
Em resumo, a Min. Nancy Andrighi, fazendo um apanhado cronológico dos precedentes das Turmas de Direito Privado — ou seja, da Segunda Seção — do STJ sobre o tema, definiu que a orientação mais atual em vigência no STJ é no sentido de que nos contratos firmados antes da Lei 13.786/2018, o percentual de retenção pela extinção do vínculo contratual de compra e venda de imóveis por culpa do consumidor é de 25% (vinte e cinco por cento) das parcelas pagas, adequado e suficiente para indenizar o construtor pelas despesas gerais e pelo rompimento unilateral ou pelo inadimplemento do consumidor, independentemente das circunstâncias de cada hipótese concreta.
Ao utilizar a expressão "rompimento unilateral" e dissociá-la do "inadimplemento do consumidor", a Min. Nancy Andrighi dá a entender que, tanto na desistência (resilição), quanto na resolução culposa, o contrato deve ser encerrado e a solução prática adequada e razoável, tomando em conta o prejuízo causado ao vendedor (empresa), será reter 25% (vinte e cinco por cento) dos valores até então pagos, retenção que já contemplaria as despesas administrativas associadas à operação de compra e venda, a exemplo da comissão de corretagem.
Mais uma vez, o STJ não dedicou uma só linha das razões de decisão apresentadas para aprofundar o debate no campo da desistência unilateral, fazendo o confronto entre as disposições dos artigos 473 do Código Civil, 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79, com os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, em especial os artigos 53 e 51, II e IV, deste diploma legal.
Esse aprofundamento é importante para empregar "ajustes finos" nas decisões sobre a matéria, especialmente considerando que os contratos de compra e venda de bens imóveis nos regimes de incorporação e loteamento são IRRETRATÁVEIS por força de lei (ope legis), de forma que a incidência dessas normas, que protegem o mercado imobiliário, dando segurança jurídica às operações realizadas neste segmento, não podem ser afastadas a partir de um raciocínio de revisão contratual.
De fato, o texto legal vigente não pode ser declarado abusivo à luz do CDC. No máximo, o julgador poderá:
1) considerar que o legislador revogou, ainda que tacitamente, os artigos 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79, a partir da edição do CDC, ou;
2) afastar a aplicação desses dispositivos, no caso concreto julgado, em virtude do emprego de técnica de solução do conflito aparente de normas.
Nesta segunda hipótese, todavia, o julgador deverá analisar a antinomia — o conflito, a contradição legal — entre os textos dos dispositivos da Lei de Incorporações, da Lei de Loteamentos e do CDC, a partir do emprego do artigo 2º, § 2º, da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro — LINDb.
Nesse contexto, respeitando as posições em contrário, penso que a par do artigo 2º, § 2º, da LINDb, os artigos 32, § 2º, da lei 4591/64 e 25 da lei 6766/79 devem prevalecer, diante da especialidade das legislações mencionadas, em relação ao artigo 51, II e IV, do CDC, que se encontra em uma Lei Geral de Consumo, pelo menos quando confrontada com os diplomas imobiliários.
E assim concluo pela simples constatação de que a análise da especialidade de um ato normativo passa pelo referencial adotado.
A princípio, no âmbito do Direito Privado, ao se discutir relações contratuais civis, temos no Código Civil uma lei geral. Dessa forma, quando comparamos à legislação codificada civil, temos que a Lei de Loteamentos e a Lei de Incorporações Imobiliárias e o CDC se qualificam como leis especiais: as primeiras são leis especiais imobiliárias, que se destinam a reger as relações contratuais civis que tenham por objeto loteamentos, desmembramentos e incorporações; a segunda, uma lei especial consumerista, regendo as relações contratuais civis de consumo.
Contudo, quando comparamos essas legislações especiais entre si, precisamos verificar dentre tais documentos legislativos qual tem o maior grau de abstração e generalidade. E, nessa perspectiva, é fácil notarmos que o CDC se revela como uma Lei Geral de Consumo, pois pretende disciplinar toda e qualquer relação civil contratual consumerista. Já as Leis de Loteamento e Incorporação Imobiliária se limitam a disciplinar as relações contratuais civis de consumo que tenham por objeto a aquisição de unidades loteadas, desmembradas ou integrantes de incorporações imobiliárias.
Dessa forma, consigo facilmente concluir que: sendo o CDC uma lei especial e anterior em relação ao CC/02, mas geral e posterior em relação às leis imobiliárias, nos termos do artigo 2.º, § 2.º, da LINDb, suas normas não revogam nem modificam às normas extraídas das Leis de Loteamento e Incorporação Imobiliária, e aplicam-se apenas no que não for incompatível com as disposições originárias das leis 4591/64 e 6.766/79.
Mas, afinal, qual, portanto, a solução que proponho como divisor de águas no julgamento de ações que visem discutir extinção de contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis, irretratáveis por força de lei?
Pois bem:
a) se a pretensão for de simples desistência, deverá ser julgada improcedente;
b) se a pretensão for de resolução culposa, e tenha sido de iniciativa do vendedor, deverá ser julgada conforme a súmula 543 do STJ, admitindo-se, aqui, que a retenção seja dimensionada conforme sugere a jurisprudência da Segunda Seção: retenção de 25% (vinte e cinco por cento) dos valores;
c) para ações rescisórias de iniciativa do consumidor que tenham como causa de pedir a alegação de que não possuem mais condições de pagar as parcelas e que, por isso, já se encontram inadimplentes, o contrato poderá ser resolvido não por inadimplemento, mas, sim, por onerosidade excessiva a partir do artigo 478 do CC, hipótese na qual o julgador deverá ter o cuidado de aferir se o consumidor fez prova concreta de sua condição de insuportabilidade financeira (art. 373, I, CPC) e, ainda, permitir que o vendedor possa redimensionar as prestações contratuais — desde seja razoavelmente possível, conforme condições do consumidor adquirente — e reestabelecer o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, evitando, com isso, a resolução, o que está autorizado pelo artigo 479 do CC, e se alinha, inclusive, ao princípio da conservação dos negócios jurídicos.
Com as soluções acima propostas — as quais são extremamente simples — as decisões proferidas em ações desse gênero ganharão maior técnica e juridicidade, saindo do que aprendi a denominar "julgamento conforme o CDC" para aplicar concretamente as normas de Direito Privado que disciplinam os regimes de extinção contratual admitidos pela legislação civilista.