Migalhas de Peso

O pecado, quer dizer, o paradoxo, quer dizer, a pirueta hermenêutica original do STF: O tema 660/STF

A Constituição de 1988 foi um avanço – retórico – nas liberdades. Mas o autoritarismo, in terrae brasilis, é um padrão retrógrado, e estacionário, com lua ascendente em Saturno.

8/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

(...) a bill of rights has value only if the other part of the constitution – the part that really ‘constitutes’ the organs of government – establishes a structure that is likely to preserve, against the ineradicable human lust for power, the liberties that the bill of rights expresses.” Antonin Scalia1

(...) We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal, that they are endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty and the pursuit of Happiness. That to secure these rights, Governments are instituted among Men (...)Declaration of Independence of the United States of America

Não basta declarar direitos, eles não se sustentam no vácuo. Nem adianta reproduzir liberdades na carta, é preciso ter e nutrir o gosto por elas – which implies a taste for solitude. A questão principal, num governo, não é bem quem o governa – se o rei, se o povo, ou se os juízes –, mas quanto de poder é empunhado, e como ele é exercido. Tirania não é senão poder sem limites.

A Constituição de 1988 foi um avanço – retórico – nas liberdades. Mas o autoritarismo, in terrae brasilis, é um padrão retrógrado, e estacionário, com lua ascendente em Saturno. Ele não acabou, recrudesceu e mudou de mãos. E está presente nas coisas mais triviais. O ‘sabe-com-quem-está-falando’ ajustou-se aos novos tempos: (a) hoje ele não usa máscara, e invoca a legalidade como escusa; (b) hoje ele fura a fila da vacina, depois diz que não foi isso, e fica tudo bem.

Scalia tinha razão – e retoma-se aqui o fio da meada. Um Bill of Rights vale pouco, ou mesmo nada, se o exercício do poder não observar limites. Quando ratificada, a Constituição estadunidense não continha uma carta de direitos. A preocupação dos founding fathers era a de instituir um governo limitado, que não interviesse, além do estritamente necessário, na vida das pessoas – na sua busca individual da felicidade. Só depois, com as dez emendas de 1791, consagrou-se uma declaração de direitos. E essa fórmula, com altos e baixos, dura há mais de 200 anos.

Em França, foi o contrário. Acenaram ao mundo com a Déclaration des Droits de l'Homme et du Citoyen de 1789. Mas os bastidores eram, e permaneceram, medievais: uma estrutura bourbônica arraigada, aprimorada com o Conselho de Estado, que fez a glória de Napoleões, e gerou convulsões em looping, num estado de revolução permanente, com constituições efêmeras sucedidas por outras constituições efêmeras. A vontade geral, isto é, a vontade de um só corpo, resultou no que tinha de resultar, numa nova tirania que fez escola mundo afora, com variantes autoritárias sobre a mesma base: a felicidade está no público. O Direito Administrativo brasileiro – que constitui a verdadeira constituição do nosso país – é herdeiro direto dessa tradição autárquica. Nosso antigo regime sobrevive em normas não escritas que molda(ra)m nossa república: supremacia do interesse público, sua indisponibilidade e sua veracidade tout court et a priori. The individual is only a cell.

Sabemos, também, no que deu essa felicidade publicística. Exauridos todos os excessos, ficou, no rescaldo, o Estado-dirigente, mais modesto, e ao mesmo tempo mais sofisticado, e jamais superado em tamanho por nenhum outro: o Estado-burocrata-acadêmico, que não exige mais adesões espirituais; nele, a ideologia que restou é pura, a do poder puro, on the rocks. Se não é possível deter o fluxo da vida, é possível controlá-lo. A propriedade, então, não é uma emanação da personalidade, mas uma função social; contratos, por sua vez, não são ajustes de vontades, mas instrumentos coletivos, passíveis de revisão a qualquer hora por algum guardião iluminado. E a gradação estende-se em reticências sobre todos os domínios. O novo Estado total é o Estado tutelar-interventor, numa intervenção retoricamente legítima, porque tudo passa a ser constitucional, quer dizer, tudo cabe ao Poder Público definir. É nessa água parada, e velha, que ainda bebemos.

O que, afinal, a Revolução Francesa desnudou ao mundo é que o Estado é um bom negócio; que estar nos escalões mais altos do Estado é um ótimo negócio; e que articular toda sorte de artimanhas para ali se manter vale qualquer negócio. Mais ainda: que era possível, com muita demagogia, a serviço de uma ideologia bem pragmática, segundo a qual os fins justificam os meios a partir de engenharias utópicas, erigir uma sofisticada estrutura estatal ainda mais absolutista que a do Estado do Antigo Regime, e que o discurso da vulnerabilidade – um potente galvanizador das massas – é a melhor via de acesso e legitimação para se ocupar os acentos lisérgicos do Poder. E a esse jogo de manipulação, no qual o indivíduo é apenas uma célula que se perde em meio ao difuso e cabalístico interesse público, chama-se democracia, a democracia do Poder Público, que tem seus pilares na autoridade da força, na subserviência da pobreza, e na escuridão da ignorância.

Garantias fundamentais, como reações históricas ao Príncipe, são limites ao jogo do Poder. Mas este, é claro, não gosta daqueles. O supremo exemplo disso, entre nós, vem do Supremo. O reacionarismo está tematizado – no tema 660, fixado em meados de 20132, fruto de uma elaboração antiga, a de se erigir um muro exegético, para que não fossem/sejam julgadas, na via do controle difuso – a mais democrática, porque a via do hombre de la calle –, garantias fundamentais individuais. Um muro de bloqueio, mais exatamente, contra o art. 5º da Constituição de 88, que consagra nosso Bill of Rights. A tese é a de que garantias fundamentais não encerram questões constitucionais, mas reflexas. Segundo ela, o magistrado não pode levar em conta, na via extraordinária, legislação infraconstitucional que se interponha entre a norma constitucional tida por violada e a norma violadora. Ou seja, a tese assenta-se sobre bases impossíveis. E as consequências dessa blindagem não são aleatórias, nem inofensivas, nem gratuitas:

a) Antes de mais nada, não se trata de jurisprudência defensiva do volume de trabalho, mas de jurisprudência defensiva do Poder: sem limites para julgar, com abstração de parâmetros fundamentais impeditivos a serem observados, o STF julga freewheeling;

b) Erguido esse muro, o STF não se compromete com a fixação de teses para uma jurisprudência garantista que oriente o Poder e a sociedade; não há, então, uma jurisprudência firme, constante, diuturna, confiável e estável, erigida no silêncio das paixões, sobre garantias fundamentais, mas apenas julgados esparsos, erráticos, sobretudo midiáticos;

c) Ao relegar garantias fundamentais a uma posição subalterna, oblíqua, reflexa e transversa, o STF sinaliza, para todo o Poder Judiciário, com luz verde para que os demais tribunais façam o mesmo; por que, afinal, um magistrado comum deveria fazer mais do que um magistrado constitucional?; daí, portanto, deriva a autorização tácita para a inversão corriqueira de, v.g., o CDC sobrepor-se amiúde, nas lides, à Constituição Federal;

d) Guardam-se, então, esses trunfos, o das garantias fundamentais, como reservas retóricas de ultima ratio, a serem invocadas quando o Poder Público estiver at stake, e precisar delas, notadamente nos julgamentos objetivos, ou coletivistas, ou criminais, ou que envolvam clamor popular, capitaneados por seus integrantes, ou circunstantes que orbitam em suas esferas;

e) Assim, a liberdade, que se tem, é a liberdade que o Poder Público concede; a liberdade de ração, em porções parcimoniosas e ocasionais;

f) Por fim, a suma das sumas, que é a suma da Constituição de 88: se a Carta, holística, encarta tudo, mas se, no entanto, o próprio Poder Público é o seu principal devedor, e o primeiro a descumpri-la, ao não honrá-la, a saída, então, é judicializar as questões (toda e qualquer uma); sem limites, então, o Poder Judiciário, que também integra o Poder Público, torna-se onipotente, a última tábua do publicismo, e o bastião do sistema; então ele inventa direitos, aniquila outros, e implementa políticas públicas; no final, sem poder imputar o ônus desse criacionismo para o próprio Poder Público inadimplente, ele o transfere para a iniciativa privada; a sociedade, enfim, suporta e financia, cada vez mais vergada e empobrecida, o peso dessa utopia.

Há, é claro, e deveria haver, uma sofisticada engenharia de sofismas por trás de tudo: o principismo. Princípios, afinal, com sua verbosidade melíflua, vendem livros, concedem cátedras, e são trampolins para altos escalões do Poder. Mas a realidade fica encoberta nesse discurso vulgar. Seria tentador concluir que, nesse estado de coisas, o pecado, ou o paradoxo, ou a pirueta original, e suprema, consistiria em que, numa Constituição principista, tal como a nossa, os princípios mais altos ficam de fora da mais alta Corte – e, por tabela, são negligenciados, com esse aval, pelos demais tribunais; seria tentador concluir com o lugar comum de que, se, na constituição Rio-Babilônia, tudo é constitucional, simplesmente é inaceitável a tese de violação reflexa; seria tentador, enfim, concluir que, se, na “Constituição 1984”, tudo flui para um centralismo decisório, executado pelos Filósofos-Reis, o Poder não pode se esquivar de julgar garantias do cidadão que lhe são oponíveis.

Tudo isso seria tentador. Mas seria pouco, e simplório. O mosaico é mais engenhoso. Princípios introduzem a técnica – de Poder – do duplo pensamento: algo é e não é ao mesmo tempo; algo pode ser e não ser ao mesmo tempo; algo foi ou não foi ao mesmo tempo, tudo conforme a ocasião, e a serviço do poder. Princípios são recurvos, dúcteis e manipuláveis o bastante para tal. São produtos teóricos de uma linha esotérica e histérica de pensamento. Rousseau, se não for a grande virada nesse movimento, é um grande nome dessa tradição. Depois vieram os alemães, que são tudo, menos claros. Até Kant, o mais sóbrio, não é cortês com o leitor. Um texto deve ser claro. Se possível, elegante. Em meio, no entanto, a tantas obscuridades plantadas, banhados em preconceitos direcionados, adredemente para entortar as cabeças – a propriedade é um roubo, o indivíduo é egoísta, a sociedade corrompe, o Espírito do Tempo, a marcha da História, o desvelamento do ser ... e tantas outras verborragias do non sense –, princípios preparam a dialética hegeliana da contradição de valores e bens (lugar comum dos scholars): tese, antítese e síntese, esta levada a cabo pelo Estado, o dono da bola e da banca, que, mesmo falido, nunca quebra. Tudo fica preparado, portanto, para que o Estado em tudo interfira e tudo decida.

Só que Estado de Direito é Estado de clareza, não de sombras. É dever do Estado manifestar-se e comunicar-se, seja em leis, seja em atos administrativos, seja em sentenças, da forma mais clara, direta e objetiva possível aos cidadãos; é sua obrigação desenvolver técnicas que tragam certeza e assertividade às relações, e não ambiguidade ou vagueza, com segundas ou terceiras intenções. E, seja como for, nem tudo são princípios, muito menos no Brasil, onde há uma infinidade de regras; aqui, nesse ambiente, a aplicação de princípios, com muito mais razão, deveria ser excepcionalíssima, simplesmente porque há regras, constitucionais e infraconstitucionais, para – quase – tudo. É preciso esvaziar esse discurso murcho, flácido e esgarçado. Garantias fundamentais, por exemplo – ou grande parte delas, ao menos –, não são princípios: são mandamentos retilíneos contra o Poder Público. Legalidade, v.g., não é princípio, legalidade é postulado: o Poder Público não agirá sine lege, ou contra legem, ou praeter legem. Irretroatividade não é princípio, é postulado: o Poder Público não editará atos com força pretérita. Devido processo legal não é princípio, é postulado: ninguém será privado de bens, ou da liberdade, ou até mesmo da vida, sem um processo justo, garantida a ampla defesa, com pleno contraditório, e vasta produção probatória. Direito adquirido não é princípio, é postulado: o Poder Público não poderá suprimir situações subjetivas já consolidadas. E assim vai. Não cabe ao intérprete, aí, fazer curvas, ou cambalhotas hermenêuticas. Não há espaço.

É sofisticada, no entanto, a retórica do principismo, porque o publicismo é complexo. Garantias fecham o leque do poder; princípios, por sua vez, abrem-no, liberando-o de limites; princípios, então, valem mais do que garantias; é que princípios, na prática, encobrem garantias: eis o seu papel velado, não revelado nos livros. Garantias fundamentais deveriam ser o credo escrupuloso da magistratura. Mas, sem princípios, e devendo observar garantias, como o Poder Judiciário inventaria direitos? Uma Suprema Corte, é claro, não deve julgar tudo. Mas uma Constituição não deve, também, conter tudo. E o fato é que, embora não deva julgar tudo, uma Suprema Corte não pode furtar-se de julgar garantias fundamentais. Até porque, se a Constituição de 88 prometeu Justiça absoluta, não pode o essencial ficar de fora. Esse escapismo, seja como for, não tem fundamento na letra do art. 102, III, ‘a’, da CF. Nada é dito ali sobre violação de frente, de lado ou de cócoras.

Tudo somado e subtraído, nosso Bill of Rights é um adorno oratório, invocável quando útil. Nossas estruturas são reacionárias. A liberdade é racionada. O indivíduo não tem quem lhe segure uma bandeira, não tem sindicato, nem lobby político. O indivíduo, no final do dia, não tem nem recurso extraordinário; ele não integra a cartilha do politicamente correto, é só mais um. Liberdades, afinal, não vendem livros. A busca da felicidade – que não é coletiva – é um ideal pequeno burguês.

Mas a vida é de verdade. E o ócio de Macunaíma precisa de subsídios. O Estado oferece-lhe, então, uma sombra inerte gigante. Um Estado sustentado por seus filhos – filhos, no entanto, que ele mesmo os devora. Daí a vertigem de nossa decadência cultural agônica e aguda de décadas. A sociedade está sem luz; o indivíduo, apagado; e o Poder, inchado. E quando o poder é coletivo, servidão é liberdade. “The greatest principle of all is that nobody, whether male or female, should ever be without a leader. Nor should the mind of anybody be habituated to letting him do anything at all on his own initiative (...)(Platão, Laws, 942a). A Constituição de 88 é a festa do Poder Público. Segurança jurídica é uma sacarina de péssima qualidade vendida a preços extorsivos à sociedade. E Scalia, de novo, tinha razão: com tanto atavismo, e uma sociedade cada vez mais enfraquecida e infantilizada, um bill of rights é facilmente repelido com um piparote retórico.

_________

1 SCALIA, Antonin, in “Reflections on Law, Faith, and Life Well Lived”, New York, Crown Forum, 2017, p. 163.

2 “VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA QUANDO O JULGAMENTO DA CAUSA DEPENDER DE PRÉVIA ANÁLISE DA ADEQUADA APLICAÇÃO DAS NORMAS INFRACONSTITUCIONAIS. EXTENSÃO DO ENTENDIMENTO AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL E AOS LIMITES DA COISA JULGADA.” O acórdão paradigma do Tema 660/STF recebeu a seguinte ementa: “Alegação de cerceamento do direito de defesa. Tema relativo à suposta violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa, dos limites da coisa julgada e do devido processo legal. Julgamento da causa dependente de prévia análise da adequada aplicação das normas infraconstitucionais. Rejeição da repercussão geral.” (STF, ARE 748.371 RG, relator min. Gilmar Mendes, julgado em 6/6/13, DJe 31/7/13; grifou-se)

Bruno Di Marino
Advogado

Álvaro Ferraz
Mestre em Direito Processual Civil, especialista em Direito Processual Civil.

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