Migalhas de Peso

A Ilegítima Lei de Improbidade: Um Direito Penal de feições Nazistas

Em pleno Governo Collor, em que se estabeleceu uma disputa entre opositores políticos, sob os holofotes das vozes populares, que cobrava respostas moralistas e àquele governo cabia, portanto, apressar a promulgação de uma lei que representasse um combate à corrupção.

8/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

A lei 8.429/92 (alcunhada de Lei de Improbidade Administrativa) é ilegítima. Esta é a hipótese, de largada, que se estabelece nestes comentários dos quais nos ocuparemos neste breve artigo. Mas, em termos acadêmicos, para o que aqui se quer obtemperar, o que merece destaque é o problema que uma Lei ilegítima (tal qual esta) é capaz de gerar no ordenamento jurídico e naqueles que estão a ele submetidos: excesso de concentração de poder nas “mãos” do Estado-Juiz, arbitrariedade e, sobretudo, o esvaziamento completo de garantias constitucionais. É impossível se defender quando não se sabe do que se é acusado. Será mais bem explicado, adiante.

A primeira vertente, é analisar a lei em seu contexto de criação. Trata-se de édito de 1992, em pleno Governo Collor e em que se estabeleceu uma disputa entre opositores políticos, sob os holofotes das vozes populares, que cobrava respostas moralistas e àquele governo cabia, portanto, apressar a promulgação de uma lei que representasse um combate à corrupção. Sim, o Brasil chega a ser repetitivo em soluções legislativas imediatistas, emergenciais e feitas apenas em caráter simbólico1.

Contudo (e não menos grave) o contexto daquela época explica as lamentáveis razões da promulgação da Lei de Improbidade, mas não justifica o que ocorre no contexto atual, a manutenção de um compilado de disposições legais incompatíveis com um Estado Democrático de Direito, estabelecido sob as balizas da CF/88, de onde se extrai princípios irrenunciáveis por qualquer cidadão, a exemplo da legalidade e taxatividade (art. 5º, inciso XXXIX da CF/88), que proíbem normas sancionadoras em branco (verdadeiros enunciados de conteúdo indefiníveis).

Com efeito, a sanha punitiva desta lei é tamanha que não se consegue, nem mesmo, precisar, com uma definição idônea, quem são aqueles elegíveis como agentes ímprobos (que por definição primeira e premissa, deveriam ser agente públicos). Ao tempo que o art. 2º elenca uma série de pessoas que se considera agente público (e as hipóteses são extensas), o art. 3º termina por dizer que as disposições da lei (declaradamente criada aos agentes públicos – vide seu preâmbulo) - são aplicáveis também a quem não é agente público. É aquilo que no Direito Penal - este sim, por natureza, repressor - se nomearia de tipicidade por extensão2. Sendo ainda mais claro: para a Lei de Improbidade Administrativa é despiciendo ser agente público, quer se enquadre ou não naquele cansativo rol “conceituador” do art. 2º. Se não o for, também responderá. Inconciliável com os desígnios fundantes da lei.

Portanto, ou não se sabe, juridicamente, quem (e o que) é agente público ou se quer punir a todos, indiscriminadamente. Seria mais útil e de mais fácil percepção (e não que se concorde com o seu conteúdo) falar-se em “qualquer do povo”. Economizava-se texto e se seria mais direto. A redação atual mais confunde que esclarece. Ou revela o caráter altamente punitivista da lei.

Mas, “não há nada tão ruim que não possa piorar”. Para além de não se saber (ou não ser importante saber) quem são os agentes públicos, a Lei de Improbidade não consegue definir, com um mínimo de segurança aceitável, quais atos caracterizam improbidade administrativa. Sobejam, no particular, os tipos de improbidade que de tão inespecíficos são impassíveis de ser conceituados. Por exemplo, é ato de improbidade administrativa ação ou omissão de malbaratamento de bens (art. 10 da lei 8.429/92). Contudo, “malbaratar” é vender algo por um preço muito barato e a compreensão de “barato” ou “caro” pressupõe ter-se definições concretas de conceitos econômicos prévios. Afinal, a depender do poder aquisitivo de quem adquira ou venda, o “caro” é “barato” e vice-versa e entre essas variáveis o sujeito torna-se ímprobo ou probo.

É também ato de improbidade “realizar operação financeira sem observância das normas legais e regulamentares” (inciso VI do art. 10 da lei 8.429/92). É de se indagar: quais normas legais e regulamentares? Encaixam-se nesses conceitos, por ostentarem esta natureza jurídica, desde uma previsão legal contida na lei que trata do Sistema Financeiro Nacional até uma Circular do Banco Central que, até última consulta feita3, estava na edição 4.076 (quatro mil e setenta e seis circulares).

Significa dizer, portanto, que se o agente público (sujeito indefinido) promover uma operação financeira e não observar alguma das milhares de cartas circulares expedidas pelo Banco Central poderá ser considerado ímprobo. E assim se seguem todas as demais previsões que adotam os termos “regulamentos”, “formalidades legais”, “normas pertinentes” para punir.

Ainda nesta toada de (in)definição de atos ímprobos, o estopim da vicissitude da lei (e mais precisamente, da sua ilegitimidade) está no art. 11º, que considera ato de improbidade aquele que atente contra “princípio da administração pública” ou que, por ação ou omissão, “viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições”.

Seria desafiador (não fosse a evidente inconstitucionalidade) desincumbir-se do múnus conceitual para definir-se a quais princípios se refere a lei e, notadamente, qual a definição, por essência, de honestidade e lealdade. O primeiro remete-se a preceitos morais, inclusive de “decência”, “pureza”, “castidade”. O segundo à fidelidade com compromissos assumidos. Não é demasiado dizer que o que é moralmente aceito ou não, puro ou impuro, se modifica no tempo e no espaço. É inclusive uma compreensão regionalizada. Por outro lado, “fidelidade” é qualidade que existe até mesmo entre aquele que se unem para praticar delitos.

O grande “senão” advindo desta técnica legislativa (ou ausência dela) é que estes conceitos vagos e imprecisos obrigatoriamente serão estabelecidos pelo Estado-Juiz quando, na oportunidade, lhe for dado o ofício de julgar alguém e qualificá-lo como ímprobo ou não.

A falta de conceitos prévios e bem definidos necessariamente obrigam o julgador a definir os elementos que compõem estas normas repressivas de acordo com suas convicções pessoais e regras de experiências próprias de vida, no caso concreto. Esvazia-se, por completo, qualquer meio de garantia do cidadão contra eventual arbítrio e excesso do Estado. Muito similar ao que ocorre no processo penal, onde concebe-se que “forma é garantia”4, também deve-se inferir no processo administrativo de cunho sancionador. Aqui, dadas as gravíssimas penalidades àqueles considerados ímprobos, forma também é garantia.

A Lei de Improbidade prevê punições extremamente graves, que variam de perda de bens e valores, multas, ressarcimentos, suspensão de direitos políticos, até mesmo a perda da função pública (esta última, circunstância definitiva de que não se tem equivalência, em termos de perenidade, nem mesmo no Código Penal, que não tem previsão de prisão perpétua).

Estas considerações evidenciam que a Lei de Improbidade, criada a partir de disputas políticas e por um juízo de conveniência em uma sociedade, naquele contexto, que aclamava por algum símbolo de combate à corrupção, afastou-se completamente das diretrizes constitucionais já vigentes à época, que direcionavam (e direcionam) para que as leis, notadamente as de caráter sancionador, sejam claras e precisas. Afinal, o cidadão só pode adotar uma conduta correta se compreender o que é incorreto. Esta é uma disfunção causada pelos tipos que contemplam normas em branco.

O direito deve estar à serviço da sociedade como garantia do cidadão contra abusos estatais. Quando uma lei é criada com finalidades outras, que não seja organizar a sociedade civil, promover garantias e, ainda, a partir de normas proibitivas tecnicamente claras, punir os que adotam condutas desviantes, ela passa a ser ilegítima. Perde-se a sua função como norma.

Esta é a Lei de Improbidade no Brasil. Adotou-se, aqui, motivos justificantes para elaboração da lei próximos àqueles utilizados no regime Nazista na Alemanha, quando em 28 de junho de 1935, extirpou-se lá o princípio da legalidade, configurando nova redação ao Código Penal Alemão, passando a ser punido o indivíduo que “mereça uma pena segundo a ideia básica de uma lei penal ou segundo o são sentimento do povo”5

A Lei de Improbidade brasileira, considerou, à época, a vontade popular, distanciando-se de um debate profundo, amplo e técnico das suas casas legislativas. Para além disso, fez tábula rasa do princípio da legalidade e taxatividade, uma técnica (ou falta dela) que torna seu conteúdo uma reprodução, com seus devidos ajustes e consequências, de um Direito Penal com feições Nazistas.

______

1 Decisão do STF de trancar ação contra Capez corrige falhas da lei de improbidade.

4 Sistema de nulidades “a la carte” precisa ser superado no processo penal.

5 O Direito Penal, o "sentimento do povo" e o nazismo alemão.

Catharina Araújo Lisbôa
Advogada criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados. Especialista em Ciências Criminais. Professora da pós-graduação em Ciências Criminais da Faculdade Baiana de Direito.

Pablo Domingues Ferreira de Castro
Doutorando pelo IDP(DF). Mestre e especialista. Professor de cursos de pós-graduação, coordenador adjunto da pós-graduação em Ciências Criminais. Advogado criminalista do escritório Ana Paula Gordilho Pessoa e Advogados Associados.

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