Migalhas de Peso

Indenização integral no seguro automóvel – tabela Fipe

Um novo olhar sobre a jurisprudência que determina o pagamento da indenização com base na data do sinistro.

6/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

O seguro de automóvel é provavelmente a modalidade de seguro mais popular no Brasil e dentre as possibilidades ofertadas é possível contratar cláusula de cobertura integral por Valor Determinado ou por Valor de Mercado Referenciado (VMR). Na primeira opção, ocorrendo o sinistro, o pagamento da indenização estará limitado ao valor pré-determinado na apólice; enquanto, na segunda opção, o limite é variável e determinado em Tabela de Referência, sendo comumente adotado pelo mercado securitário a definição da Tabela FIPE.

O tema pode parecer simples, mas tem sido alvo de discussões no Poder Judiciário, especialmente no que tange à data a ser considerada para definição do valor da indenização nos casos em que a apólice é contratada com cobertura por Valor de Mercado Referenciado quando há um amplo lapso temporal entre a data de ocorrência do sinistro e a data do pagamento da indenização, seja por pendências de documentos necessários à regulação ou em razão de discussão judicial.

A controvérsia já foi submetida ao julgamento do STJ que reconheceu abusividade da previsão contratual, tendo determinado o pagamento da indenização com base no valor da Fipe do mês de ocorrência do sinistro, conforme ementa abaixo:

RECURSO ESPECIAL. CIVIL. DIREITO SECURITÁRIO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL.  NÃO OCORRÊNCIA. SEGURO DE AUTOMÓVEL. PERDA TOTAL DO
VEÍCULO. INDENIZAÇÃO. APURAÇÃO. VALOR MÉDIO DE MERCADO DO BEM.
TABELA FIPE. DATA DA LIQUIDAÇÃO DO SINISTRO. ABUSIVIDADE. ADEQUAÇÃO. DIA DO SINISTRO. PRINCÍPIO INDENITÁRIO.

1.  Cinge-se a controvérsia a saber se a indenização securitária
decorrente de contrato de seguro de automóvel deve corresponder, no
caso de perda total, ao valor médio de mercado do bem (tabela FIPE)
apurado na data do sinistro ou na data do efetivo pagamento
(liquidação do sinistro).
2.  O Código Civil de 2002 adotou, para os seguros de dano, o
princípio indenitário, de modo que a indenização securitária deve
corresponder ao valor real dos bens perdidos, destruídos ou
danificados que o segurado possuía logo antes da ocorrência do
sinistro. Isso porque o seguro não é um contrato lucrativo, mas de
indenização, devendo ser afastado, por um lado, o enriquecimento
injusto do segurado e, por outro, o estado de prejuízo.
(g.n.)
3. Nos termos do art. 781 do CC, a indenização no contrato de seguro
possui alguns parâmetros e limites, não podendo ultrapassar o valor
do  bem (ou  interesse segurado) no momento do sinistro nem podendo
exceder o limite máximo da garantia fixado na apólice, salvo mora do
segurador. Precedentes.
4.  É abusiva a cláusula contratual do seguro de automóvel que impõe
o cálculo da indenização securitária com base no valor médio de
mercado do bem vigente na data de liquidação do sinistro, pois onera
desproporcionalmente o segurado, colocando-o em situação de
desvantagem exagerada, indo de encontro ao princípio indenitário.
Como cediço, os veículos automotores sofrem, com o passar do tempo,
depreciação econômica, e quanto maior o lapso entre o sinistro e o
dia do efetivo pagamento, menor será a recomposição do patrimônio
garantido.
(g.n.)

5. A cláusula do contrato de seguro de automóvel a qual adota, na
ocorrência de perda total, o valor médio de mercado do veículo como
parâmetro para a apuração da indenização securitária deve observar a
tabela vigente na data do sinistro e não a data do efetivo pagamento (liquidação do sinistro).
6. Recurso especial provido.

(STJ – Resp 1546163/GO – Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – Data do Julgamento: 05.05.2016)1

Inobstante existirem diversos julgados neste mesmo sentido e os respeitáveis fundamentos apresentados no acórdão mencionado, tendo em mente a função social do contrato de seguro e a relevância econômica que carrega e que restou ainda mais evidenciada pelo período de pandemia que o mundo atravessa, é imprescindível retomar a discussão do tema e o avaliarmos sob outros prismas, mas com a mesma fundamentação.

 O ilustre Ministro, esclarece que o CC/02 adotou o princípio indenitário para os seguros de danos, o que significa dizer que a indenização securitária deve corresponder ao valor real dos bens perdidos, destruídos ou danificados, não sendo possível admitir que o pagamento resulte em lucro ou prejuízo ao segurado, salvo restrição da garantia. Este entendimento se fundamenta no disposto no art. 781 do Código Civil, abaixo transcrito, e respeitável posicionamento doutrinário sobre o tema.

Art. 781. A indenização não pode ultrapassar o valor do interesse segurado no momento do sinistro, e, em hipótese alguma, o limite máximo da garantia fixado na apólice, salvo em caso de mora do segurador. (g.n)

Ainda, argumenta, para fundamentar a decisão final da Corte, ser evidente a depreciação econômica do bem em razão do lapso temporal necessário para regulação e liquidação do sinistro, o que onera desproporcionalmente o segurado e o coloca em posição de desvantagem exagerada. Assim, quanto maior o lapso temporal, menor será a recomposição do patrimônio garantido.

Não se vislumbra qualquer possibilidade de fundamentação diversa à apresentada no julgamento, mas, com a devida vênia, alcançar conclusão diversa.

Como pertinentemente elucidado pelo ilustre ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, que tem brindado o mercado com seus posicionamentos sobre o Direito Securitário em seus diversos ramos, os pagamentos de indenizações fundamentados em apólices de seguros de danos não devem não gerar lucro ou prejuízo ao segurado, mas sim a exata reposição do patrimônio perdido. E a palavra “devem” não foi destacada despropositadamente, isto por quê, as seguradoras tem o dever, e não a faculdade, de liquidar as indenizações nos estritos termos da lei e do contrato firmado, na medida em que sua função social principal é resguardar o fundo de mutualismo. Desta forma, qualquer pagamento em desconformidade com o estipulado em contrato e considerado como limite do risco assumido, seja para mais ou para menos, refletirá na administração do fundo de mutualismo e poderá ensejar, por exemplo, a necessidade de majoração dos prêmios cobrados dos demais segurados.

Note-se que, além do impacto aos segurados que efetivamente firmam os contratos com a seguradora, há ainda que ser considerado o impacto social causado com a majoração dos prêmios, na medida em que muitas pessoas deixem de ter o direito de proteger seu patrimônio por limitação orçamentária e financeira.

Assim, sempre que questões securitárias são colocadas sob a análise do Poder Judiciário, é mister não perder de vista os aspectos acima mencionados: a proteção ao fundo de mutualismo para os demais segurados que dele já participam e o alcance e impacto social da viabilidade de contratação do seguro por uma maior parcela da sociedade.

Em atenção à premissa de que o segurado deve receber indenização em quantia suficiente para repor seu patrimônio, nada além ou aquém, e que os veículos, em sua maioria, sofrem depreciação com o passar do tempo, não há outra solução mais justa do que considera o valor da Fipe na data da liquidação.

Explico através de exemplo hipotético.

Consideremos que um sinistro ocorreu em Janeiro, quando o veículo segurado tinha o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) pela Fipe e que o segurado possui toda a documentação necessária para recebimento da indenização dentro do mesmo mês, nos termos do previsto nas Condições Gerais da apólice e ele recebe esta quantia e adquire outro veículo nas mesmas condições e características do veículo sinistrado. Há, nesta situação, integral atendimento ao princípio indenitário explicitado. Passados 10 (dez) meses, este novo veículo adquirido não tem mais o mesmo valor que passou a ser de R$ 17.000,00 (dezessete mil reais), ou seja, houve desvalorização de seu patrimônio, visto que é inerente à natureza deste tipo de bem sua depreciação, conforme corretamente enfatizado na decisão que fundamentou a decisão mencionada e tida como paradigma para outras tantas decisões.

Agora, consideremos um outro segurado que possui o mesmo veículo e também sofre um sinistrado em Janeiro, mas que, por questões diversas como pendências com financiamento, processo de inventário, dentre outras questões, apenas foi pode apresentar todos os documentos à Seguradora em Outubro do mesmo ano, ou seja, 10 meses após a ocorrência do sinistro. Neste momento, se este segurado receber indenização com base na tabela Fipe da data do sinistro, teria um lucro de R$ 3.000,00 (três mil reais) em relação ao segurado que tinha toda a sua documentação regularizada, o que possibilitou o pagamento da indenização em curto lapso temporal. Sob esta ótica, temos que ocorre exatamente o que pretende prevenir que é a aferição de lucro pelo segurado e prejuízo para todo o resto do fundo de mutualismo.

Por oportuno, cabe esclarecer que as causas de atraso para pagamento da indenização do seguro podem ser as mais diversas possíveis, como, por exemplo, a regularização de documentos ou discussão judicial quanto à recusa do sinistro e raramente decorrem de atraso pelas seguradoras, salvo por falhas operacionais pontuais, na medida em que há determinação de prazo máximo de 30 (trinta) dias para conclusão do sinistro que, caso descumprido, sujeita a seguradora à sanções impostas pela SUSEP. Assim, em grande parte das situações em que o pagamento da indenização ocorre muito tempo após a ocorrência de sinistro não decorrem de situações de mora da Seguradora, mas do segurado ou, até mesmo, da grande quantidade de ações que são submetidas à apreciação do Poder Judiciário e que impossibilitam julgamento em curto espaço de tempo. Com isto, o pagamento tardio, com valor da Fipe da data do sinistro e em decorrência de mora que não pode ser atribuída à Seguradora, revela total inobservância ao disposto no art. 781 do Código Civil.

Além dos argumentos expostos, o exemplo exposto deixa evidente que o pagamento da indenização tardia nos termos reconhecidos pela Jurisprudência, resulta em tratamento absolutamente desigual entre os segurados, além de privilegiar e talvez até mesmo incentivar a protelação de entrega de documentos pelo segurado para recebimento da indenização.

Assim, por todos os motivos expostos, faz-se necessária a reanálise do posicionamento jurisprudencial mencionado, visto que o pagamento da indenização no valor da tabela Fipe correspondente ao mês do sinistro, resulta em lucro quando houver depreciação e prejuízo quando houver valorização do veículo em razão do decurso do tempo, hipóteses que não coadunam com o princípio indenitário que norteia a atividade securitária e resulta em desequilíbrio do fundo de mutualismo que ensejará aumento de prêmio e impedirá a contratação do seguro por uma parcela mais significativa da sociedade e um melhor desenvolvimento econômico do país.

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Cinthya Viana Ferenczi
Advogada formada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e pós-graduada em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito. Atua no mercado segurador desde 2004.

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