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Os impactos da pandemia da covid-19 nos contratos de locação imobiliária

Como os Tribunais brasileiros têm tentado moderar os efeitos da crise nos contratos de locação.

4/1/2021

(Imagem: Arte Migalhas)

 

A pandemia da COVID-19 não é apenas um evento imprevisível, mas também irresistível tanto em sua ocorrência quanto em seus efeitos (inevitável), tendo afetado profundamente as relações contratuais dos mais variados tipos, incluindo os contratos de locação imobiliária. Por essas características, já foi reconhecida como hipótese de evento imprevisível/ força maior/onerosidade excessiva no Judiciário, onde as discussões sobre os efeitos da pandemia já foram amplamente tratadas no Brasil. 

Disposições legais pré-existentes 

O Código Civil já prevê formas de lidar com eventos imprevisíveis, supervenientes, extraordinários e com consequências incontroláveis sobre os contratos privados, como é o caso da pandemia da COVID-19. Nesse sentido, p. ex., o artigo 393 do referido diploma legal prevê que a parte devedora “não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior” caso não tenha expressamente se responsabilizado por esses eventos. 

De igual forma, com base na teoria da imprevisão, as partes podem buscar no Judiciário a revisão da obrigação pactuada caso um fato imprevisível e superveniente provoque “desproporção manifesta” no valor da prestação no momento da sua execução (artigo 317 do Código Cívil). 

Na mesma linha de raciocínio, visando ao equilíbrio das relações obrigacionais, os artigos 478 a 480 do Código Civil estabelecem que, nas hipóteses em que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, gerando “extrema vantagem” para a contraparte, o devedor poderá pedir a resolução do contrato, retroagindo os efeitos da sentença que a decretar à data de citação.

A resolução contratual nessas bases, no entanto, poderá ser evitada se a parte credora – que está em vantagem – anuir em ajustar as condições do contrato de forma mais equitativa.  

Além do Código Civil, cabe destacar que os artigos 18 e 19 da lei 8.245/91 (Lei de Locação) estabelecem que as partes podem ajustar um novo valor para o aluguel bem como incluir ou modificar a cláusula de reajuste no curso do contrato. No entanto, inexistindo acordo, o valor do aluguel poderá ser revisto judicialmente após três anos de vigência do contrato. 

Em linhas gerais, estes têm sido os principais dispositivos legais utilizados pelas decisões judiciais que trataram sobre o tema até este momento. 

Ademais, nota-se que grande parcela da jurisprudência acerca do assunto está relacionada ao contrato de locação comercial, sobretudo em shoppings, comércios de rua e lajes corporativas, áreas que foram mais afetadas pelas medidas restritivas implementadas pelo Estado em determinados momentos para controle da pandemia.

Advento da lei 14.010/20 

Não obstante as disposições do Código Civil – e também da Lei de Locações – serem diretamente aplicáveis aos efeitos da pandemia sobre os contratos privados, inclusive os de locação, o legislador, em menos de 3 meses do início das medidas de contenção da disseminação do novo coronavírus, aprovou o projeto de lei 1.179/20, proposto pelo Senador Antonio Anastasia (PSD/MG).  

O projeto de lei 1.179/20 tinha como objetivo instituir regras de emergência e transitórias, aplicáveis às relações de direito privado durante o período de calamidade pública causada pela pandemia da COVID-19 e, após algumas importantes alterações ao texto original, foi aprovado e tornou-se a lei 14.101/20. 

Uma das disposições mais representativas sobre o tema foi a possibilidade de suspensão temporária do pagamento do aluguel das locações residenciais durante o período de maior impacto, prevista no texto original.  

Essa suspensão foi justificada pela alteração repentina do quadro econômico-financeiro da parte locatária em decorrência da pandemia. Após debates, a medida, no entanto, não foi aprovada no Senado, por se entender que também poderia resultar em prejuízos para os proprietários, locadores dos imóveis, os quais também poderiam depender da receita do aluguel para seu sustento e também foram, de alguma forma, impactados pelos efeitos da pandemia. 

Ao final, nenhuma das regras emergenciais que tratavam especificamente de contrato de locação – ou mesmo de contratos imobiliários em geral – foi aprovada e o texto da lei 14.010/20 acabou não tendo impacto tão significativo neste tipo de relacionamento.  

Precedentes sobre impactos da COVID-19 nos contratos de locação 

Os Tribunais – tal como o legislador – tiveram abordagem cautelosa ao tratarem do tema. Não há propriamente uma controvérsia quanto à qualificação da pandemia como evento de força maior – uma vez que se enquadra na própria definição de fato necessário, cujos resultados e impactos não podem ser prevenidos ou evitados pelas partes, conforme prevê o artigo 393 do Código Civil.  

No entanto, a posição atual da jurisprudência é que tal evento de força maior afeta ambas as partes indistintamente. Portanto, a revisão ou mesmo a rescisão prematura de um contrato, sem a devida aplicabilidade de sanções contratuais, deve ser baseada no real impacto provocado pela pandemia sobre a capacidade econômico-financeira das partes.

Nesse contexto, o que se percebe dos julgados é que a proatividade das partes em negociar e adotar as medidas para mitigar os prejuízos decorrentes da pandemia antes de levar a questão aos Tribunais está sendo considerada vital para determinar as chances de êxito dessas ações. 

Parte relevante das discussões sobre contratos de locação está sendo levada aos Tribunais pelos locatários e gira em torno da possibilidade de suspensão ou redução das parcelas do aluguel.

Nestes casos, a jurisprudência predominante do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo está observando, em síntese, duas questões essenciais para acolher as pretensões dos autores: (i) deve haver prova concreta do desequilíbrio contratual e redução da capacidade econômico-financeira do locatário induzida pela pandemia; e (ii) o locador deve ser reativo às soluções negociadas para tentar mitigar os impactos da crise. Caso estes requisitos não se verifiquem, tem prevalecido o entendimento de que não há motivos para interferir na autonomia das partes e suspender ou reduzir temporariamente os valores dos aluguéis. 

Em um caso específico, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento a um recurso interposto pelo locador contra decisão proferida pelo juiz de primeira instância que, liminarmente, havia reduzido o valor mensal pago pelo locador devido à pandemia da COVID-19. O Tribunal, então, revogou a decisão de primeira instância considerando que (i) a crise econômica provocada pela pandemia presumivelmente afeta ambas as partes contratantes e, portanto, não poderia ter provocado desequilíbrio contratual; e (ii) o locador já havia reduzido em 70% o valor do aluguel durante a pandemia. 

Dessa forma, é possível afirmar que, em linhas gerais, a jurisprudência – sobretudo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – tem flexibilizado o cumprimento das obrigações (i.e., pagamento de aluguéis), mas visando a um razoável equilíbrio nas relações e mediante demonstração do real impacto causado pela pandemia na esfera econômico-financeira da parte requerente e das tentativas de solução amigável da controvérsia. 

Embora grande parte dos julgados analisados tratem de decisões liminares – uma vez que se referem a agravos de instrumento interpostos contra tais decisões – e se referem a um tipo específico de contrato imobiliário, eles definem uma tendência clara de como os tribunais brasileiros estão abordando a revisão contratual e pedidos de rescisão com base na crise pandêmica. E essa abordagem tende a ser propensa à preservação do contrato e privilegiar a autonomia das partes para negociar e encontrar uma solução equitativa. 

Com base nos dados preliminares disponíveis e analisados, é possível concluir que, embora as consequências da pandemia tenham afetado duramente os contratos de locação – principalmente devido a uma queda repentina da receita de pessoas físicas e jurídicas – os Tribunais e os legisladores têm sido cautelosos ao revisar ou suspender termos e cláusulas inseridos pelas partes em contratos privados de uma forma geral. Em vez disso, preferiram preservar os contratos e a autonomia das partes contratantes para negociar soluções extrajudiciais com vistas ao reequilíbrio das disparidades causadas pela pandemia, privilegiando, assim, a segurança jurídica sobre as decisões açodadas. 

Jayme Marques de Souza Junior
Advogado do escritório BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão.

Anderson de Souza Amaro
Advogado da área de Contencioso e Arbitragem da banca BMA - Barbosa, Müssnich, Aragão.

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