1. Delimitação do objeto da discussão: Contribuição patronal no RGPS
O presente artigo analisa a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o terço constitucional das férias gozadas por empregados, no âmbito do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), decidida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário 1.072.485/PR.
O STF divide a análise sobre a incidência da contribuição previdenciária entre (1) Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e (2) Regime Próprio de Previdência Social (RPPS).
Dentro da análise do RGPS, a Corte ainda reparte a análise do tema em (1.1.) contribuições patronais e (1.2) contribuições devidas pelo empregado.
Na ótica da Corte, apenas as contribuições patronais no âmbito do RGPS (1.1) possuiriam base de cálculo definida na Constituição Federal, mais precisamente no art. 195, I, da CFRB. A base de cálculo da contribuição previdenciária devida pelo empregado no RGPS, por outro lado, teria caráter infraconstitucional, sendo regulamentada exclusivamente no art. 28 da lei 8.212/91, conforme decidido no julgamento do tema 908 da repercussão geral.
Já em relação ao RPPS, o STF reconheceu o caráter constitucional da discussão no julgamento do RE 593.068 (tema 163 na repercussão geral), em 11 de outubro de 2018, com fundamento do disposto nos §§ 3º e 12 do art. 40, c/c o § 11 do art. 201, todos da CFRB. Na ocasião, foram reconhecidos dois vetores sistêmicos do regime: (a) o caráter contributivo; e (b) o princípio da solidariedade.
Assim, Corte Suprema fixou a tese de que “Não incide contribuição previdenciária sobre verba não incorporável aos proventos de aposentadoria do servidor público, tais como ‘terço de férias’, ‘serviços extraordinários’, ‘adicional noturno’ e ‘adicional de insalubridade.”
2. Histórico dos julgados do STF que trataram sobre incidência de contribuição previdenciária patronal no RGPS
O estudo se inicia com a análise do verbete 688 da Súmula do Supremo, editada em sessão realizada em 24 de setembro de 2003, que traz a tese de que “É legítima a incidência da contribuição previdenciária sobre o 13º salário.”. O fundamento da decisão foi o caráter remuneratório da verba.
Em 2010 a matéria voltou a ser analisada pelo STF no RE 478.410, relator ministro Eros Grau. A discussão cingia-se à incidência da contribuição previdenciária sobre os valores pagos em dinheiro, a título de vale-transporte, aos empregados. Na ocasião, a maioria da Corte decidiu que essa parcela possuía caráter indenizatório, de modo que restou afastada a tributação.
Mais recentemente, em março de 2017, no julgamento do RE 565.160 (tema 20 na repercussão geral), relator ministro Marco Aurélio, o Pleno analisou o alcance da expressão “folha de salários”, com base na interpretação conjunta do art. 195, I da CFRB com o art. 201, § 11 da CFRB (art. 201, § 4º, da CFRB, na redação anterior à EC 20/98).
A Corte Suprema caminhou, assim, para firmar dois pressupostos para a incidência da contribuição previdenciária patronal sobre valores pagos aos empregados, quais sejam, (1) a natureza remuneratória e (2) a habitualidade da verba.
A natureza remuneratória da verba (1º pressuposto) nos remete aos rendimentos pagos pelo empregador ou por terceiros em decorrência do contrato de trabalho.
A Corte assentou que são excetuadas as verbas nitidamente indenizatórias, porquanto destinadas a recompor o patrimônio jurídico do empregado, em razão de alguma perda ou violação de direito.
No tocante à habitualidade (2º pressuposto), o preceito sinaliza para a periodicidade no pagamento dos valores, contrapondo-se a recebimentos eventuais, desprovidos de previsibilidade.
Entendeu-se no referido julgado que a diferenciação feita pelo Direito do Trabalho entre “salário” e “remuneração” era indiferente para definir a base de cálculo “folha de salários”, em razão da autonomia do Direito Tributário e do Direito Previdenciário.
O Pleno do STF, contudo, refutou a abordagem individual de cada rubrica que compõe o pagamento do empregado para fins de incidência de contribuição previdenciária patronal, em face de seu caráter infraconstitucional. Esta recusa se repetiu em diversos julgados, em que foi acolhida a infraconstitucionalidade da controvérsia.
Contudo, meses depois do julgamento do tema 20 da repercussão geral, em outubro de 2017, a 2ª turma do STF julgou um Ag. REg. no ARE 1.048.172, em que analisou a incidência da contribuição previdenciária patronal sob rubricas específicas, reconhecendo o caráter constitucional da matéria.
Para a Corte, a natureza remuneratória do pagamento do adicional do terço de férias estaria no art. 7º, XVII, da CFRB, não tendo o Constituinte remetido o tema para a legislação infraconstitucional. Do mesmo modo, a Constituição Federal consignou o caráter remuneratório das verbas referentes a hora extra no art. 7º, XVI, da CFRB e dos adicionais de insalubridade, periculosidade e trabalho noturno no art. 7º, XXIII, da CFRB.
Ante a natureza remuneratória e a habitualidade das rubricas, entendeu-se ser válida a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre os valores pagos a título de um terço constitucional de férias gozadas, hora extra, adicionais de insalubridade, periculosidade e trabalho noturno.
Posteriormente, em março de 2018, em julgamento de embargos de divergência, o ministro Dias Toffoli, tornou sem efeito o julgamento de mérito acima, ante o reconhecimento da repercussão geral da questão relativa à incidência de contribuição previdenciária patronal sobre o terço constitucional de férias usufruídas, nos autos do RE 1.072.485/PR (tema 985), determinando a devolução dos autos ao Tribunal de origem para aguardar o julgamento da repercussão geral.
Dias antes do julgamento do RE 1.072.485, em 5 de agosto de 2020, o STF julgou o RE 576.967 (tema 72 da repercussão geral), decidindo que “[É] inconstitucional a incidência de contribuição previdenciária a cargo do empregador sobre o salário maternidade”.
De acordo com o relator, o acórdão recorrido possui fundamentação constitucional autônoma no art. 195, I, “a”, da CFRB, o que provocaria o conhecimento do recurso extraordinário. Ademais, o tema é objeto da ADIn 5.626, o que já levaria a Corte a decidir sobre a matéria.
No mérito, a maioria do Supremo entendeu que, por não se tratar de contraprestação pelo trabalho ou de retribuição em razão de trabalho, o salário maternidade não se amolda ao conceito de folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, correspondente à base de cálculo da contribuição previdenciária patronal.
Como consequência, não poderia o salário maternidade compor a base de cálculo da contribuição previdenciária a cargo do empregador, não encontrando fundamento no art. 195, I, a, da Constituição. Qualquer incidência não prevista no referido dispositivo constitucional configuraria fonte de custeio alternativa, devendo estar prevista em lei complementar (art. 195, § 4º).
Ademais, no referido julgado foi considerado que o art. 28, § 2º, e a parte final da alínea a, do § 9º, da lei 8.212/91, ao imporem tributação que incide somente quando a trabalhadora é mulher e mãe, criam obstáculo geral à contratação de mulheres, por questões exclusivamente biológicas, uma vez que torna a maternidade um ônus. De acordo com a Corte, tal discriminação não encontra amparo em Tratados Internacionais e na Constituição, que, ao contrário, estabelecem isonomia entre homens e mulheres, bem como a proteção à maternidade, à família e à inclusão da mulher no mercado de trabalho.
3. Tratamento no STJ e no CARF em relação à incidência de contribuição previdenciária sobre o terço constitucional de férias
A 1ª seção do STJ assentou, em sede de repetitivo (tese 479), no REsp 1.230.957, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, j. 26/2/14, que o terço constitucional de férias não ostenta habitualidade e possui natureza indenizatória, razão pela qual sobre ele não é possível a incidência de contribuição previdenciária patronal.
O relator, ministro Mauro Campbell, aplicou ao RGPS o entendimento do STF em acórdãos sobre o RPPS anteriores ao RE 593.068, mas que já acolhiam o entendimento de que somente as parcelas incorporáveis ao salário do servidor poderiam sofrer a incidência da contribuição previdenciária.
Assim, a Corte Superior, por maioria, fixou a seguinte tese: “[N]o que se refere ao adicional de férias relativo às férias indenizadas, a não incidência de contribuição previdenciária decorre de expressa previsão legal (art. 28, § 9º, "d", da lei 8.212/91 - redação dada pela lei 9.528/97). Em relação ao adicional de férias concernente às férias gozadas, tal importância possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)”.
No âmbito do CARF há vasto contencioso administrativo tributário. Nos acórdãos 2202-005.246, 2202-005.193 e 2202-006.843 não foi aplicada a tese fixada no REsp 1.230.957 porque o referido recurso encontrava-se sobrestado, aguardando o julgamento do RE 1.072.485, ora analisado.
De acordo com o art. 62 do Regimento Interno do CARF, as turmas julgadoras devem observar apenas decisões transitadas em julgado do STF ou do STJ em sede de julgamento de repercussão geral ou recursos repetitivos.
Deste modo, o CARF entendeu que o terço de férias deve ser tributado pela previsão legal ainda vigente, art. 28 caput, I, e § 9º da lei 8.212/91 (Lei de custeio da Seguridade Social) e art. 214, §4º, do decreto 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social), uma vez que ainda não havia decisão definitiva no Resp 1.230.957/RS, com trâmite sobrestado perante o STJ.
4. Análise do mérito do RE 1.072.485 (tema 985)
O mérito do recurso foi julgado em 31 de agosto de 2020, sendo decidido que “É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”, com fundamento no art. 195, I, c/c art. 7º, XVII, ambos da Constituição Federal.
O art. 195, I prevê que incidirá contribuição social do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício.
Por sua vez, o art. 7º, XVII determina ser direito do trabalhador o gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal.
Como vimos, no julgamento do RE 565.160, tema de repercussão geral nº 20, decidiu-se pela incidência da contribuição previdenciária sobre as verbas pagas com caráter remuneratório e com habitualidade.
O ministro Alexandre de Moraes embasou o caráter remuneratório das férias gozadas e de seu adicional no art. 148 da CLT, que traz previsão expressa a respeito.
Já em relação à habitualidade, o ministro Marco Aurélio considerou como habitual o pagamento (i) periódico - mensal, trimestral, semestral ou anual; (ii) que decorre de uma previsibilidade inerente ao contrato laboral.
Assim, entendeu-se ser o terço constitucional de férias verba periódica e, portanto, habitual, paga em complemento à remuneração. Neste sentido, o direito seria adquirido conforme o decurso do ciclo de trabalho, sendo um adiantamento em reforço ao que pago, ordinariamente, ao empregado, quando do descanso.
A Corte entendeu ser irrelevante a ausência de prestação de serviço no período de férias, já que se configura um afastamento temporário, ou seja, o vínculo permanece e o pagamento é indissociável do trabalho realizado durante o ano.
Portanto, ante a habitualidade e o caráter remuneratório da totalidade do que percebido no mês de gozo das férias, é devida a contribuição.
O voto vencido foi o do ministro Edson Fachin que, apesar de reconhecer a habitualidade da verba, defendeu a não incidência da exação em razão da sua natureza indenizatória, que a torna impossível de incorporação ao salário do empregado.
Por outro lado, em relação às férias indenizadas, estaria presente a natureza indenizatória, conforme disposição legal expressa na primeira parte da alínea “d” do § 9º do artigo 28 da lei 8.212/91.
5. Conclusão
O julgamento do RE 1.072.485 (tema 985) apresenta dois pontos de destaque.
O primeiro ponto diz respeito à sua própria admissibilidade, já que o STF, contrariando o entendimento firmado no tema 20 da repercussão geral (RE 565.160), adentrou na análise da incidência de contribuição previdenciária patronal sobre rubrica específica.
O segundo destaque é que o Pleno seguiu o entendimento firmado anteriormente pela 2ª turma, na ocasião do julgamento do Ag. REg. no ARE 1.048.172.
Portanto, concluiu-se que ante a natureza remuneratória e a habitualidade da rubrica, é válida a incidência de contribuição previdenciária patronal sobre os valores pagos a título de um terço constitucional de férias gozadas.