A pirataria sempre foi um desafio para os detentores de direitos autorais. Com a rapidez e facilidade do compartilhamento de dados na internet, o problema que já existia no mundo offline só se intensificou no ambiente de crescente conectividade. A produção audiovisual constitui alvo predileto da pirataria, compreendendo desde os conteúdos ofertados na televisão paga, os campeonatos esportivos ao vivo e as séries que viram febre de público até a clássica indústria do cinema. Este panorama geral aplica-se perfeitamente ao Brasil, que ocupa a primeira posição no volume de visitas a sites com conteúdo pirata1 dentre os seus vizinhos da América Latina.
Neste cenário, esforços para coibir a pirataria na internet, como é o caso da minuta da Instrução Normativa da ANCINE - Agência Nacional do Cinema são celebrados pelos produtores de conteúdo e outros titulares de direitos autorais. Colocada em Consulta Pública neste mês de dezembro, a normativa proposta pela ANCINE busca coibir modalidades de pirataria virtual, tal como downloads2, streamings3 e torrents4. Em resumo, a proposta visa instituir uma Superintendência de Fiscalização da ANCINE, com o objetivo de processar “notícias” sobre violações de direitos autorais cometidas na internet, reportadas pelos próprios detentores dos direitos. Ainda que o esforço deva ser celebrado, a normativa traz dúvidas quanto à sua eficácia: além de prever medidas administrativas que não asseguram a repressão à pirataria online, a Instrução Normativa também não é clara ao estabelecer em quais hipóteses medidas judiciais garantidores de direitos seriam instauradas pela própria Procuradoria Federal junto à ANCINE.
Dentre os aspectos relevantes da Instrução Normativa, cabe destacar os seguintes:
1) Legitimidade da ANCINE para regulamentar violações de direitos autorais: apesar de a minuta da Instrução Normativa não propor restrições quanto ao tipo de obra protegida, cabe ponderar que a ANCINE tem competência legal para combater pirataria no âmbito de obras audiovisuais.
Ainda, na forma da Instrução Normativa, as notícias de violações só podem ser feitas contra sites que se dedicam a disponibilizar obras audiovisuais, dispondo acerca de critérios objetivos para aferir se o potencial site infrator enquadra-se, de fato, em prática ilícita.
2) Medidas administrativas: após o recebimento da notícia de infração de direitos autorais, a Instrução Normativa propõe uma série de providências administrativas que deverão ser tomadas pela Superintendência de Fiscalização como “medidas de contenção”. Dentre estas, as principais seriam:
a. Notificação ao próprio site infrator para cessação da conduta pirata: a eficácia, neste caso, dependeria da atitude colaborativa do notificado, já que a notificação por si não tem suficiente força coercitiva;
b. Inclusão do site infrator em listas de consulta acerca de violação de direitos alheios, como a “WIPO ALERT”, da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (uma plataforma online voltada a cientificar o mercado e autoridades sobre sites cujo conteúdo infringe direitos autorais), o que pode coibir o interesse de anunciantes e patrocinadores nestes sites infratores;
c. Notificação às entidades de registro de nomes de domínio, tais como a autoridade brasileira Registro.br: neste ponto, não é possível prever se o Registro.br tomaria alguma medida em consequência desta comunicação, como, por exemplo, determinar a suspensão do domínio. A postura do Registro.br, departamento do NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR) responsável pelas atividades de registro e manutenção de nomes de domínio com a extensão .br, pode ser mais colaborativa nesses casos para evitar sua responsabilização, diante da decisão do Superior Tribunal de Justiça que aplicou a teoria do risco da atividade (parágrafo único do artigo 927 do Código Civil) ao NIC.br, responsabilizando a entidade pela concessão do registro de nome de domínio .br a site com finalidades ilícitas5.
3) Medidas judicias: se as medidas administrativas não forem suficientes para a “contenção dos danos aos direitos autorais violados”, o artigo 11 da minuta de Instrução Normativa admite a possibilidade de instauração de medidas judiciais pela própria Procuradoria Federal junto à ANCINE. Em que pese essa alternativa ser efetivamente capaz de estancar a violação e parecer poupar os detentores de direitos autorais de terem que tomar, por si, as medidas cabíveis, a redação do referido artigo 11 não traz clareza quanto às hipóteses em que a medida judicial deve ou pode ser instaurada. Como resultado, sua eficácia prática ainda é, no mínimo, incerta e duvidosa.
Diante das ponderações acima, a Consulta Pública sobre a minuta da Instrução Normativa da ANCINE mostra-se como boa oportunidade para o amadurecimento da iniciativa e detalhamento do texto no sentido de melhor atender os anseios dos prejudicados pela pirataria de obras autorais na internet. Nossa equipe estará atenta aos desenvolvimentos do tema para prestar mais informações ou orientações.
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1 Estudo MUSO 2017/2019, Privacy Report. Disponível em: clique aqui.
2 Transferência de dados pela internet, com o armazenamento de cópia do conteúdo no dispositivo do receptor – nesta modalidade a transferência é feita de um servidor remoto que hospeda os dados para o servidor local.
3 Tecnologia de transmissão de dados pela internet sem armazenamento de conteúdo no dispositivo do receptor.
4 Arquivo digital com extensão .torrent que faz o armazenamento de cópia do conteúdo no dispositivo do receptor – nesta modalidade a transferência de dados pela internet é feita criando uma rede P2P (peer to peer – em português, ponto a ponto), em que todos os usuários são também servidores, detendo os dados dos arquivos torrent compartilhados.
5 Recurso Especial 1.695.778.