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O recente entendimento da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito da desconsideração do voto realizado com abuso de direito

A 1ª Câmara não reformou o capítulo da decisão recorrida que classifica como abusiva a conduta da única credora da classe II. Desse modo, é possível dizer que a 1ª Câmara manteve o abuso de direito.

21/12/2020

Um acórdão da 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (“1ª Câmara”) ganhou repercussão recentemente por ter mantido decisão de 1ª instância que afastou o voto da única credora da classe II em decorrência de sua abusividade, ratificando, dessa forma, a homologação do plano de recuperação judicial aprovado por todos os outros credores presentes em assembleia.

No caso em referência: (I) o plano de recuperação judicial foi aprovado pelos credores presentes em assembleia, à exceção da única credora da classe II; (I) o juízo da recuperação judicial considerou que “as exigências de pagamento do crédito em parcela única, à vista e atualizada configuram abuso de direito pela credora” da classe II, razão pela qual determinou “o seu afastamento do quórum de deliberação”1, o que, somado à aferição da legalidade do plano recuperatório, resultou em sua homologação; e (III) em julgamento ao agravo de instrumento interposto pela credora da classe II, a 1ª Câmara manteve a decisão homologatória2.

Em análise ao acórdão que resultou do julgamento referido acima, vê-se que: (I) na parte do relatório, houve referência à decisão agravada, tal como proferida pelo juízo da recuperação judicial; (II) na parte da fundamentação: (a) após explicação a respeito do significado da expressão cram down3, reproduziu-se a posição doutrinária de Marcelo Barbosa Sacramone, que considera ser possível o afastamento do requisito do art. 58, § 1º, III, da lei federal 11.101/05 (“LREF”) mesmo nos casos em que não há abuso de direito por parte do “credor único ou que supere 2/3 dos créditos”4 de sua classe; (b) houve referência a dois precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo, ambos calcados na tese de que a prevenção ao abuso do direito da minoria dos credores justifica o afastamento do requisito do art. 58, § 1º, III, da LREF5; (c) fez-se referência ao parecer da Promotora de Justiça designada, o qual destacou o abuso de direito por parte da única credora da classe II; (d) destacou-se o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp 1.337.989/SP, também calcado na tese de que a prevenção ao abuso do direito da minoria dos credores justifica o afastamento do requisito do art. 58, § 1º, III, da LREF6; e (e) evocou-se “princípio informativo da lei 11.101/05, o da participação ativa dos credores”, com ressalva de que “[o] plano aprovado [...] consulta os interesses da esmagadora maioria dos credores”; e (III) na parte dispositiva, negou-se provimento ao agravo de instrumento da única credora da classe II.

Como visto, a 1ª Câmara não reformou o capítulo da decisão recorrida que classifica como abusiva a conduta da única credora da classe II. Desse modo, é possível dizer que a 1ª Câmara manteve o abuso de direito, tal como classificado pelo juízo da recuperação judicial.

De forma semelhante, a 1ª Câmara também não alterou a lógica proposta pelo juízo da recuperação judicial, que, na decisão agravada, primeiro classificou como abusiva a conduta da única credora da classe II, para na sequência invocar aquilo que chamou de “princípio da continuidade da empresa”, “no intuito de manter a empresa em funcionamento preservando os empregos e garantindo-se os créditos”, o que resultou no afastamento do voto daquela credora e consequente homologação do plano aprovado por todos os outros credores presentes em assembleia. Em sendo assim, também é possível dizer que a 1ª Câmara manteve incólume o capítulo da decisão agravada que determinou o afastamento do voto da única credora da classe II, ratificando, dessa maneira, a homologação do plano de recuperação judicial proposto pelas agravadas.

Partindo-se de tais premissas, tem-se que a demonstração da abusividade da conduta da única credora da classe II culminou na desconsideração de seu voto, o que resultou na aprovação do plano de recuperação judicial das agravadas pelo quórum de 100% (cem por cento) dos votos válidos na assembleia geral de credores, conforme atestado pelo juízo da recuperação judicial e confirmado pela 1ª Câmara.

Diante disso, há que se dizer, a título de esclarecimento, que, em situações como esta, o art. 58 da LREF determina que o plano de recuperação judicial seja homologado pelo juiz com base na regra de seu caput, cuja redação estabelece que “[c]umpridas as exigências desta lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano [...] tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma do art. 45 desta lei”.

Em leitura à decisão agravada, não é possível dizer que o juízo da recuperação judicial tenha eventualmente se valido do quórum alternativo do § 1º do art. 58 da LREF para a homologação do plano recuperatório das devedoras-agravadas. É fato que a regra do indigitado § 1º do art. 58 da LREF foi mencionada na parte da fundamentação da decisão agravada. Todavia, a parte dispositiva homologou o plano recuperatório das devedoras-agravadas como consequência de sua legalidade e do “afastamento” da “única credora da classe II” do “quórum de deliberação” em razão do abuso “do seu direito de voto”, sem qualquer ressalva a respeito da regra do § 1º do art. 58 da LREF, o que seria necessário, se fosse o caso, por se tratar de exceção à regra de seu caput. Nessa linha, há que se considerar que é obiter dictum a referência da decisão agravada à regra do § 1º do art. 58 da LREF, tendo o plano de recuperação judicial das devedoras-agravadas sido homologado com fundamento no caput daquele dispositivo.

Somando-se a isso o fato de que a decisão agravada foi integralmente mantida quando do julgamento do agravo de instrumento da única credora da classe II, chega-se à conclusão de que também são obiter dictum todas as referências à regra do § 1º do art. 58 da LREF feitas pela 1ª Câmara no acórdão. Tal conclusão não distorce o resultado ofertado pela 1ª Câmara no acórdão, seja porque sua fundamentação manteve a decisão agravada inclusive com ressalva à “adequada interpretação sistemática da Lei de Recuperação de Empresas e Falência, à luz de sua principiologia”, seja porque sua parte dispositiva também não faz qualquer menção à regra do § 1º do art. 58 da LREF.

Por tais razões, não é possível dizer que, ao julgar o agravo de instrumento interposto pela única credora da classe II, tenha a 1ª Câmara eventualmente encampado o entendimento de que o requisito do inciso III do § 1º do art. 58 da LREF deve ser supostamente afastado independentemente da prova do abuso do direito de voto, quando uma das classes for composta por credor único ou que supere 2/3 dos créditos.

__________

1 O que é possível, à luz do Enunciado nº 45 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, in verbis: “O magistrado pode desconsiderar o voto de credores ou a manifestação de vontade do devedor, em razão de abuso de direito”. A esse respeito, Adriana Valéria Pugliesi explica que “[o] voto do credor que é contrário ao plano de recuperação somente pode ser considerado abusivo se, como acima referido, houver infração ao ideal de igualdade de tratamento entre os credores dentro da mesma classe ou subclasse em que se insere” (Assembleia geral de credores e o abuso do voto na recuperação judicial. Revista de Direito Recuperacional e Empresa | vol. 5/2017 | Jul - Set / 2017. p. 10).

2 TJ/SP, AI 2097839-30.2019.8.26.0000, des. rel. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, d.j. 3/9/20.

3 Expressão utilizada pelos operadores do Direito no Brasil para fazer referência à hipótese de concessão da recuperação judicial a partir do quórum alternativo previsto no §1º do art. 58 da LREF.

4 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 1 ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 261-262.

5 TJ/SP, AI 638.631-4/1-00, des. rel. Romeu Ricupero, Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais, d.j. 18/8/09; e TJ/SP, AI 0235995-76.2012.8.26.0000, des. rel. Ênio Zuliani, 1ª Câmara de Direito Empresarial, d.j. 26/3/13.

6 STJ, REsp 1.337.989/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, 4ª turma, d.j. 8/5/18.

Renan Tadeu de Souza Soares
Mestre em Direito dos Negócios pela FGV-SP. Pós-graduado em Contratos Empresariais pela FGV-SP e em Direito Civil pelo Mackenzie. Graduado em Direito pela FMU. Advogado no escritório SABZ Advogados.

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