O desenvolvimento econômico e a globalização são responsáveis por facilitar a produção e a circulação de bens e serviços em escala global, de tal forma que as antigas barreiras e empecilhos existentes para realização das atividades empresariais foram superadas com o avanço tecnológico dos meios de produção e de comunicação. Contudo, tal desenvolvimento foi acompanhado de uma crescente utilização dos meios empresariais como forma de perpetrar ilícitos no âmbito das atividades econômicas, o que fez com que os estados se atentassem para essa nova modalidade de delinquência, criando, assim, legislações específicas para regular esse setor, especialmente no tocante a responsabilidade criminal dos agentes que atuam no ambiente empresarial.
O conjunto de normas penais responsáveis pela tutela das atividades econômicas e empresariais ficou conhecido como Direito Penal Econômico. Na lição de Callegari, “o Direito Penal Econômico, em sentido estrito, é o conjunto de normas jurídico-penais que protegem a ordem socioeconômica (regulação jurídica do intervencionismo estatal na Economia). Sua característica é ser um grau de intervenção estatal na economia, precisamente o mais intenso do intervencionismo mediante o exercício do jus puniendi.”1
A intervenção punitiva estatal no âmbito das atividades econômicas e empresariais é fruto da necessidade de evitar que indivíduos se utilizem de uma empresa para cometer infrações penais, dificultando, assim, a sua identificação e, consequentemente, a sua responsabilização. É com base neste cenário e na dificuldade que o estado tem de fiscalizar todas as empresas, que o legislador e a administração pública elaboram diversas normas e regulamentos visando atribuir responsabilidade aos dirigentes e demais colaboradores da empresa pela fiscalização das próprias atividades desenvolvidas, sob pena de responsabilização civil, administrativa e penal. Neste contexto de autorregulação regulada[2], a omissão penal ganha relevância no exercício das atividades empresariais.
“Retoma-se, com isso, a importância não só da ação, mas, principalmente, acerca da omissão em Direito Penal, uma vez que, cada vez mais, são impostos à realidade empresarial deveres de vigilância os quais conferem novéis contornos de garante aos empresários.”3 A omissão penal se divide em duas espécies, quais sejam, a omissão própria e a omissão imprópria.
“Os crimes omissivos próprios ou puros, enfatizando, consistem numa desobediência a uma norma mandamental, norma esta que determina a prática de uma conduta, que não é realizada. Há, portanto, a omissão de um dever de agir imposto normativamente, quando possível cumpri-lo, sem risco pessoal. Nesses crimes omissivos basta a abstenção, é suficiente a desobediência ao dever de agir para que o delito se consume.”4 Verifica-se, portanto, que a abstenção da conduta devida é suficiente para a consumação do crime, pouco importando a ocorrência do resultado, é o caso do crime de omissão de socorro previsto no artigo 135 do Código Penal brasileiro, no qual a simples ausência de ajuda já é suficiente para configurar o crime. Todavia, para fins deste artigo, o foco será em relação a omissão imprópria.
A omissão imprópria está prevista no artigo 13, § 2º, do Código Penal, que determina que: “A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.”5 Nos crimes omissivos impróprios, também conhecidos como comissivos por omissão, há o dever do agente de agir para impedir um resultado, de tal forma que a ocorrência do resultado é necessária para a consumação do crime de omissão imprópria.
Na omissão imprópria, o sujeito possui uma relação especial com determinado bem jurídico. Esta relação de proteção com o bem tutelado pode ser fruto de lei, de um contrato ou até mesmo em razão de uma conduta praticada pelo próprio sujeito que criou um risco de ocorrência do resultado. Configurada alguma das hipóteses previstas no § 2º do artigo 13, o sujeito assume a posição de garantidor em relação ao bem jurídico tutelado, devendo agir para impedir a ocorrência do resultado lesivo ao bem jurídico que ele mantem uma relação especial de proteção.
É a partir da omissão imprópria que surge a possibilidade de responsabilizar penalmente os dirigentes de empresas por eventuais práticas criminosas que venham a ocorrer no âmbito de sua atividade empresarial. Todavia, a complexidade que existe no ambiente das grandes empresas, fruto da divisão de tarefas, setores e da hierarquia entre os integrantes de determinada companhia, faz com que surjam diversos garantidores dentro de uma mesma empresa. Neste sentido, Estellita (2017, p. 61) leciona que “na estrutura descentralizada e hierárquica das empresas, a delegação de funções multiplicará essas posições de garantidores: aquele que tem controle imediato sobre a coisa será o garantidor primário; os superiores hierárquicos, dotados de autoridade para emissão de ordens relativas ao uso e emprego da coisa, serão os garantidores secundários.”6 O reconhecimento de que a organização de uma atividade empresarial pode ser extremamente complexa revela a necessidade de definir, objetivamente, parâmetros para responsabilizar criminalmente um dirigente de empresa por infração penal praticada por seu subordinado, sob pena de extrapolar os limites da responsabilidade penal.
No tocante aos pressupostos para configurar a omissão imprópria, Estellita (2020, p. 78) informa que “segundo o entendimento dominante, os pressupostos do tipo objetivo para a imputação do resultado ao omitente garantidor são (a) a situação típica; (b) a omissão de uma conduta determinada e exigida de evitação do resultado apesar da capacidade físico-real de realizar o comportamento; (c) a causalidade; (d) a imputação objetiva, e, finalmente, (e) a posição de garantidor.”7
O primeiro pressuposto diz respeito a necessidade de haver uma situação típica, isto é, há a ocorrência de um crime no âmbito da atividade empresarial de determinada empresa, que foi praticado por um dos seus integrantes e que se relaciona com as atividades da própria corporação. Se o fato não constitui crime e, portanto, é atípico, não há que se falar em responsabilidade penal, tampouco em omissão imprópria.
No tocante ao segundo pressuposto, diante de uma situação típica, o garantidor deverá se abster de praticar a conduta devida para evitar a ocorrência do resultado lesivo. Contudo, não basta a abstenção da conduta e o resultado lesivo para configurar a omissão imprópria, é necessário, ainda, que exista a possibilidade física e real de o garantidor praticar a conduta que lhe é exigida para proteger o bem jurídico. Caso seja demonstrado que, em determinada situação típica, não era possível ao garantidor realizar a conduta exigida para evitar o resultado, logo, não haverá possibilidade de atribuir o resultado lesivo por meio da omissão imprópria.
O terceiro pressuposto examina o nexo de causalidade entre a conduta omissiva do agente e o resultado, de modo que, se esta for constada, será possível a configuração do quarto pressuposto, qual seja, a imputação objetiva do resultado ao omitente. É necessário constatar, portanto, que a omissão do garantidor deu causa ao resultado, sob pena inviabilizar a imputação do resultado ao sujeito que praticou a omissão.
Por fim, é imprescindível que o sujeito o qual se pretende imputar o resultado lesivo, por meio da omissão imprópria, tenha a posição de garantidor do bem jurídico, ou seja, é necessário que o dirigente tenha um dever especial de agir para evitar o resultado, bem como é fundamental que o sujeito tenha conhecimento de sua posição como garantidor de um determinado bem, caso contrário, poderá incorrer na figura do erro de tipo previsto no artigo 20 do Código Penal brasileiro, excluindo, assim, a tipicidade do fato e, consequentemente, impedindo a responsabilização penal por omissão imprópria do sujeito.
Para melhor compreensão, tem-se o seguinte exemplo: se um determinado dirigente de um setor de uma empresa, responsável por todas as decisões de sua área, toma conhecimento de que um de seus subordinados está praticando um crime no âmbito de sua atividade empresária, e, podendo agir para impedir a consumação do crime, o dirigente se abstém de praticar a conduta que lhe era devida decorrente do cargo que ele ocupa, bem como da legislação penal ou extrapenal, resta configurada a omissão imprópria do dirigente, sendo possível lhe imputar o resultado da conduta criminosa praticada por seu subordinado.
Verifica-se, portanto, que, uma vez preenchidos os requisitos mencionados anteriormente, é possível a responsabilização penal de um dirigente por infrações penais praticadas pelos seus subordinados, de tal forma que o dirigente responderá pelo mesmo crime praticado pelo agente na modalidade omissiva imprópria. Todavia, não se desconhece que o tema é controvertido, pois as relações econômicas e empresariais estão cada vez mais complexas e demandam uma melhor compreensão em cada caso concreto, se atentando para as peculiaridades de cada empresa e de seus integrantes.
É impossível esgotar o tema no presente artigo, entretanto, é possível ter uma ideia dos pressupostos que ensejam a responsabilidade penal por omissão imprópria dos dirigentes de empresa, a fim de traçar os limites da intervenção punitiva estatal no contexto empresarial.
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1 CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.21-22.
2 Na lição de Fernando Galvão (2020, p. 166): “A autoregulação regulada é a forma de autoimposição voluntária de padrões de conduta individual e de procedimentos nas pessoas jurídicas segundo a qual o Estado estabelece o margo geral da autoregulação, indicando para as empresas os princípios básicos que devem ser seguidos.” (GALVÃO, Fernando. Teoria do crime da pessoa jurídica: proposta de alteração do PLS nº 236/12. 1. ed. Belo Horizonte, São Paulo, D’Plácio, 2020.
3 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime – Coleção Ciência Criminal Contemporânea – vol. 5. Coordenação: Cláudio Brandão. Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
4 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 23. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 320.
5 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, DF: Presidência da República, [2020]. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 05 dez. 2020.
6 ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.
7ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresas por omissão: estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2017.