As questões envolvidas neste relevante tema encontram amparo no texto da Constituição Federal, particularmente no art. 5º, onde estão previstos no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais.
Em primeiro plano, indica-se o disposto pelo art. 5º, X, da CF: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação” (grifamos). Sob outro aspecto o texto constitucional assegura a livre manifestação do pensamento (art. 5º, IV), mas não deixa de prever que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais” (art. 5º, XLI). Portanto, é praticamente unânime a segura interpretação de que todos os direitos têm seus limites em outros direitos, não podendo haver o excesso ou abuso, pois tal comportamento é ilícito. Eis por que a liberdade de manifestar o pensamento é um direito individual, tanto quanto o é a honra de uma pessoa. Diante disso, há um espaço dentro do qual as pessoas podem expressar o que pensam em relação a determinado assunto ou no tocante a um indivíduo. Ultrapassado o limite do razoável, ingressa a tutela penal da honra, cujos tipos penais dos artigos 138 a 140 do Código Penal preveem punição para a calúnia, a difamação e a injúria. Busca-se preservar a honra, nos seus espectros objetivo (a imagem da pessoa perante a sociedade; a sua reputação; o seu conceito público) e subjetivo (autoestima; amor-próprio; o conceito que cada um faz de si mesmo). Neste último aspecto – honra subjetiva – ingressa o crime de injúria do art. 140 do CP (“Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”). Ninguém tem o direito de ofender outra pessoa, ferindo a sua autoestima, pois seria um nítido abuso da liberdade de manifestação do pensamento.
Sob outro prisma, o constituinte originário pretendeu ser rigoroso com a prática do racismo, indicando que esse comportamento deve ser crime inafiançável, imprescritível e sujeito à pena de reclusão. É muito importante indicar a clareza do texto constitucional: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (art. 5º, XLII, grifamos). Praticar o racismo deve ser crime, nos termos da lei (respeita-se o princípio da legalidade: não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem lei anterior que a comine), embora a Constituição não promova qualquer conceituação do que vem a ser racismo – onde, aliás, não é cenário para tanto.
De quais bens jurídicos se está cuidando nos delitos relacionados à honra e ao racismo? No tocante à honra, esta mesma tem um significado próprio e representa a imagem da pessoa perante a sociedade e para si mesmo. Enfim, o bem jurídico é a honra ou a imagem do indivíduo, no âmbito do art. 140, caput, do Código Penal. Quanto aos crimes representativos da prática do racismo, está-se enfocando a igualdade de todos perante a lei, sem qualquer espécie de distinção, como deixa bem claro o art. 5º, caput, da Constituição Federal. Noutros termos, todos somos iguais e não cabe nenhuma modalidade de segregação ou discriminação. Cabe à lei tipificar delitos representativos da prática do racismo, indicando justamente que o cometimento de certa conduta leva em consideração elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou deficiente (nos termos precisos do art. 140, § 3º, CP), podendo-se acrescentar, ainda, orientação sexual e gênero. Portanto, em primeira conclusão, pode-se deduzir que a injúria racial é uma prática racista. Assim sendo, respeita-se o texto constitucional: é inafiançável, imprescritível e deve ser punida com reclusão.
Pode-se argumentar, por certo, ser a injúria racial apenas uma modalidade de injúria qualificada, inserida no Capítulo V da Parte Especial do Código Penal, intitulado “Dos crimes contra a honra”. Então, em interpretação literal, seria um crime contra a honra e não um crime de racismo. Entretanto, alguns pontos merecem ser destacados: a) em primeiro lugar, essa conclusão é muito estreita para a gravidade representada pela injúria racial; b) além disso, a prática do racismo pode dar-se de diversos modos, abrangendo atos concretos de segregação, como recusar hospedagem num hotel (art. 7º, Lei 7.716/1989) ou o acesso a um restaurante (art. 8º, Lei 7.716/1989) como, também, pode dar-se em formato de agressão física ou moral; c) o que caracteriza uma prática racista não é onde o tipo penal é inserido, mas como ele se desenvolve e o que objetiva o agente; d) inexiste qualquer regra a afastar a validade e mesmo a legitimidade de um tipo incriminador porque foi incluído nesta ou naquela lei federal: o relevante é observar o princípio da legalidade. Noutros termos, a Lei 7.716/1989 foi editada para trazer alguns delitos resultantes de discriminação ou preconceito, mas não é e nem poderia ser exaustiva. Portanto, o fato de emergir um tipo penal de injúria racial no Código Penal não afasta possa ser ele considerado uma prática do racismo, nos termos da Constituição Federal.
Outro ponto que nos parece relevante destacar é o surgimento da injúria racial, no cenário das leis penais brasileiras. Há de se considerar que os fatos da vida nutrem de informações o Poder Legislativo e é justamente assim que nasce o conceito material de crime: uma conduta grave e ilícita, merecedora de pena. Mas, para que seja realmente um delito, torna-se indispensável a sua previsão em lei federal. Editada a Lei 7.716/1989, ela já sofreu várias emendas e modificações, buscando adaptar-se, cada vez mais, ao que a realidade exige. Muitas pessoas racistas valiam-se, especificamente, da injúria – modo mais fácil e direto de atingir alguém – para cultivar a discriminação por motivos de raça, cor, etnia, religião etc. Vislumbrou o Parlamento ser necessária a punição dessa prática do racismo e editou a Lei 9.459/1997, cuja finalidade era tratar dos crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor (vide a sua introdução). Para tanto, inseriu alterações nos artigos 1º e 20 da Lei 7.716/1989 e criou a figura da injúria racial, no art. 140, § 3º, do Código Penal. O objetivo era e sempre foi um só: o enfrentamento ao racismo.
Temos sustentado que a injúria racial é um crime grave, porque é capaz de atingir, ao mesmo tempo – e por isso a sua eficácia segregatícia – a autoestima da vítima, enquanto a humilha, rebaixa e, com isso, discrimina. As ofensas lançadas contra alguém podem produzir mais danos do que a simples recusa de atendimento num local público, pois tudo depende do caso concreto. Injúrias raciais proferidas diante de várias pessoas arrasam a vítima, deixando-a desarmada e sem ação.
Cumpre ressaltar que, há muito, o Supremo Tribunal Federal apontou para a mais adequada interpretação do que vem a ser racismo, analisando o termo raça, por ocasião do julgamento em Plenário do HC-QO 82.424-RS, cujo relator para o acórdão foi o Ministro Maurício Corrêa, em 17 de setembro de 2003. Nesse julgado, reconheceu-se que a atitude antissemita, com ataques à comunidade judaica, feita pelo agente constituía prática racista, logo, um delito imprescritível. Hoje, o art. 1º da Lei 7.716/1989 contém o termo religião, mas a sua redação primeira era esta: “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”. Por conta disso, o primeiro relator do caso, Ministro Moreira Alves, sustentou que a agressão feita contra a comunidade judaica não constituía racismo, visto que o judaísmo seria religião e não raça. Entretanto, os debates apontaram, com clareza, ser ultrapassado o termo raça, pretendendo dividir os seres humanos por meio de características físicas, como pigmentação da pele, formato e cor dos olhos, altura, pelos etc. O mapeamento do genoma humano demonstrou, com eficiência científica, não haver qualquer distinção entre seres humanos. Todos são iguais. Aliás, se bem analisarmos, o constituinte originário de 1988 bem captou essa temática, ao inserir que a prática do racismo será crime. Noutras palavras, o racismo é um comportamento, embora nefasto, muito simples de ser observado e constatado: um sentimento de superioridade de um ser humano em relação a outro, gerando ódio e antipatia, bem como atitudes segregatícias, que se espelham por condutas e palavras. Não é à toa que o racismo vem sendo denominado em outras legislações como um crime de ódio. A inexplicável profunda aversão e repugnância que alguns sentem por certos grupos, geralmente minorias, é juridicamente vedada, quando colocada de maneira expressa, por meio de atitudes de conhecimento público, além de ser incompreensível, sob o ângulo humanista.
Há que se comentar, depois de detida reflexão de nossa parte, o art. 20 da Lei 7.716/1989 (“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”), cuja pena é idêntica à injúria racial. Em nossa obra Leis penais e processuais penais comentadas, tecemos crítica à abertura demasiada desse tipo incriminador, que dá ensejo a inúmeras interpretações, fugindo à ideal taxatividade do Direito Penal. Por outro lado, buscamos diferenciar esse crime do art. 20 da injúria racial do art. 140 do Código Penal e não o fizemos a contento. Em verdade, o tipo do art. 20 engloba o tipo do art. 140, visto que injuriar alguém usando elementos racistas é, também, praticar a discriminação ou o preconceito. São intimamente conectados. Note-se um caso concreto, que chegamos a expor naquela obra. Um comissário de bordo americano disse a um brasileiro: “amanhã, vou acordar orgulhoso, rico e sendo um poderoso americano e você vai acordar como safado, depravado, repulsivo, canalha e miserável brasileiro”. Foi denunciado pelo Ministério Público com base no art. 20 da Lei 7.716/1989, tendo em vista a enorme repercussão do caso (lembre-se que, quando o fato se deu – 1/6/1998 – a injúria racial era de ação privada). Não foi à toa que o agente pretendia a desclassificação para injúria racial, levando à decadência e extinção da sua punibilidade. Porém, o Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação, afirmando o caráter discriminatório das suas palavras, enaltecendo o povo americano e inferiorizando o brasileiro. A Corte mencionou que o delito do art. 20 é diferente do previsto pelo art. 140, § 3º, pois este tipo tutela a honra subjetiva e aquele é um sentimento em relação a toda uma coletividade em razão da sua origem (nacionalidade). Os réus (houve um a proferir a ofensa e outro que incitou) não tinham a intenção de precisamente depreciar o passageiro (vítima), mas ressaltar a sua humilhante condição em virtude de ser brasileiro, vale dizer, exaltou a superioridade do povo americano e atentou contra a coletividade brasileira (RHC 19.166-RJ, 5ª. T., rel. Felix Fischer, 24.10.2006, m. v.). Porém, pode-se argumentar que esse comissário apenas injuriou o brasileiro com xingamentos (safado, depravado, repulsivo, canalha, miserável) e isto seria injúria racial (baseou-se na superioridade americana da sua nacionalidade). Ainda para argumentar, quando um sujeito de pele clara ofende um negro com termos contundentes e depreciativos por causa da cor da sua pele, também está atentando contra toda a comunidade negra, que possui o mesmo tom de pele. Esse ofensor está, igualmente, exaltando a sua superioridade em relação aos negros. Noutros termos, a linha divisória entre a injúria racial do art. 140, § 3º, do CP, e a prática de discriminação do art. 20 da Lei 7.716/1989 é nebulosa. Tanto assim que a pena é a mesma: reclusão de 1 a 3 anos, e multa. O ponto do tema ora desenvolvido não é debater à exaustão se há diferença autêntica entre ambos e qual seria ela, mas, ao contrário, demonstrar a sua intimidade e a igualdade de objetivos: a prática do racismo.
Tão íntimas são essas figuras típicas incriminadoras que chegam a simbolizar uma escolha a ser feita pelo órgão acusatório: se denuncia num ou noutro artigo. De qualquer forma, o que faltou esclarecer na nossa escrita sobre esse tema, anteriormente, é que a injúria racial configura uma ofensa calcada em elementos preconceituosos, atingindo a autoestima da vítima, mas serve igualmente para discriminar, ferindo a igualdade, rebaixando a pessoa ofendida e, com isso, segregando-a. Por outro lado, o art. 20 da Lei 7.716/1989 é tão aberto (praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito) que permite abranger tanto ofensas (como o caso do comissário de bordo supra mencionado) quanto atitudes e comportamentos diversos, como agressão física. Logo, é mais amplo que a figura típica do art. 140, § 3º, do Código Penal. Entretanto, ambas as situações, tão próximas quanto íntimas, representam a malfadada prática do racismo.
A inclusão do art. 140, § 3º (injúria racial), no cenário dos crimes contra a honra, encontra respaldo no bem jurídico tutelado – a imagem e a autoestima da vítima, mas não exclui, de modo algum, o outro bem jurídico igualmente visado – a preservação da igualdade de todos, sem qualquer espécie de discriminação. E discriminar, promovendo a segregação, pode ser feito tanto por atitudes quanto por palavras. Que o digam os discriminados por tantas nefastas injúrias de conteúdo preconceituoso e, por isso mesmo, racista, no sentido mais amplo que esse termo merece ser entendido e aplicado.