Migalhas de Peso

STF e a defesa de um Direito Constitucional da liberdade acadêmica

As ações apontaram para duas questões principais: uma de natureza formal e outra de natureza material.

4/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A educação é o ponto em que decidimos se amamos o mundo o bastante para assumirmos a responsabilidade por ele. [...] é, também, onde decidimos se amamos nossas crianças o bastante para não expulsá-las de nosso mundo e abandoná-las a seus próprios recursos (...). – Hannah Arendt, 1961.

Um dos grandes temas que pode ser captado das produções de Hannah Arendt é a natalidade. A preocupação da autora com aqueles seres recém chegados no mundo faz com que a educação assuma relevância em seu pensamento.

Em seu texto “Crise na Educação”, publicado no livro “Entre o Passado e o Futuro” (1961), Arendt oportuniza uma alentada reflexão sobre o duplo aspecto da educação em proteger as crianças e jovens do mundo e, numa outra via, conservar esse mesmo mundo dos novos habitantes. Aqui a educação revela sua face conservadora, em sua concepção intimamente ligada à tradição. É preciso apresentar para as crianças um mundo que as antecede. Entretanto, um outro aspecto também se mostra, porquanto o mundo está sempre mudando e é necessário também que se considere que os futuros adultos irão interagir com e produzir tais mudanças. Esse é o caráter revolucionário da educação.

Ao órgão de cúpula do Poder Judiciário foi oportunizado enaltecer esse papel transformador da educação. As muitas normas impugnadas no Supremo Tribunal Federal foram fruto do movimento denominado “Escola Sem Partido”, o qual estimulou a produção legiferante em diversos entes da federação. Citam-se, por exemplo: ADPF 460 (Cascavel – PR), ADPF 461 (Paranaguá – PR), ADPF 462 (Blumenau – SC), ADPF 465 (Palmas – TO), ADPF 466 (Tubarão – SC), ADPF 467 (Ipatinga – MG), ADPF 457 (Novo Gama – GO), ADPF 624 (DF – Distrito Federal); ADIn 5.537 (Alagoas).

As ações apontaram para duas questões principais: uma de natureza formal e outra de natureza material. Sobre a primeira, reconheceu-se o vício ao confirmar a competência privativa da União para dispor sobre as diretrizes e bases da educação nacional, bem como para estabelecer as normas gerais na matéria (art. 22, XXIV; art. 24, IX, CRFB/88).

Em relação à discussão material destaca-se a proeminência de normas cujo conteúdo objetivou limitar a abordagem pedagógica relacionada a questões de gênero e orientação sexual.

O sentido constitucional da educação é o de ser emancipadora. É o que entendeu o relator min. Roberto Barroso, na ADPF 461, julgada em agosto de 2020. Funda-se, assim, no “pluralismo de ideias, na liberdade de aprender e de ensinar, cujo propósito é o de habilitar a pessoa para os mais diversos âmbitos da vida, como ser humano, como cidadão e como profissional”.

A diversidade de identidade de gênero e sexual é um fato da vida. Portanto, “[p]rivar um indivíduo de viver a sua identidade de gênero significaria privá-lo de uma dimensão fundamental da sua existência; implicaria recusar-lhe um sentido essencial da autonomia, negar-lhe igual respeito e consideração com base em um critério injustificado.” (ADPF 600, voto rel. min. Barroso). Dessa forma, indica também um desrespeito à igualdade enquanto sua substância coincide com igual consideração e respeito – especialmente por parte do Estado – a todos cidadãos e a todas cidadãs.

Ao contemplar, também, o princípio da proteção integral, reconhece-se que “o não enfrentamento do estigma e do preconceito nas escolas, principal espaço de aquisição de conhecimento e de socialização das crianças, contribui para a perpetuação de tais condutas e para a sistemática violação da autoestima e da dignidade de crianças e jovens.” (ADPF 600, voto rel. min. Barroso).

Evidenciou-se, também, um debate sobre o “mito da neutralidade”. Conquanto a pretensão das normas impugnadas fosse a de proporcionar oportunidades iguais para todos os posicionamentos, ao revés, favoreciam a censura de pontos de vista, em razão da generalidade do conteúdo dos dispositivos.

Robert Post questiona como justificar um direito constitucional da liberdade acadêmica, em seu texto “Academic Freedom and the Constitution”, publicado no livro “Who's Afraid of Academic Freedom?”.

O autor apresenta um importante argumento sobre a diferença entre a liberdade acadêmica e a liberdade de expressão. Se esta última tem sido baseada no livre mercado de ideias, a primeira é radicalmente incompatível com essa premissa. Isto porque possui uma estrutura dupla, devido a sua vinculação institucional, ou, segundo o voto da ADIn 5.537 (relator min. Barroso), como tendo compromisso com standards acadêmicos. Post indica que a primeira emenda à Constituição estadunidense preocupa-se com a legitimidade democrática. Enquanto a proteção constitucional da liberdade acadêmica cuida da “democratic competence”, ou seja, da criação e distribuição do conhecimento.

A escola é a mais importante instituição para o desenvolvimento e formação da pessoa, que traduz a interposição entre o domínio privado e o mundo, conforme a posição de Hannah Arendt. O sentido só pode ser o de emancipar o indivíduo. Enfrentar os preconceitos e violências a partir de informação e conhecimento qualificados é um bom começo.

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*Daniela Urtado é pesquisadora do Setor de Pesquisa do escritório Clèmerson Merlin Clève - Advogados Associados.

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