A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial 1.799.932, entendeu que pode ser examinada eventual alegação de abusividade de cláusulas contratuais em sede de impugnação de crédito incidente à recuperação judicial, sob o fundamento de que não é possível restringir à parte o direito da ampla defesa e que na impugnação de crédito há cognição exauriente.
Embora estejam legalmente previstas na lei as matérias passíveis de discussão em sede de impugnação de crédito (o art. 8º da lei 11.101/05 determina que "(...) qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado"), há, nos tribunais brasileiros, divergência interpretativa da lei.
Deste modo, há o entendimento de que, para que seja discutida a abusividade de qualquer cláusula contratual necessário se faz o ajuizamento de ação própria, com amplo exercício do contraditório. Por outro lado, também há o entendimento de que não é necessário o ajuizamento de nova demanda para se revisar determinadas cláusulas supostamente abusivas, conforme decidido pelo STJ.
Esse recente entendimento da 3ª Turma do STJ foi baseado no fato de que, conforme determinado pelos artigos 13 e 15 da lei 11.101/05, é possível, no incidente de impugnação de crédito, o exercício pleno do contraditório, incluindo a ampla produção de provas, além da possibilidade de realização de audiência de instrução e julgamento.
Com isso, a cognição no incidente de impugnação de crédito seria, em tese, exauriente. Em outras palavras, traria um desfecho definitivo à questão, pois permite a produção de todas as provas necessárias para a solução do litígio.
Nesta linha de raciocínio, a delimitação dada pelo artigo oitavo se refere ao pedido e causa de pedir, mas, não pode haver restrição à parte ao direito de ampla defesa.
Entretanto, sem analisar o caso concreto (julgado pelo STJ por ocasião do Recurso Especial 1.799.932), uma coisa é certa: trata-se de uma decisão que trata sobre um tema interessante e controvertido. Isso porque, a possibilidade de se revisar contratos em sede de impugnação de crédito traz consigo alguns outros problemas de difícil solução.
Em primeiro lugar, ressalta-se que não há, no art. 8º, previsão alguma de que seja possível a revisão de cláusulas eventualmente abusivas. Diz-se isso, pois a impugnação de crédito é o meio utilizado para consolidar o valor do crédito, sua classe, e eventual sujeição (ou não sujeição) do crédito aos efeitos da recuperação judicial, e assim verificar o poder de voto do credor em assembleia geral de credores.
Em tese, portanto, o processo da impugnação deveria se findar, ao menos em primeiro grau, antes da assembleia geral de credores. Abrindo-se margem para discussão de abusividade de cláusulas neste incidente, provavelmente o trâmite seria muito mais moroso.
Com a consolidação da classificação/valor/sujeição do crédito de forma muito mais lenta, alguns problemas poderiam se desdobrar, como por exemplo um credor votar com um poder de voto muito menor (ou maior) do que o que deveria ter, ou ainda mais: não votar, sendo que deveria, ou votar, sendo que seu crédito deveria ser não sujeito.
Por consequência dessa morosidade, credores de créditos que estão listados como sujeitos, mas que não deveriam se submeter aos efeitos da recuperação podem perder o timing de eventual execução, busca e apreensão, ou outra medida constritiva em face da devedora. Isso porque, quando a impugnação for julgada, o patrimônio que poderia ser perseguido poderá já ter sido dilapidado.
Ainda, neste cenário, abre-se margem para surgir ações distintas, mas que tratem, em partes, sobre a mesma questão. Isso ocorreria, por exemplo, quando estivesse sendo discutida a abusividade de cláusulas em ação revisional, e igualmente, o mesmo tema, em impugnação de crédito. Neste caso, não seriam ações idênticas (o que, em tese, afastaria a litispendência), mas que podem ensejar na prolação de decisões conflitantes.
Igualmente, é importante trazer à discussão a questão do prazo processual. Conforme determinado pelo art. 335, do CPC, o prazo para que o réu apresente contestação é de 15 dias úteis. Assim, este seria o prazo para contestar eventual ação revisional. Por outro lado, se tratando de impugnação de crédito, o prazo para contestação é de 5 dias (nos termos do art. 11 da LRF). Ora, essa discrepância de prazos, incontestavelmente, limita o exercício do contraditório e ampla defesa, se comparado à ação revisional. Assim, questiona-se: a cognição seria realmente exauriente?
Outro ponto muito relevante é o seguinte: seria possível discutir a abusividade de quaisquer cláusulas em sede de impugnação de crédito? No recurso especial julgado pela 3º Turma possibilitou-se a discussão de cláusulas relativas aos encargos moratórios que o impugnante buscava acrescer aos seus créditos. Porém, quais outras cláusulas seriam passíveis de discussão?
A problemática da questão posta se encontra no seguinte fato: se for possível adentrar na temática em impugnação de crédito, o trâmite será moroso e a votação em assembleia não refletirá a realidade dos créditos, bem como detentores de créditos não sujeitos poderão ficar por muito tempo impedidos de perseguir seus créditos por meio das ações cabíveis, além de que, havendo prazo muito menor para a contestação, nos termos da LRF, o direito ao contraditório e ampla defesa não será o mesmo que existiria em ação própria. Por fim, corre-se o risco de existirem decisões conflitantes, sobre o mesmo tema.
De todo modo, verifica-se que o entendimento mais recente da 3ª Turma da Corte Superior de Justiça é de que é possível, em certos casos, o exame de abusividade em cláusulas contratuais em sede de impugnação de crédito. Contudo, é importante que sejam levados em conta os problemas que esse exame pode ocasionar.
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*Giovanna Ramos Fachini é advogada no escritório Medina & Guimarães. Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Estadual de Londrina e pós-graduanda em Direito Civil pela Universidade Estadual de Maringá.