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A lei de Liberdade Econômica em face do Direito Tributário e do Direito Financeiro: releitura do texto legal!

Compete ao legislador editar comandos que confirmem a aplicação dos princípios gerais de Direito, na medida em que estes são deduzidos da “estrutura global do ordenamento jurídico”.

2/12/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A Lei de Liberdade Econômica (13.874/19) tem sido considerada ‘norte seguro’ para a atividade empresarial, no país. Pretendeu-se, por meio dela,  viabilizar a economia, mediante providências administrativas menos burocráticas, a fim de reduzir o ‘custo Brasil’. Haveria menos percalços aos empresários, abarrotados de exigências formais e de tributos escorchantes, os quais inviabilizam, ou impedem, o pleno desenvolvimento da atividade econômica.

No entanto, aspectos da Lei de Liberdade Econômica são contraditórios, incoerentes à finalidade  da própria lei; trata-se de incoerência interna, obtusa, da lei. Violação ao princípio da razoabilidade!

Assim, especificamente no Direito Público, o legislador ‘disse mais do que deveria’, pois, de forma expressa, excluiu do Direito Tributário e do Direito Financeiro [algumas] normas da Lei de Liberdade Econômica, as quais seriam, plenamente, aplicáveis nessas searas jurídicas.

Referimos ao artigo 1º, §3º, da lei 13.874/19, cujos termos são os seguintes: ‘§ 3º  O disposto nos arts. 1º, 2º, 3º e 4º desta Lei não se aplica ao direito tributário e ao direito financeiro, ressalvado o inciso X do caput do art. 3º’

É verdade, várias normas da lei cuidam mesmo de questões específicas ao Direito Urbanístico, ao Ambiental e outras áreas do Direito. Basta lermos o texto normativo, para percebermos, facilmente, a preponderância de normas dessas e outras searas do Direito.

Contudo, podemos mencionar, ao menos, um exemplo de incoerência interna contida na lei; o artigo 2º, “caput” estabelece:

‘Art. 2º  São princípios que norteiam o disposto nesta Lei:

I - a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas;

II - a boa-fé do particular perante o poder público;

III - a intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas; e

IV - o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado’

A aplicação desse dispositivo fora, expressamente, excluído, do Direito Tributário e do Direito Financeiro (art.1º,§3º). Pura opção do legislador!

No entanto, esses vetores normativos, insculpidos na referida lei, têm importância VITAL  nas consequências jurídicas práticas das decisões, administrativas e judiciais. Consubstanciam valores, substratos jurídicos que retratam a natureza e a finalidade dos institutos do Direito. Não podem deixar de ser considerados nas análises das  multiformes questões submetidas ao jugo de autoridades públicas. Enfim, precisam ser levados em conta nos julgamentos de processos administrativos e judiciais.

O Direito Tributário, assim como o Direito Financeiro são considerados, por parte da doutrina, como ramos, ou unidades, do Direito Administrativo, que os engloba; são “parcelas do campo da função administrativa” (Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p.37-38, Malheiros, 2018. Grifos nossos).

Nesse sentido, o saudoso jurista Geraldo Ataliba, segundo o qual : “O direito tributário não é um ramo autônomo do Direito, mas parte do direito administrativo.”(“Aula Magna, Direito material tributário. Relação jurídica tributária e hipótese de incidência”,in Elementos de Direito Tributário: Notas Taquigráficas do III Curso de Especialização de Direito Tributário, São Paulo, RT, 1978, p.31. Grifos nossos).

A natureza da relação jurídica entre o particular e a Administração, bem assim o regime do controle dos atos administrativos, evidenciam a dependência do direito tributário [e do direito financeiro] a outro regime, mais amplo, que o engloba e domina: o direito administrativo.”(Heraldo Garcia Vitta, Poder de Polícia, p.52, Malheiros, 2010).

Logo, a referida exclusão deliberada do legislador esbarra na natureza da relação jurídica entre a Administração Fazendária e o particular; relação essa administrativa, de Direito Administrativo, no qual se aplicam, por evidência, os princípios do artigo 2º, da Lei de Liberdade Econômica.

Ainda que se considere o Direito Tributário e o Direito Financeiro como ramos, ou unidades, autônomas, devido à complexidade da matéria e pelo fato de conterem princípios jurídicos específicos, a solução não é diferente!

Pois, o artigo 2º da Lei de Liberdade Econômica expressa princípios previstos na Constituição, isto é, no artigo 170 e parágrafo único, do Texto Constitucional! Noutra palavras: o  artigo 2º é mera expressão, ou desenvolvimento, dos princípios da atividade econômica, demarcados na Constituição da República! Portanto, de aplicação obrigatória também no campo do Direito Tributário e do Direito Financeiro!

Na verdade, o artigo 2º da lei enuncia princípios gerais de direito público, aplicáveis, por isso, basicamente, em todos os ramos dessa área do Direito.

Emílio Betti explica, com muita percuciência, se se concebe o princípio geral não como fruto de abstração de normas individuais, mas princípio “fundamental que se deduz da estrutura global do ordenamento”, ter-se-á, como consequência, mesmo num sistema jurídico em que a fonte do direito seja, de forma prevalente, a lei: “o poder legislativo não pode identificar-se com o ‘autor’ do princípio geral”; o poder legislativo “poderá constituir objeto não de interpretação autêntica, mas apenas de uma lei confirmativa que a ele se refira.” (Interpretação da Lei e dos Atos Jurídicos, p.136, Martins Fontes, 2007, trad. Karina Jannini).

Assim, compete ao legislador editar comandos que confirmem a aplicação dos princípios gerais de Direito, na medida em que estes são deduzidos da “estrutura global do ordenamento jurídico”.  

Por isso, quando a lei exclui a aplicação de certos princípios gerais a setores específicos da ordem jurídica, deve haver justificativa plausível, razoável, legitimadora da medida extrema e limitativa de interpretação e aplicação do Direito. Caso contrário, estar-se-á perante violação ao princípio da razoabilidade dos atos do Poder Público!

Conforme expõe o jurista Carlos Maximiliano: “Desde que a interpretação pelos processos tradicionais conduz a injustiça flagrante, incoerências do legislador, contradição consigo mesmo, impossibilidade ou absurdos, deve-se presumir que foram usadas expressões impróprias, inadequadas, e buscar um sentido equitativo, lógico e acorde com o sentir geral e o bem presente e futuro da comunidade.”(Hermenêutica e Aplicação do Direito, p.166, Forense, 2000. Grifos nossos).

Dessa maneira, a eventual exclusão de artigos da Lei de Liberdade Econômica ao âmbito do Direito Tributário e do Direito Financeiro é verificada à medida dos princípios, valores e regras da Constituição Federal e do contexto da própria Lei 13.874/19, sob pena de mitigarmos, ceifarmos, o campo de interpretação e aplicação dessas matérias importantes da ordem jurídica.!

_______

*Heraldo Garcia Vitta é juiz Federal aposentado. Ex-Promotor de Justiça (SP). Advogado e Consultor Jurídico. Professor de Direito. Especialista em Direito (ITE-Bauru,SP). Mestre e Doutor em Direito Público (PUC-SP).

 

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