Transitou em julgado no último dia 16/11 a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 55811, que dentre outros pedidos, visava que o STF declarasse a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção voluntária da gestação, em relação à mulher gestante de feto diagnosticado síndrome de infecção congênita do ZIKV, fosse considerada conduta tipificada nos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro (CPB).
Não obstante isso, na esteira do tema interrupção voluntária de gestação (IVG), havia, também, o pedido para que o STF conferisse interpretação conforme à Constituição do art. 128, I e II, do Código Penal julgando constitucional a interrupção da gestação de mulher e feto naquelas condições, justificando estado de necessidade, com previsão legal nos arts. 23, I, e 24, também do CPB.
A ação interposta em 24 de agosto de 2016 pela Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP), junto ao Supremo Tribunal Federal, sob a égide de julgamento da Eminente Ministra Cármem Lúcia, transitou em julgado sem resolução do mérito, cuja conclusão do voto da eminente Ministra foi: “[...] Pelo exposto, voto no sentido de julgar prejudicada a ação direta de inconstitucionalidade e não conheço da arguição de descumprimento de preceito fundamental.”
O Ministro Luiz Roberto Barroso, por sua vez, muito embora não tenha aberto divergência por, na oportunidade de proferir seu voto o Plenário Virtual já teria maioria pela existência de óbice processual ao regular prosseguimento da ADI, asseverou:
[...] O aborto é um fato indesejável, e o papel do Estado e da sociedade deve ser o de procurar evitar que ele ocorra, dando o suporte necessário às mulheres. Essa é a premissa sobre a qual se assenta o raciocínio aqui desenvolvido. Reitero, porém, o meu entendimento, já manifestado em decisão anterior (HC 124.306), de que o tratamento do aborto como crime não tem produzido o resultado de elevar a proteção à vida do feto. Justamente ao contrário, países em que foi descriminalizada a interrupção da gestação até a 12ª semana conseguiram melhores resultados, proporcionando uma rede de apoio à gestante e à sua família. Esse tipo de política pública, mais acolhedora e menos repressiva, torna a prática do aborto mais rara e mais segura para a vida da mulher.
Sem adentrar na matéria processual, acerca da prejudicialidade de tramitação da ADIn 5.581 por falta de legitimidade ad causam da parte autora, é necessário perquirir as estruturas do conflito de direitos do nascituro (à vida, especialmente), acometido da síndrome de infecção congênita do ZIKV, com os direitos reprodutivos e psicossociais da gestante.
Junte-se ao debate, além de importantes características psicobiológicas preconizadas pela World Health Organization (WHO) e conceitos jurídicos pertinentes ao exame, os acórdãos do STF quando do julgamento da ADPF 542 e do HC 124.306/DF3.
Pela seara civil o reconhecimento dos direitos da personalidade do nascituro, notadamente o direito à vida, em regra, não pode ser relativizado e, em razão da reconhecida personalidade jurídica do nascituro, esse está, ou estaria, igualmente amparado pelo Código Penal na proteção de sua vida, cerne do debate.
A interrupção voluntária da gestação é essencialmente existencial e intimamente ligada à vida humana - em especial à vida do nascituro, da gestante e da família - a par disso, há de se considerar, nessas hipóteses, legítima a pretensão que busque extinção da punibilidade daquelas gestantes que tenham, de modo assistido e informado, decido pela interrupção de uma gestação em condições como às delineadas na ADIn 5.581.
Uma gestação pode, naturalmente, evoluir para um quadro de inviabilidade de vida extrauterina, o que torna ineficaz a criação de um modelo lógico e unívoco capaz de informar com precisão o abrigo jurisdicional no qual se amolda toda essa complexidade4 de fatores sob o risco, inclusive, de limitar o alcance semiótico permissivo da interrupção voluntária da gestação (IVG).
Do sistema judiciário brasileiro, subordinado ao atual padrão legislativo e à cultura social ainda arraigada ao patriarcalismo, embora tenha avançado no tema da interrupção voluntária da gestação (IVG), os limites normativos e hermenêuticos que orientam o tema parecem extremamente áridos, consoante às hipóteses de efetivação das IVGs lícitas no Brasil.5
Com o julgamento da ADPF 546, tendo o STF declarado a inconstitucionalidade de interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124 a 126 do CPB, abriu-se novas possibilidades de realização da IVG no Brasil.
Não se pode olvidar que a legislação brasileira7 e a jurisprudência8, concretamente, autorizam a IVG como em casos de grave doença do feto que inviabilize a vida extrauterina, sem que haja autorização judicial para tal.
Em verdade, concessa maxima venia, no paradigma, o STF, afora às questões processuais, deixou passar uma grande oportunidade de debater junto à sociedade mais essa excludente de ilicitude (pelo estado de necessidade) ou excludente de punibilidade (ADPF 54).
É preciso uma compreensão holística do contexto.
Entre 2015 e 2017, período de maior incidência do ZIKV no Brasil, as semanas epidemiológicas (SE’s) de 08/11/2015 a 08/04/2017, cujos dados foram divulgados pelo Ministério da Saúde, foram 13.490 notificações de casos suspeitos de alterações no crescimento e desenvolvimento fetal, em tese inicial, relacionadas à infecção autóctone por ZIKV. Desse total 2.653 (19,7%) foram confirmados e 105 (0,8%) foram classificados como prováveis de infecção congênita gestacional por ZIKV9.
Foram 369 notificações de fetos, abortos espontâneos e natimortos, dos quais 291 (78,9%) permanecem em investigação e 29 (7,9%) foram confirmados como causa a infecção congênita durante a gestação e, quanto a distribuição estatística dos óbitos fetais e/ou neonatais, houve 335 óbitos suspeitos, dos quais 271 (80,9%) permanecem em investigação, e 22 (6,6%) confirmados, com 6 registros (1,8%) prováveis para infecção gestacional por ZIKV10.
No mesmo Boletim Epidemiológico, dados informam que a região Nordeste do país concentrou 57,3% dos casos confirmados de aborto por infeção congênita do vírus Zika.
Os dados epidemiológicos devem ser correlacionados com os dados demográficos e econômicos, a partir dos quais, por lógica e obviedade, conclui-se que a região onde está 28% da população brasileira (14,8% de mulheres), que detém apenas 13% das riquezas produzidas no Brasil, está mais sujeita aos casos de microcefalia do que qualquer outra região do país, chegando a registrar 57,3% dos casos notificados no território nacional entre 2015 e 201711.
Qual o grupo social mais sofre com a criminalização da interrupção voluntária de gestação e a falta de políticas públicas adequadas para os casos de microcefalia?
Foi nesse cenário caótico de desigualdade social e econômica que surgiu a ADIn 5.581, visando garantir à mulher sua autodeterminação, sua dignidade e a prevalência de seus direitos reprodutivos.
À guia de arremate, bem assevera o Eminente Ministro Luís Roberto Barroso no voto-vista do HC 124.306/RJ, ao afirmar que quem sofre com a tipificação penal do aborto é a gestante pobre, por não ter condições de custear profissionais qualificados e estrutura adequada submete-se a qualquer horda de procedimentos, no mais das vezes, em clínicas clandestinas, colocando em grave risco a sua própria vida.
O acervo jurisprudencial do STF acerca do debate da antecipação terapêutica do parto, termo que parece mais apropriado à definição delineada, inexoravelmente, evolui para impor efetiva proteção às liberdades e garantias fundamentais, especialmente às classes de mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica e às minorias.
A interrupção voluntária da gestação de feto diagnosticado com síndrome da infecção congênita do ZIKV (microcefalia) não deve ser tratada como mero abortamento, mas sim como recurso terapêutico necessário à proteção do núcleo axiológico constitucional (dignidade da pessoa humana), condição intrínseca à mulher.
Esperava-se mais. O ordenamento ainda terá de aguardar um bom tempo pelo reconhecimento da IVG como resultado de decisão volitiva da gestante, como o estado de necessidade específico (art. 128, I, do Código Penal) ou estado de necessidade geral (arts. 23, I, e 24 do mesmo Código).
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1 EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE COM ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. ZIKA VÍRUS. POLÍTICAS PÚBLICAS. REVOGAÇÃO DO ART. 18 DA LEI N. 13.301/2019 PELA MEDIDA PROVISÓRIA N. 894/2019. PERDA SUPERVENIENTE DE OBJETO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PREJUDICADA. ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. FALTA DE PERTINÊNCIA TEMÁTICA. NÃO CONHECIMENTO DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. STF. T. Pleno. ADI 5581. Relª. Minª. Cármen Lúcia. Julgado em: 04/05/2020. DJe-265 de 05/11/2020)
2 STF. T. Pleno ADPF n.º 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto Min. Rosa Weber. Jul. 12/04/2012. DJe. De 29/04/2013. Public. 30/04/2013.
3 STF. HC 124306/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Data de Julgamento: 08/12/2014. Data de Publicação DJe-244: 11/12/2014. Public. 12/12/2014.
4 Adota-se a tese luhmanniana de sistema complexo social, extraída do conceito estreito à demanda ora apresentada, do Direito como sistema autopoiético: “A distinção que constitui a complexidade assume a forma de um paradoxo: complexidade é a unidade de uma multiplicidade. Um fato é expresso em duas versões distintas: como unidade e como multiplicidade, e o conceito nega que se trate de algo distinto [...] de modo que a forma da complexidade é o limite para a ordem, onde ainda é possível que cada elemento se associe a cada tempo com outros elementos. O que excede a isso, necessita de seleção e produz, assim, um estado contingente, ou seja, toda ordem possível de ser reconhecida depende de uma complexidade, que deixa evidente, que algo diferente também seria possível.” (LUHMANN, N. O conceito de sociedade. In: NEVES, C. B. SAMIOS, E. M. B. (Org.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1997, p. 136-137).
5 PETEFFI DA SILVA, Rafael, RAMMÊ, Adriana Santos. Responsabilidade civil pelo nascimento de filhos indesejados: comparação jurídica e recentes desenvolvimentos jurisprudenciais. Revista do CEJUR/TJSC: Prestação Jurisdicional. Vol. 1, n. 01, p. 121 a 143. dez. 2013, Santa Catarina. p. 122.
6 STF. T. Pleno ADPF n.º 54/DF. Rel. Min. Marco Aurélio. Voto Min. Rosa Weber. Jul. 12/04/2012. DJe. De 29/04/2013. Public. 30/04/2013.
7 Vide ADPF 54; Art. 128, I e II do CPB.
8 “A ADPF nº 54, ajuizada no ano de 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde – CNTS e julgada em 12/04/2012, tinha como pedido a declaração da Inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal – Decreto-Lei nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra forma de permissão específica do Estado. TJRJ. Apelação Cível nº. 0399948-43.2014.8.19.0001. 5ª T. Rel. Des. Claudia Telles. Jul. 14/03/2017. DJe. 16/03/2017.
9 BRASIL. Boletim epidemiológico. Vol. 48, n. 10. Ministério da Saúde. Secretaria de
Vigilância em Saúde. 2017. Disponível em clique aqui. Acesso em: 08 abr. 2020.
10 SILVA, Gedson Alves da. Aborto de nascituro diagnosticado com síndrome da infecção congênita do zikv como direito reprodutivo da mulher gestante. Revista do Direito FDCI, Vol. 1, nº. 1, ano 2018. Revista do Direito FDCI. Cachoeiro de Itapemirim-ES, dez. 2018. p. 20-21. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 nov. 2020
11 SILVA, Gedson Alves da. Op citi. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 20 nov. 2020
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*Gedson Alves da Silva é licenciado Ciências Biológicas (2007) pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Alegre-ES. Graduando do curso de Direito da Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim. Técnico Legislativo Sênior. Servidor de carreira do Poder Legislativo. Município de Marataízes-ES.