À égide democrática e constitucional todos os atos processuais devem estar submissos – apesar de ameaças sistemáticas, é o regime vigente desde o período pós ditatorial, a partir da constituinte de 1987/88. Toda prestação jurisdicional deve ser calcada nos termos do pacto democrático e, como consequência dessas escolhas políticas, observam-se limites rígidos à atuação estatal no âmbito do processo penal, além de sólidas garantias aos acusados, visando a manutenção da dignidade do indivíduo em todo o curso do processo e também em uma possível execução penal.
O sistema processual constitucionalmente posto é o que chamamos de acusatório, que limita a atuação do juízo, principalmente na seara de produção de provas, além de impedir sua atuação de ofício no período das investigações e impor seu distanciamento simétrico perante as partes. Em sentido diametralmente oposto ao sistema acusatório, há o inquisitorial, marcado pela ampliação da possibilidade conferida ao juiz em agir de ofício e em participar ativamente das iniciativas probatórias. Qualquer processo ora eivado de inquisitorialidade, independente do grau, não se mostra suficiente para a efetivação plena da prestação jurisdicional.
O presente ensaio pretende abordar o interrogatório como meio de defesa e orientado pelo sistema acusatório e pelas normas constitucionais referentes ao direito ao silêncio, à presunção de inocência e ao in dubio pro reo.
O interrogatório se constitui no ato processual previsto para o acusado apresentar suas versões sobres os fatos descritos na inicial acusatória; consiste, ainda, em uma expressão do direito de defesa, a autodefesa, podendo ser exercida ou não, de acordo com o melhor interesse da parte. Em homenagem aos princípios do contraditório e da ampla defesa, amparados pela Constituição de 1988, o interrogatório, o primeiro ato da instrução criminal até 2008, foi transferido para o último ato processual, a fim de realizar o direcionamento constitucional. Aquele que se defende deve ter a ciência de todos os elementos a ele relacionados que versem sobre seus possíveis atos delitivos, eis a plenitude de defesa. O acusado deve ter a possibilidade de se defender de tudo aquilo que foi utilizado contra ele no curso de toda persecução criminal, razão pela qual o legislador, acertadamente, ao nosso entendimento, optou por alterar a redação do artigo 400 do Código de Processo Penal (CPP), já que não se mostra materialmente possível produzir uma defesa daquilo que ainda não foi produzido no âmbito do processo. De forma paradoxal a essa lógica, nos crimes abrangidos pela lei 11.343/06, conhecida por Lei de Drogas, o interrogatório do réu persiste sendo o primeiro ato processual, de acordo com o artigo 57 da legislação.
Em nenhuma circunstância, o acusado poderá ser impelido a falar no interrogatório, sendo, pois, conferido a ele exercer o direito ao silêncio, haja vista a máxima do nemo tenetur se detegere, princípio da não autoincriminação, respaldado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e pela Constituição Federal. Depreende-se que o acusado não deve ser coagido ou forçado a colaborar com o processo que poderá levá-lo a uma condenação. Há, portanto, o direito conferido ao defendente de exercer o silêncio, sem que haja interpretações prejudiciais advindas de sua opção, jamais podendo ser qualificado como confissão ou utilizado para o convencimento do juiz. A professora Ada Pellegrini Grinover no ensina que
o réu, sujeito de defesa, não tem obrigação nem dever de fornecer elementos de prova que o prejudiquem. Pode calar-se ou até mentir. Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder.1
Com relação ao comparecimento do réu na audiência de instrução e julgamento para ser interrogado, considera-se a faculdade de se ausentar como uma extensão do direito ao silêncio2, mesmo que intimado, necessitando apenas da presença da defesa técnica, sem a qual há nulidade absoluta.
O artigo 260 do CPP: “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença” foi alvo de Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 395, a qual reconheceu o fragmento "para o interrogatório" como não compatível com a Constituição de 1988.
Não se pode arbitrar, qualquer que seja o processado, o comparecimento ao interrogatório ou a qualquer ato da persecução penal, haja vista sua prerrogativa de se manter silente e o fato de o interrogatório constituir um direito. A condução coercitiva do réu para ser interrogado, além de não ser pragmática e gerar custos ao Estado, fere a presunção de inocência conferida ao acusado. Ora, submeter o indivíduo a uma condução policial ostensiva, e com forte apelo midiático em diversos casos, significa ferir o caráter de inocente concedido a ele, que junto com o princípio do nemo tenetur se detegere possibilita que se mantenha inerte perante os atos processuais. Nesse contexto, concordamos com a posição do STF e acreditamos ter sido o melhor entendimento à luz da dogmática constitucional.
Conforme já exposto, o silêncio do réu não pode ser objeto de valoração para o veredito do juízo, todavia, o atual sistema de decisão conferido ao magistrado pode fragilizar esse quadro, de todo modo a posição do magistrado deve ser justificada por elementos objetivos presentes nos autos.
O sistema do livre convencimento motivado concede ao julgador a possibilidade de se contaminar pelo silêncio e condenar com outras fundamentações, porém influenciado pela lógica inquisitorial e popularizada no dito “quem cala consente”. Com essa mentalidade, mesmo não compatível com a Constituição de 1988, o artigo 198 do CPP compõe o raciocínio do Processo Penal brasileiro: “O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz”. Há de se notar a existência de elementos influentes na decisão que não se fazem presentes na sentença, o estado silente do réu representa um deles, visto que, na lógica de muitos juristas, o que estaria em pauta seria a omissão da verdade real pelo sujeito mais interessado no processo e, assim, se presumiria sua responsabilidade, violando a estrutura do direito processual penal. Hartmann afirma que “Quando o magistrado entende que todo o inocente necessariamente verbaliza sua versão, condena aquele que se cala a uma confissão velada”3.
A situação do réu no interrogatório se mostra, ao menos, crítica. Na hipótese do acusado falar em juízo, ele não prestará o compromisso de dizer a verdade, portanto, seu discurso provavelmente será mitigado e enfraquecido pela acusação. Por outro lado, se o réu exercer o silêncio e não responder as perguntas sobre os fatos a ele imputados, mesmo que vedado por lei, influenciará o convencimento do órgão julgador em desfavor do acusado, devido à inquisitorialidade ainda presente na prática processual brasileira, uma vez que haveria a supressão da verdade à qual ele teria conhecimento.
Reafirma-se que o silêncio jamais poderá ser caracterizado elemento de culpa e nenhuma presunção se faz legítima para superar a presunção de inocência do réu4.
As escolhas políticas dos constituintes fizeram prevalecer a presunção de inocência como a espinha dorsal para se pensar as ciências criminais, presente no famigerado inciso LVII da nossa Carta Magna. Deriva-se dessa regra norteadora o in dubio pro reo e a atribuição do ônus da prova ao órgão acusador. O direito ao silêncio evidencia a expressão notória desses princípios. Dessa forma, todo aquele passível de defesa deve ser considerado inocente para todos os fins processuais. Essa presunção tem por sua razão de ser a proteção dos indivíduos inocentes que estão sendo submetidos à persecução penal. Nessa lógica, a Constituição optou pelo garantismo penal, ao qual se mostra mais grave punir um inocente do que a existência de um culpado impune. O constituinte direcionou o ordenamento processual penal brasileiro para o princípio da não culpabilidade, consequentemente, a inocência estaria subentendida até sentença condenatória transitada em julgado, proferida conforme os elementos probatórios produzidos em contraditório5.
A primeira fase do interrogatório é, então, destinada à qualificação da pessoa do réu. Logo após, o juiz, o membro do Ministério Público e a defesa o arguem sobre os fatos narrados na denúncia, conforme o §2º do art.187 do CPP. A arguição por parte do juízo se mostra acentuadamente problemática à medida que sua função se restringe a conduzir o processo e resguardar as garantias individuais previstas constitucional e legalmente, conforme nos ensina Jacinto Nelson de Miranda Coutinho6. Se algum ponto não estiver bem elucidado ao magistrado, este não deve realizar indagações ao réu, devendo aplicar a previsão legal para esse cenário, previsão esta do in dubio pro reo, princípio corolário da presunção de inocência, e absolvê-lo.
Art. 386. O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: VI. existirem circunstâncias que excluam o crime ou isentem o réu de pena (arts. 20, 21, 22, 23, 26 e § 1º do art. 28, todos do Código Penal), ou mesmo se houver fundada dúvida sobre sua existência. (Código de Processo Penal)
A produção probatória por iniciativa do juiz pode denotar fragilidade do princípio da imparcialidade do magistrado, visto que ele não é parte interessada em uma condenação ou absolvição7. Do mesmo modo, não é papel do juízo esforçar-se para alcançar a verdade real dos fatos, o que é deveras inexecutável, mas sim a verdade processual delimitada pelas provas produzidas licitamente8. A verdade processual é similar à verdade histórica – por exemplo, ambas apresentam reconstruções de fatos fundamentados em relatos e em documentos, majoritariamente. Todavia, essas verdades são fragmentadas e passíveis de mudanças conforme a vinda de outros elementos válidos.
O juiz natural está em uma posição equidistante das partes e se manifesta nos autos fundamentado nas provas produzidas pela acusação e pela defesa, devidamente contraditadas. A justiça processual está vinculada ao posicionamento distanciado do juiz, principalmente no interrogatório, momento em que o réu se encontra mais vulnerável no âmbito das disputas de narrativas. A prática processual penal, em um patamar ideal e talvez utópico, deveria estar em conformidade com o sistema acusatório, em que a ampla defesa e o contraditório são devidamente respeitados e o magistrado não intervém na atividade probatória como se parte interessada fosse, concebendo a atuação dos sujeitos processuais como um excelente aferidor das bases democráticas de um Estado.
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1 GRINOVER, Ada Pellegrini. Interrogatório do réu e direito ao silêncio. Ciência Penal, São Paulo, v.3, 1 n.1, 1976, p.21.
2 BOTTINO, Thiago. A inconstitucionalidade da condução coercitiva. Boletim IBCCRIM, v. 305, p. 2-3, 2 2018. Disponível clicando aqui . Acesso em: 15 abr 2020.
3 HARTMANN, Helen. O silêncio do arguido no direito processual penal brasileiro. Dissertação de 3 Mestrado em Direito das Relações Sociais. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010, p. 150.
4 GRINOVER, Ada Pellegrini. Interrogatório do réu e direito ao silêncio. Ciência Penal, São Paulo, v. 3, 4 n. 1, 1976, p. 29.
5 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 441.
6 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente 6 demarcado. Revista de informação legislativa, v. 46, n. 183, p. 103-15, jul/set 2009. Disponível clicando aqui . Acesso em: 24 mar 2020, p. 114.
7 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. O "Sistema Acusatório" do Processo Penal Brasileiro: Apontamentos Acerca do Conteúdo da Acusatoriedade a partir de Decisões do Supremo Tribunal Federal. Direito, Estado e Sociedade, n. 47, p. 181-204, jul/dez 2015. Disponível em: clicando aqui. Acesso em: 24 mar 2020, p.199.
8 LOPES JR., Aury. (Re)pensando os sistemas processuais em democracia: a estafa do tradicional problema inquisitório x acusatório. Boletim Informativo IBRASPP, v. 3, n. 5, p. 32-34, fev 2013. Disponível clicando aqui . Acesso em: 24 mar 2020, p. 33-34.
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