Migalhas de Peso

La giurisprudenza è mobile qual piuma al vento...

A jurisprudência, nas cúpulas, é ainda autofágica, seguindo o modernismo tupiniquim: devora-se a si mesma. Do maior, então, para o menor, às vezes bastam poucos anos, às vezes, meses, às vezes, dias.

25/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Great cases, like hard cases, make bad law. For great cases are called great not by reason of their real importance in shaping the law of the future, but because of some accident of immediate overwhelming interest which appeals to the feelings and distorts the judgement. These immediate interests exercise a kind of hydraulic pressure which makes what previously was clear seem doubtful, and before which even well settled principles of law will bend.” Justice Holmes1

Fica(rá) – se algo ficar aqui – apenas o registro. Afinal, o edito – judicial-casual – já foi exarado. E de decisão final do Pleno do STF, para onde se recorre? Não obstante, se a “Constituição 1984” de 1988 é a Constituição do Poder Público (nem se redargua aqui com o esgarçado mote da constituição cidadã, senão o texto não caberia neste artigo); se o Poder Público, por ineficiência ou solércia, canaliza tudo para o Poder Judiciário; e se, por isso, nesse governo há muito tempo instalado, juízes decidem tudo sobre tudo, é importante que se entenda como essa ária é entoada.

O tom é oscilante. E o improviso, livre, executado num aleggrissimo. A jurisprudência, Signore e Signori, é tropo mobile... muta d’accento e di pensiero... Nas cúpulas, ela é ainda autofágica, seguindo o modernismo tupiniquim: devora-se a si mesma. Do maior, então, para o menor, às vezes bastam poucos anos, às vezes, meses, às vezes, dias. And everytime they say goodbye... 

Sejamos empíricos, citemos a prática: o STF, ao julgar a ADPF 378-MC/DF, em 2015 (caso do Impeachment “Dilma Rousseff”), definiu que a instituição da Comissão Especial de Impeachment deve respeitar a proporcionalidade/representatividade partidária, tanto quanto possível; isso é o que a CF determina (art. 58, § 1º), replicada na lei 1.079/50. O mandamental é observar a proporcionalidade da representação, para que seja preservada a soberania do voto popular que constituiu a legislatura, e só depois, se der, e “tanto quanto possível”, que se pense em incluir integrantes de todos os partidos/blocos na comissão, ou tantos quantos possíveis. Esse mesmo entendimento, posteriormente, foi ratificado pelo STF, em 2019, ao julgar a ADIn 5.895/RR. Dois julgamentos, portanto, em sede de controle concentrado, com efeito vinculante (CF, art. 102, §§ 1º e 2º; Lei da ADIn, art. 28, parágrafo único; Lei da ADPF, art. 10, § 3º; CPC, art. 927, I). Dois julgamentos paradigmáticos, que deveriam servir de modelo para a sociedade. 

Assim, com efeito, era, e assim, de fato, deveria ser. Ou não... (e aí entra em cena a nossa brejeira e malemolente cláusula tropical não escrita). E, efetivamente, não foi. De modo ad hoc, ao julgar a Reclamação 42.358/RJ (caso do Impeachment “Wilson Witzel”), o relator, ministro Alexandre de Moraes – talvez sentindo-se legitimado a tal por não ter integrado o julgamento do paradigma “Dilma”, embora tenha sido relator do precedente de Roraima que o confirmou... – trouxe, agora, há duas semanas, uma teoria nova (e teorias novas não nos faltam; nossa academia é pródiga; seu manancial é inesgotável; e sua fábrica trabalha em regime de plantão, com recrutamentos diários, e gerações e gerações de voluntários a perpetuarem inconscientemente essa lobotomia de colocar um novo tijolo na parede). O relator, dizia-se, entendeu, por conta própria, ser mais plural, multicultural e tropical equalizar o jogo de forças partidárias: todos deveriam ter igual representatividade na comissão (enquanto alguns partidos detinham 12,86% da legislatura na ALERJ, outros detinham 1,43%, mas, ao final, todos os 25 partidos ficaram com 4% de representatividade dentro da comissão de impeachment).

Não foi assim antes, e jamais havia sido, mas passou a ser assim agora, com o voto de esmagadora maioria, à exceção de um único voto divergente, proferido pelo ministro Dias Toffoli. A nova teoria, a um só tempo, subverte a ratio decidendi dos precedentes vinculantes mencionados e viola a vontade popular (ratio essendi da proporcionalidade). E o mais grave: devolve ao Estado-membro o que é da União – legislar sobre procedimento e conteúdo em matéria de crime de responsabilidade – tal como já fora fixado, no início de 2015, em súmula vinculante (SV 46), isto é, no grau mais alto de vinculatividade de uma decisão (CF, art. 103-A). Em resumo: o STF nem sequer acata suas próprias “leis”.

Coonestou-se, com isso, com a chancela do MPF, enquanto custos legis, a violência cometida pela ALERJ contra a representação popular. O método? A acadêmica técnica da mutação constitucional – a mesma que justificou a estropiação da literalidade do que está escrito na CF de 88 sobre a presunção de legitimidade. No caso, tudo se deu por meio de uma mutação constitucional silenciosa, não escrita nos livros, por meio da qual a corte simplesmente altera seu entendimento sobre determinada matéria sem enfrentar o precedente anterior, e sem justificar a necessidade de sua alteração. A nova verdade é simplesmente martelada na tábua e fixada na praça.

O ministro Fux tem falado muito em segurança jurídica, fundamento do Estado Democrático de Direito (CF, art. 5°, XXXVI). Só não se sabe exatamente qual. Afinal, a única coisa certa e segura, que se tem hoje na práxis forense, é a de juízes agirem freewheeling, decidindo livremente. Os exemplos se sucedem diariamente, principalmente nos casos difíceis, aqueles que, como visto acima, e como bem definira Justice Holmes, produzem direito ruim. É que de difíceis, na verdade, eles nada têm, mas de políticos... Dir-se-á leviano dizer assim. Afinal, as decisões invocam princípios; possuem, pois, um lastro acadêmico, e são hauridas na visão celestial do ser dos scholars... E como os há para todos os gostos, tudo então é possível, racional e real, se assim lhes parecer bem. Na nossa constituição hegeliana, what is, is good, and Might is right.

O trem, seja como for, já partiu, e avançou por outras estações. O impeachment de Witzel seguiu. Mas o que deve prevalecer? Qual a regra? O da Dilma? E qual a exceção? O de agora? Ou o contrário? Aquele terá sido um julgamento de ocasião? Terá sido, no sentido a que aludiu Justice Holmes, um genuíno hard case? O relator2, enfático outrora, agora se absteve; preferiu não votar. Isso importa? Mas o que importa? Nada absolutamente importa, e nada importará enquanto a sociedade não impuser, com séculos de atraso, a sua Magna Charta; nada importará enquanto o exercício do poder não for limitado. E o Poder Judiciário – aliás, notadamente o Poder Judiciário – não pode ser uma exceção, com franquia para agir de legibus solutus. Juízes não podem agir de ofício; juízes não podem solapar garantias individuais; juízes devem aplicar as leis e não as criar; juízes devem guardar coerência e congruência em suas decisões; juízes, enfim, devem promover certeza e estabilidade às relações; porque juízes devem responder à sociedade por suas decisões. Enquanto isso não se der, tudo será – quer dizer, continuará a ser – volátil – e mudará, caprichosamente, de acento e de pensamento, qual pluma ao vento. Enquanto essa noção não for internalizada e exigida pela sociedade, como pedra fundamental para qualquer convivência republicana, seguiremos na nossa marcha do servilismo. Enquanto não estabelecermos um “até aí, sim; depois daí, não”, Brasília, com seus bastidores de poder, será, na prática, a Constituição do país.

Rui Barbosa disse apenas o óbvio: a pior tirania é a dos juízes, porque contra ela não há controle, e muito pouco, na prática, o que se fazer. Resta apenas o exercício da crítica – e a isso, e não a outra coisa, se chama iluminismo democrático. Um exercício, hoje, individual e inglório. Porque a própria opinião pública, então sustentáculo de qualquer governo, é um domínio movediço. A coqueluche das Fake News veio em boa hora alimentar o Poder. A verdade, sabemos todos, é que a verdade nunca vendeu jornal. E combater Fake News divulgando outras tantas é o negócio da hora. Com limites soltos, então, e conceitos fluidos, e princípios tão elásticos quanto muitas vezes vazios, tudo é incerto e possível. A verdade, então, é o que aparece na televisão e nas redes sociais, até o dia seguinte, quando a roda viciada desse circuito vicioso tornar a girar de novo, empurrando-nos para trás. Num Estado hegeliano, em que toda síntese se reverte na sua reafirmação, “the state (and the press) must decide what is true and false, and may supress what it deems to be false”.3

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1 Apud Scalia, Antonin, in “Reflections on Law, Faith, and Life well lived”, New York, Crown Forum, 2017, p. 288.

2 “(...) se, por força do art. 58, § 1º da Constituição, a representação proporcional é do partido ou bloco parlamentar, os nomes do partido não podem ser escolhidos heteronomamente, de fora para dentro, em violação ao princípio constitucional da autonomia partidária (CF/1988, art. 17, § 1º). Isso, é claro, desfiguraria a proporcionalidade. De acordo com as normas regimentais, as comissões devem ser compreendidas como órgãos formados por partidos ou blocos parlamentares, sendo a estes que se assegura, tanto quanto possível, o direito de participação proporcional à representação no Plenário da Casa. Há, portanto, direito subjetivo dos partidos ou blocos de serem contemplados nas comissões, na proporção que ocupem no Plenário”. (STF, ADPF 378-MC/DF, Tribunal Pleno, Rel. p/ acórdão Min. Luís Roberto Barroso, j. 17.12.2015)

3 POPPER, Karl, in The Open Society and its enemies”, New Jersey, Princeton University Press, 1994, p. 667.

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*Bruno Di Marino é advogado do Basilio Advogados.






*Álvaro Ferraz é advogado do Basilio Advogados.

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