Num conhecido artigo publicado no jornal “The New York Times”, em 1970, o professor Milton Friedman, principal nome da célebre “Escola de Chicago” e Prêmio Nobel de economia em 1976, afirmava que a responsabilidade social das empresas era aumentar seu lucro.
Um dos trechos desse artigo dizia: “Há uma e apenas uma responsabilidade social da empresa – usar seus recursos e se envolver em atividades destinadas a aumentar seus lucros, desde que permaneça dentro das regras do jogo, ou seja, se engaje em uma competição aberta e livre sem engano ou fraude1.”
No entanto, essa teoria não tardou a perder forças. Em 1984, R. Edward Freeman, professor da Darden School, escola de negócios da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, publicou o livro “Strategic Management: A Stakeholder Approach”, inaugurando a ideia de que as empresas existem para dar retorno a todas as partes interessadas (“stakeholders”) e não apenas aos acionistas (“shareholders”), como defendia Friedman2.
Em 2019, uma drástica mudança no mundo corporativo passou a ser percebida. Em agosto, o “The Business Roundtable”, grupo que reúne 150 CEOs das maiores empresas americanas, declarou, em carta aberta, o fim do retorno ao acionista como o único propósito das companhias. O shareholder deu lugar ao stakeholder, e, assim, mais de trinta anos depois, a teoria de Freeman ganhava destaque3.
Atualmente, sob a sigla “ESG” (“environmental, social, governance” ou “meio ambiente, responsabilidade social e governança”), muitos líderes de empresas e investidores passaram a demonstrar preocupação com negócios orientados não apenas para a geração de lucros, mas também para a conformidade e para as responsabilidades social e ambiental – ainda que motivados pela percepção de que a perenidade das empresas não depende exclusivamente de seus resultados econômicos. Para os gestores, a forma como as sociedades atuam e, consequentemente, como são percebidas pelas pessoas influenciam claramente na continuidade do negócio.
Já no início de 2020, em sua carta anual aos dirigentes de empresas que estão no seu portfólio de investimentos, Larry Fink, presidente da BlackRock, maior gestora de recursos do mundo, chamou a atenção para a questão ambiental4. No curso do mesmo ano, com a pandemia da covid-19 – que tem causas ambientais5 e que provocou mortes, adoecimentos6 e empobrecimento7 de milhões de pessoas pelo mundo –, essa preocupação aumentou ainda mais.
Agora, com a expectativa do surgimento de uma ou várias vacinas para a covid-19 e a preocupação com a retomada econômica, empresas, bancos, fundos de investimento e bolsas de valores começaram a buscar mecanismos de implantação e de medição do ESG.
Mas embora exista consenso no que se refere, por exemplo, à necessidade de redução das emissões de gases do efeito estufa, à implantação de políticas de equidade racial e de igualdade de gênero (“equal pay for equal work”), ao combate à corrupção e à proteção de dados, é certo que não existem padrões universais para avaliar uma empresa em relação ao seu desempenho ambiental, social e de governança.
Daí porque é possível afirmar que se consolidou entre executivos e investidores a crença de que os maiores desafios para a sua implantação estavam: (I) na ausência de uniformidade entre as métricas adotadas para se calcular o ESG de uma empresa; (II) nas diferenças entre os resultados alcançados a depender da métrica aplicada e; (III) na incerteza sobre a qualidade dos dados ESG como as principais barreiras para integrar tais fatores em seu processo de investimento.
No último dia 19 de novembro, porém, um fato pôs em dúvida o próprio ESG no Brasil: o assassinato por espancamento de um homem negro por seguranças de uma das lojas da rede de supermercados Carrefour, situada em Porto Alegre. Isso porque, a despeito da brutalidade e da ignomínia do ato, de sua ampla divulgação e da repercussão gerada, o episódio não influenciou negativamente nos resultados das ações do Carrefour na B3.
Diversamente do esperado, na sexta-feira, 20 de novembro, em meio aos ecos do gravíssimo episódio ocorrido na véspera, as ações da empresa tiveram alta durante boa parte do pregão da B3 – que, aliás, operava em queda naquele dia. Não era algo que refletisse o desempenho global do grupo: na França, país sede do Carrefour, suas ações caíram 2,2%, enquanto a Bolsa de Paris subiu 0,4% no pregão8.
Embora executivos de investimentos especializados em ESG no Brasil tenham reagido com extrema preocupação, chegando, até mesmo, a afirmar que “o ESG acabou por aqui antes mesmo de começar9”, esse parece ser um sentimento extremamente pessimista. Ainda que os fatos sejam chocantes e que a reação do mercado destoe do que se imaginava, um único episódio não pode ser o suficiente para decretar a morte prematura do ESG no Brasil. Uma análise mais serena faz concluir que, na verdade, o ESG ainda está nascendo por aqui.
De fato, enquanto os conceitos de “economia de ‘stakeholders’” e de ESG já circulassem na Europa e, especialmente, nos Estados Unidos há mais de trinta anos, aqui, o mercado foi “invadido” pela sigla durante a pandemia da Covid-19, e não houve tempo e cenário para a consolidação de sua essência. Até 2020, pouco ou quase nada havia sido discutido, no Brasil, sobre investimentos em fundos ou empresas ESG e, de repente, na ebulição da pandemia, o assunto se tornou onipresente em “lives”, reuniões virtuais, grupos de discussão em aplicativos, sites, jornais e revistas de negócios ou jurídicas.
Não houve tempo suficiente ou ambiente propício ao amadurecimento do mercado. A mesma pandemia que acelerou a internalização e a popularização do tema não permitiu que ele se maturasse, e que fosse assimilado em sua grandeza, complexidade e relevância. No Brasil, o ESG se tornou essencial antes mesmo de ser conhecido.
Ademais, é muito importante ter em vista que a estranha resposta do mercado a um crime calcado no racismo estrutural denota a necessidade de ampliação e fortalecimento das discussões sobre a temática. O mesmo se podendo dizer sobre a igualdade de gênero, a luta pela inclusão das pessoas LGBTQIA+... É dizer: o racismo estrutural é tão fortemente arraigado aqui que não foi sequer percebido pelo mercado.
Noutro giro, o mercado brasileiro aparentemente soube se contrapor às agressões ao meio ambiente – como demonstram as quedas observadas nas ações da Samarco e da Vale, após as tragédias de Mariana10 e Brumadinho11, respectivamente – e aos casos de corrupção12, entretanto tais reações também não foram duradouras13.
Dito de outro modo, um episódio de inércia do mercado a uma brutal ofensa a uma pauta social não é o suficiente para proclamar o fim prematuro do ESG no Brasil. Porém, se as reações a questões ambientais e de governança foram fugazes, pode-se afirmar que – ao menos por enquanto – o mercado nacional ignora retrocessos sociais e esquece rapidamente os ambientais e de governança.
Contudo, ainda que o mercado brasileiro seja mais indulgente com as agressões ao meio ambiente, à responsabilidade social e à governança, acontecimentos recentes – como os protestos decorrentes da morte de George Floyd, que influenciaram até a eleição do novo presidente americano e a ameaça desse mesmo presidente ao Brasil, pelo descaso com a Amazônia – provam que os stakeholders das principais economias do mundo não estão dispostos a aceitar o inaceitável. Naturalmente, essa postura terá reflexos aqui. É uma questão de tempo. Muito pouco tempo.
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1 FRIEDMAN, Milton. A Friedman doctrine – The social responsibility of business is to increase its profits. The New York Times. 13 de setembro de 1970. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020. Tradução da autora.
2 FREEMAN, R. Edward. Strategic Management: A Stakeholder Approach. Cambridge: Cambrigde University Press, 2010. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
3 CAETANO, Rodrigo. Freeman, o anti-Friedman, está otimista com o futuro das empresas. Revista Exame. 18 de agosto de 2020. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
4 FINK, Laurence D. Sustentabilidade como o novo padrão de investimento da BlackRock. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
5 TOLLEFSON, Jeff. Why deforestation and extinctions make pandemics more likely. Nature 584, 175-176 (2020). doi: clique aqui . Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
6 World Health Organization. WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
7 The World Bank. COVID-19 to Add as Many as 150 Million Extreme Poor by 2021. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
8 NARCIZO, Bruna e MOURA, Julia. Caso Carrefour é teste para índice de sustentabilidade no Brasil. Folha de São Paulo. 20 de novembro de 2020. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
9 NARCIZO, Bruna e MOURA, Julia. Caso Carrefour é teste para índice de sustentabilidade no Brasil. Folha de São Paulo. 20 de novembro de 2020. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
10 Ações da Vale subiram 257% desde rompimento de barragem da Samarco em Mariana. Seu Dinheiro. 26 de janeiro de 2019. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
11 Preços das ações da Vale caem 20% após tragédia de Brumadinho. Jornal Nacional. 28 de janeiro de 2019. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
12 PADULA, Ana Julia Akaishi e ALBUQUERQUE, Pedro Henrique Melo. Corrupção governamental no mercado de capitais: um estudo acerca da operação lava jato. RAE-Revista de Administração de Empresas, vol. 58, n. 4, 2018. Disponível clicando aqui . Acesso em: 21 nov. 2020.
13 MELO, Luísa Melo e GERBELLI, Luiz Guilherme. 1 ano após a tragédia de Brumadinho, Vale recupera valor de mercado e volta a ver lucro. Portal G1. Disponível clicando aqui . Acesso em: 23 nov. 2020.
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