Nos últimos dias fomos bombardeados com informações, publicações e imagens sobre o caso da jovem Mariana Ferrer, mas o que gerou a grande comoção e revolta popular foi especialmente o termo “estupro culposo”, que, segundo algumas notícias veiculadas na mídia, teria sido a fundamentação para a sentença de absolvição do réu André Aranha.
Ocorre que, o termo “estupro culposo” não existe no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que um crime somente poderá ser punido na modalidade culposa caso haja previsão expressa na lei (artigo 18, parágrafo único, do Código Penal), ou seja, a conduta praticada de forma culposa deve estar tipificada na lei incriminadora para que possa ser tratada como crime e, especificamente quanto às modalidades do crime de estupro, não há qualquer previsão para a forma culposa, portanto a figura do “estupro culposo” é uma aberração jurídica.
Mas, mesmo não existindo qualquer previsão legal quanto ao “estupro culposo”, o Ministério Público de Santa Catarina fundamentou sua tese com base neste termo e mais, o juiz ao sentenciar o caso acatou referida tese do “estupro culposo” e absolveu o réu, conforme divulgado massivamente nos meios de comunicação?
A resposta, obviamente, é não.
Após ter acesso, na íntegra, às alegações finais do Ministério Público de Santa Catarina e à sentença proferida pelo juízo da 3ª Vara Criminal de Florianópolis – TJSC verificamos que o termo “estupro culposo” não foi usado em nenhum momento e sequer cogitado algo parecido.
A título de esclarecimentos, a tese do Ministério Público, ao requerer a absolvição do réu André Aranha, foi fundamentada no erro de tipo essencial, instituto que comporta previsão legal no artigo 20, do Código Penal, e que remete à atipicidade da conduta (quando não existe a modalidade culposa), pela ausência de dolo, tendo em vista que, por equivocada compreensão das circunstâncias de fato, o sujeito não tem consciência que realiza as elementares do tipo penal, isto é, que de fato pratica um crime.
No caso em discussão, o Ministério Público denunciou o réu André Aranha pelo cometimento do crime de estupro de vulnerável, previsto no artigo 217-A, § 1º, segunda parte, do Código Penal. No referido tipo penal temos, sinteticamente, duas elementares essenciais, a primeira é a conjunção carnal ou o ato libidinoso e a segunda é a falta de discernimento da vítima para a prática do ato ou que esta não possa oferecer resistência.
De acordo com o Ministério Público, a primeira elementar restou configurada, isto é, a relação sexual comprovadamente foi consumada, no entanto, o parquet entendeu pela inexistência de provas quanto a elementar de vulnerabilidade da vítima, tendo em vista que as testemunhas que a viram ao final da festa, as imagens obtidas e os exames toxicológico e de alcoolemia não indicaram a falta de discernimento de Mariana Ferrer na ocasião dos fatos, presumindo-se então pela ausência de dolo quanto a elementar de vulnerabilidade, uma vez que não seria razoável exigir do réu que soubesse ou que deveria saber que a vítima estaria incapaz ou que esta não desejava a relação, já que nem as provas mostraram isso, concluiu o promotor de Justiça.
Assim, segundo a tese ministerial, o erro de tipo essencial ocorreu quanto a elementar de vulnerabilidade da vítima, isto é, inexistindo provas de que Mariana Ferrer pudesse estar “dopada”, termo usado pela própria vítima, o réu André Aranha não teria agido com dolo de cometer o crime estupro de vulnerável, que exige o dolo quanto as duas elementares para sua configuração, haja vista a ausência de uma das elementares leva consequentemente à atipicidade da conduta.
Por sua vez, o juiz de direito, ao prolatar a sentença, valendo-se de seu livre convencimento, acatou a tese do Ministério Público e absolveu o réu André Aranha por falta de provas quanto ao estado de vulnerabilidade da vítima Mariana Ferrer, considerando não haver elementos suficientes que indicassem a ausência de discernimento para a prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência e, com fundamento no princípio do “in dúbio pro reo” proferiu a absolvição de André Aranha.
Como se vê, nem o Ministério Público e nem o juiz do caso mencionaram o termo “estupro culposo”, a fim de sustentar a absolvição do réu, bem assim que, tecnicamente, a sentença está fundamentada de acordo com o ordenamento jurídico, considerando-se o livre convencimento e a valoração das provas pelo magistrado, o que não impede deste julgamento ser revisado em seu mérito.
Mas quanto ao termo “estupro culposo”, que não consta nas alegações finais do Ministério Público e tampouco na sentença de absolvição, como surgiu essa inusitada classificação que teve o poder de gerar estrondosa comoção entre famosos e anôminos nas redes sociais, em alguns veículos de comunicação e até mesmo no meio jurídico?
Após todo o reboliço na web, o site The Intercept Brasil assumiu publicamente a criação do termo “estupro culposo”, segundo consta em nota publicada no site em 3/11/20, para “resumir o caso e explicá-lo para o público leigo”, afirmando ainda que tal prática é usual no jornalismo.
Diante dos fatos, cabe-nos destacar o enorme poder dos meios de comunicação em influenciar o seu público, seja com a propagação de informações reais e verdadeiras, seja com a disseminação de informações distorcidas, inverídicas, descabíveis e manipuladas, como ocorreu no caso de Mariana Ferrer, gerando grande alvoroço, ao insinuar falsamente uma falha gravíssima na fundamentação da sentença, por termo que sequer fora mencionado nos autos, tampouco existe.
Por fim e não menos importante, cabe registrar nosso completo repúdio e indignação quanto às humilhações e agressões proferidas contra Mariana Ferrer.
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Viviane Galhardi Santos é sócia-fundadora do escritório Galhardi, Gouveia & Santos Advogados.