Passados mais de 7 meses da eclosão da pandemia, o Brasil e o resto do mundo tentam se recuperar das perdas humanas e econômicas que só encontram paralelo no mundo moderno à época de guerras e grandes conflitos.
Ao mesmo tempo, são nestes períodos sombrios e de grande ruptura que a sociedade consegue evoluir mais rápido nos mais diversos campos, seja em termos tecnológicos, culturais e sociais, com a criação de novos hábitos, tendências e comportamentos.
Um desses fenômenos foi a entrada de quase 1 milhão de novos investidores na Bolsa de Valores do Brasil (conhecida como Bovespa, e atualmente operada pela empresa B3), atraídos pela queda abrupta dos valores mobiliários negociados, em março de 2020, e instigados e bombardeados por gurus financeiros, propagandas enganosas e aproveitadores de plantão.
A chegada desse contingente de brasileiros deveria ser celebrada como um elemento de amadurecimento institucional da Bolsa, irradiando efeitos positivos em toda a sociedade, com a valorização de ativos, criação de riqueza e postos de trabalho. A título de comparação, nos Estados Unidos 55% da população investe em algum tipo de valor mobiliário (esse número já foi de 67% em 2002).
O problema é que a maior parte desses novos investidores não tem qualquer informação, conhecimento e sofisticação para investir seus bens, muitas vezes acumulados por toda uma vida, em algo tão arriscado.
É verdade que o mercado de valores mobiliários, por sua própria natureza, é dotado de muito mais volatilidade e incerteza do que os investimentos mais conservadores, como poupança, renda fixa e títulos públicos, oferecendo maiores riscos, mas também retornos financeiros mais robustos àqueles que se aventuram no sobe e desce dos diversos produtos financeiros oferecidos, respaldados (ou iludidos) por gráficos, números e fórmulas que parecem (ou pretendem) fazer sentido.
Não obstante, o ordenamento jurídico brasileiro e a Comissão de Valores Mobiliários - CVM buscou maneiras de proteger o cidadão brasileiro – dele próprio, inclusive, – por meio de diversas Instruções e Circulares. Talvez a mais importante delas seja a Instrução CVM 539/13. Tal dispositivo prevê uma série de obrigações das corretoras, consultores e outros integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, no sentido do dever de verificação da adequação dos produtos, serviços e operações ao perfil do cliente, o que se denomina, no mercado como “suitability”, vedando que tais agentes possam recomendar produtos, realizar operações ou prestar serviços sem que verifiquem sua adequação ao perfil do cliente.
O perfil do cliente deve ser auferido no cadastro do investidor no banco/corretora e não pode (ou não deveria) ser alterado facilmente. Geralmente a classificação compreende 3 modalidades: (I) conservador; (II) moderado; e (III) agressivo. Em princípio, o cliente com perfil conservador e moderado não pode realizar altos investimentos em ações, muito menos no mercado futuro e, em particular, no chamado daytrading.
A expressão daytrading ganhou recente notoriedade, no Brasil, depois que alguns famosos propalaram aos quatro cantos que estavam fazendo rios de dinheiro com ele. Sobre os riscos e desafios inerentes ao daytrading, recomendo o excelente artigo publicado recentemente na revista Você S/A que o compara à cocaína. Um vício impiedoso que pode causar prejuízos não só financeiros, mas como levar o investidor a dar fim a própria vida.
A Instrução CVM 539/13 deveria servir como um escudo contra o daytrading e outras operações de alto risco que as centenas de milhares de novos investidores ficam expostos todos os dias. Todavia, corretoras, bancos de investimentos e outros agentes, seja por dolo ou incompetência, e ao completo arrepio da lei, vêm instigando e permitindo aos investidores entrar na cocaína do daytrading.
Há indícios de que grandes players do mercado, que deveriam “lead by example”, como a corretora Ativa Investimentos, vêm violando sistematicamente a Instrução CVM 539/13, permitindo que investidores sem qualquer conhecimento, experiência e patrimônio se aventurem na compra e venda de centenas de minicontratos de dólar e índice, o que pode levá-los a perderem tudo (incluindo a sanidade).
Neste sentido, apesar de algumas recentes decisões favoráveis, tanto no âmbito judicial quanto no do MRP – Mecanismo de Ressarcimento de Prejuízo, (processo por meio do qual o investidor pode buscar ressarcimentos por eventuais perdas) evidencia-se uma tendência de timidez e omissão tanto de nossos juízes, quanto dos órgãos de fiscalização, como a CVM, Ministério Público e PROCON, no sentido de coibir práticas ilegais pelos agentes do mercado financeiro.
Vale ressaltar, e parece que isso os órgãos julgadores e fiscalizadores não estão conseguindo entender, a premissa principal da Instrução CVM 539/13: a mera recomendação, permissão ou realização de operação contrária aos interesses, experiência, patrimônio e perfil do cliente é absolutamente proibida. A máxima de – foi o cliente que apertou o botão/gatilho no Home Broker/plataforma não exclui a culpabilidade da corretora, que deveria ter impedido/proibido o cliente de realizar tal operação, caso esta seja incompatível com o seu perfil.
Com o escopo de ajudar e proteger os investidores brasileiros, vítimas de atos ilícitos cometidos pelas corretoras e demais integrantes do sistema de distribuição de valores mobiliários, criamos recentemente a AAII - Associação de Apoio ao Investidor Iniciante, visando a dar apoio jurídico e psicológico às vítimas dos abusos dos agentes do mercado financeiro.
A entrada em massa dos brasileiros na bolsa de valores deveria ser comemorada com um sinal de avanço e maturidade de nosso sistema financeiro. Todavia, evidencia-se um alto gap e deficiência na implementação, aplicação e execução das regras e leis que visam a protegê-los em face da exuberância (e ganância) irracional dos players do mercado financeiro.
O brasileiro honesto sabe o quanto suado foi amealhar seu patrimônio. A sociedade e suas instituições não podem permitir que ele evapore em um click no celular que jamais poderia ter sido permitido.
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