Migalhas de Peso

A "nova" natureza dos honorários advocatícios sucumbenciais

Qual foi a questão posta no REsp 1.815.055/SP?

18/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

Foi julgado, em 3/8/20, um recurso pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que merece ser analisado.

Qual foi a questão posta no REsp 1.815.055/SP? Na fase de cumprimento de sentença foi determinada a penhora sobre 15% do salário do executado, de modo a pagar o valor dos honorários advocatícios sucumbenciais que surgira numa ação de conhecimento. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) reformou a decisão. O STJ, por 7 votos a 6, manteve o entendimento do TJ/SP. O ministro Felix Fischer não votou, pois estava ausente. O ministro João Otávio de Noronha, que presidia a sessão, também não votou.

Antes de entrar na narrativa do caso, vamos recordar o que diz três normas sobre a matéria. O § 14 do art. 85 do Código de Processo Civil (CPC) dispõe que “[o]s honorários constituem direito do advogado e têm natureza alimentar, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho, sendo vedada a compensação em caso de sucumbência parcial”. É pertinente trazer a lume, igualmente, ao enunciado da súmula vinculante 47: “[o]s honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza”. Por fim, o § 2º do art. 833 do CPC estabelece que “O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º, e no art. 529, § 3º”.

Dito isso, vamos aos principais argumentos apresentados pela relatora, ministra Nancy Andrighi:

“4. Os termos ‘prestação alimentícia’, ‘prestação de alimentos’ e ‘pensão alimentícia’ são utilizados como sinônimos pelo legislador em momentos históricos e diplomas diversos do ordenamento jurídico pátrio, sendo que, inicialmente, estavam estritamente relacionados aos alimentos familiares, e, a partir do CC/16, passaram a ser utilizados para fazer referência aos alimentos indenizatórios e aos voluntários.

5. O termo ‘natureza alimentar’, por sua vez, é derivado de ‘natureza alimentícia’, o qual foi introduzido no ordenamento jurídico pela Constituição de 1988, posteriormente conceituado pela EC 30/00, constando o salário como um dos exemplos.

6. Atento à importância das verbas remuneratórias, o constituinte equiparou tal crédito ao alimentício, atribuindo-lhe natureza alimentar, com o fim de conceder um benefício específico em sua execução, qual seja, a preferência no pagamento de precatórios, nos termos do art. 100, § 1º, da CRFB.

7. As verbas remuneratórias, ainda que sejam destinadas à subsistência do credor, não são equivalentes aos alimentos de que trata o CC/02, isto é, àqueles oriundos de relações familiares ou de responsabilidade civil, fixados por sentença ou título executivo extrajudicial.

8. Uma verba tem natureza alimentar quando destinada à subsistência do credor e de sua família, mas apenas se constitui em prestação alimentícia aquela devida por quem tem a obrigação de prestar alimentos familiares, indenizatórios ou voluntários em favor de uma pessoa que, necessariamente, deles depende para sobreviver.

9. As verbas remuneratórias, destinadas, em regra, à subsistência do credor e de sua família, mereceram a atenção do legislador, quando a elas atribuiu natureza alimentar. No que se refere aos alimentos, porque revestidos de grave urgência - porquanto o alimentando depende exclusivamente da pessoa obrigada a lhe prestar alimentos, não tendo outros meios para se socorrer -, exigem um tratamento mais sensível ainda do que aquele conferido às verbas remuneratórias dotadas de natureza alimentar.

10. Em face da nítida distinção entre os termos jurídicos, evidenciada pela análise histórica e pelo estudo do tratamento legislativo e jurisprudencial conferido ao tema, forçoso concluir que não se deve igualar verbas de natureza alimentar às prestações alimentícias, tampouco atribuir àquelas os mesmos benefícios conferidos pelo legislador a estas, sob pena de enfraquecer a proteção ao direito, à dignidade e à sobrevivência do credor de alimentos (familiares, indenizatórios ou voluntários), por causa da vulnerabilidade inerente do credor de alimentos quando comparado ao credor de débitos de natureza alimentar.

11. As exceções destinadas à execução de prestação alimentícia, como a penhora dos bens descritos no art. 833, IV e X, do CPC/15, e do bem de família (art. 3º, III, da lei 8.009/90), assim como a prisão civil, não se estendem aos honorários advocatícios, como não se estendem às demais verbas apenas com natureza alimentar, sob pena de eventualmente termos que cogitar sua aplicação a todos os honorários devidos a quaisquer profissionais liberais, como médicos, engenheiros, farmacêuticos, e a tantas outras categorias”.

Caso o leitor decida ler o inteiro teor do voto – e eu recomendo –, verá que o trabalho de pesquisa realizado pela relatora é impressionante, contudo, com a devida vênia, merece alguns reparos. Falarei um pouco mais sobre isso adiante.

O voto que abriu a divergência foi do ministro Luis Felipe Salomão, no qual se vê uma vasta transcrição de ementas sobre o tema, bem como a citação de diversos doutrinadores; todos defendendo tese contrária à da relatora. Num determinado ponto, afirma o seguinte:

“Diante desse cenário, a douta Ministra Relatora defende uma total reviravolta à jurisprudência sedimentada desde 2011, a meu ver com vulneração à segurança jurídica, observada sempre a máxima vênia. Sua Excelência propõe uma releitura da exceção disposta no § 2º do art. 833 do CPC/15 - que autoriza a penhora das verbas remuneratórias do inciso IV -, especificamente em relação à expressão ‘prestação alimentícia’, para afastar os honorários advocatícios, ao fundamento de que a norma seria destinada apenas as prestações de alimentos do direito de família ou decorrentes da responsabilidade civil.

Penso, data venia, que a expressão ‘prestação alimentar’ do § 2° do art. 833 do CPC/15, deve ser interpretada em seu sentido amplo, como gênero, para abarcar todas as verbas de natureza alimentar.

O objetivo da norma, a meu juízo, parece nítido, foi o de garantir, em obediência ao princípio da dignidade humana de credor e devedor, a possibilidade de sustento de ambos, do exequente e de sua família, sem o comprometimento total do mantimento do executado e sua linhagem.

[...]

Em verdade, conforme adverte Cássio Scarpinella e Donaldo Armelin, ‘a natureza alimentar de um específico crédito caracteriza-se pela sua finalidade e não pelo nome da remuneração’ (A natureza alimentar dos honorários sucumbenciais. In: Tutelas de urgência e cautelar. São Paulo: Saraiva, 2010, 220), isto é, o nomen iuris, prestação alimentar, utilizado no § 2º do art. 833 do CPC não teve o intuito de restringir, mas de ampliar para alcançar todas as rubricas voltadas ao sustento da família”.

Não vou discorrer sobre os votos dos demais ministros, pois, o essencial, já está colocado.

Considero que o posicionamento mais correto sobre o tema é o anterior a este julgado, no qual se permitia a penhora de percentual de outras verbas de natureza alimentar, inclusive da pensão alimentícia, para pagar o crédito decorrente de honorários advocatícios, sejam eles contratuais ou sucumbenciais. Passo, agora, a tecer alguns argumentos sobre este REsp 1.815.055/SP. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, não me parece adequado que um julgamento, com o resultado de 7 a 6, termine sem que todos os membros da Corte Especial tenham votado. Já que o ministro Felix Fischer estava justificadamente ausente, seria o caso de se convocar algum outro julgador para esta sessão, ou, então, suspendê-la, de modo que ele mesmo pudesse votar depois. Assim, em caso de empate, competiria ao ministro João Otávio desempatar. Há, portanto, violação ao princípio constitucional do devido processo legal, o que permite que a questão possa ser levada ao Supremo Tribunal Federal por meio de recurso extraordinário. Sei que não há nulidade sem prejuízo, contudo, penso que o prejuízo, in concreto, é justamente a possibilidade de o resultado do julgamento ter sido outro.

Em segundo lugar, não considero correta a alteração da jurisprudência já consolidada, de forma abrupta, e sem que se faça a modulação dos seus efeitos. Faltou, a meu ver, uma leitura mais atenta do caput do art. 926 e do § 3º do art. 927, ambos do CPC.

Em terceiro lugar, confesso que não tenho a mesma certeza que a relatora (e os que com ela votaram) no que diz respeito à tal clara diferença entre “prestação alimentícia” e “verba de natureza alimentar”. Isso porque uma verba de natureza alimentar pode ser dividida em uma ou mais prestações. Também é possível que o termo “prestação” esteja sendo empregado como sinônimo de “obrigação”, e, se assim o for, há obrigação no pagamento da pensão alimentícia, e também há obrigação no pagamento dos honorários advocatícios sucumbenciais. Desse modo, diante desta incerteza conceitual, não se deve fechar portas enquanto não (e se) vier uma alteração legislativa.

Em quarto lugar, muito se falou no voto da relatora (bem como em julgados anteriores por ela citados) sobre a interpretação extensiva que vinha sendo dada, à expressão “prestação alimentícia” (§ 2º do art. 649 do CPC/73 e § 2º do art. 833 do atual CPC), de modo a englobar não apenas a pensão alimentícia (do direito de família), mas, igualmente, outras verbas de natureza alimentar. Não me parece que exista, aqui, uma interpretação extensiva. O que o STJ vem fazendo, desde o ano de 2011, é, simplesmente, uma interpretação. Penso que o que a ministra relatora (e os que com ela votaram) fez foi uma interpretação restritiva do disposto no § 2º do art. 833 do CPC. Isso porque, além de a lei não diferenciar as duas expressões, o § 2º do art. 833 do CPC é claríssimo no sentido de que a referida regra não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem. Vou repetir: independentemente de sua origem. Sendo assim, diante da clareza da lei, não se pode chegar a uma conclusão diversa: o STJ, por maioria de votos, fez uma interpretação restritiva.

Em quinto lugar, formulo a seguinte indagação: é lícita a interpretação restritiva? Não. Isso porque, como é sabido, onde a lei não distingue, não pode o intérprete fazer distinções. Ademais, essa interpretação restritiva se deu em um dispositivo legal com uma redação bastante ampliativa, o que deixa, ainda mais claro, o equívoco da técnica hermenêutica adotada.

Em sexto lugar, acredito que houve uma evolução da legislação processual e passou-se a permitir que o devedor de prestação de natureza alimentar pudesse responder com o seu salário, ou mesmo com a parcela de sua pensão alimentícia, acabando, portanto, com a indevida e injusta hierarquização de verbas alimentícias. Ora, afinal de contas, o credor e sua família têm os mesmos direitos à dignidade humana que o devedor e sua família.

Para finalizar, faço minhas as palavras de José Rogério Cruz e Tucci, que, ao escrever sobre este mesmo julgado, asseverou que, “[e]m outras palavras, a prestação a alimentos, devida ao advogado como contraprestação de seu trabalho, à guisa de honorários, é de inferior relevância, vale dizer, de segunda classe...” (Alimentos do advogado são de segunda classe numa recente decisão do STJ. Acesso em 12/11/20).

Portanto, com essas considerações, espero que a questão seja reexaminada pela Corte Especial do STJ, com todos os seus julgadores presentes, e que se perceba, com todo o respeito, a ilegalidade e a injustiça da tese vencedora. Discutir uma outra solução, no plano legislativo, é claro que é possível, entretanto, da forma como está redigido o CPC, tal conclusão é inconcebível. Enfim, sem dúvida, essa foi mais uma derrota para a advocacia. Aliás, neste mesmo processo houve mais uma decisão contrária e ruim para a classe, na medida em que não se permitiu o ingresso do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), como amicus curiae, no feito. Penso que todas as ações em que há discussão de teses relevantes sobre honorários advocatícios e prerrogativas, é cabível e necessária a intervenção da OAB.

_________

*Leonardo de Faria Beraldo é advogado. Doutorando e mestre em Direito Privado pela PUC/MG. Professor de Processo Civil, Arbitragem e Direito Civi do Colégio Registral Imobiliário do Estado de Minas Gerais – CORI/MG.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ITBI na integralização de bens imóveis e sua importância para o planejamento patrimonial

19/11/2024

Cláusulas restritivas nas doações de imóveis

19/11/2024

Quais cuidados devo observar ao comprar um negócio?

19/11/2024

Estabilidade dos servidores públicos: O que é e vai ou não acabar?

19/11/2024

A relativização do princípio da legalidade tributária na temática da sub-rogação no Funrural – ADIn 4395

19/11/2024