Foi anunciada uma “ação publicitária” por empresa de grande porte, realizada no dia 31 de outubro de 2020, cuja ideia parece ser genial: em comemoração ao halloween, todas as pessoas que se dirigirem aos estabelecimentos indicados com uma vassoura em mãos, ganharão um lanche delicioso.
Nas redes sociais, pudemos observar diversas pessoas extremamente criativas com suas fantasias e vassouras se dirigindo à rede de lanches, o que fez a criação de “memes” e “hashtags” disparar no halloween com a remissão ao nome da citada empresa, alcançando-se um número enorme de consumidores, o que era o objetivo da ação.
Veja-se que tal ideia de marketing é impecável e inovadora, pelo estímulo da comemoração de uma data que não é de nossa tradição há muito tempo, já que foi incorporada no Brasil por influência americana. Entretanto, é importante salientar que a campanha promovida somente seria praticável em outros tempos que não os pandêmicos atuais.
É de conhecimento geral que a busca pela promoção da marca da empresa sempre deve estar aliada com a legislação pátria. Portanto, é importante considerar que qualquer empresa que deseje realizar ações de marketing, deve, primeiramente, consultar seu departamento jurídico para verificar quais são os riscos que podem decorrer de qualquer campanha publicitária. A promoção da marca sem a aprovação legal pode derrubar qualquer campanha inovadora, como já pudemos verificar em inúmeros casos como o da Batom (“compre batom”), da Mundial (“eu tenho, você não tem”), Claro (promoção de Natal de 2007), entre outros.
Pois bem, lidando-se primeiramente com a Constituição Federal, é importante destacar que a saúde é elencada como direito social (art. 6º) e a defesa do consumidor como garantia fundamental (art. 5º, inciso XXXII), motivo pelo qual devem receber proteção efetiva.
Aliando tais conceitos (“saúde” e “consumidor”), o próprio CDC estabelece a Política Nacional das Relações de Consumo, a qual “tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores”, bem como o respeito à sua saúde sob alguns prismas principais, dos quais destacamos:
a) o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (art. 4º, inciso I);
Nesse sentido, é importante destacar que o consumidor sempre estará numa situação de hipossuficiência e precisa ser visto como vulnerável em todas as ações planejadas por empresas, para que futuros danos sejam evitados, haja vista que as empresas possuem o conhecimento técnico necessário para obstaculizar prejuízos.
b) a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (art. 4º, inciso III) e;
Nesse ponto, é importante dizer que o crescimento das empresas sempre deve estar aliado à boa-fé como um valor indissociável, protegendo-se o consumidor nas ações desenvolvidas com o intuito de promover o fornecedor.
c) coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no mercado de consumo, que possam causar prejuízos aos consumidores (art. 4º, inciso VI).
Com relação a tal questão, como melhor será verificado a seguir, é considerada abusiva a publicidade que gere risco à saúde do consumidor, por isso a mesma deve ser coibida.
Fixados tais pontos, esclarece-se que a proteção à saúde do consumidor se trata de direito básico, previsto no art. 6º do Código sob análise, sendo que o mesmo Diploma Legal se dedica, até mesmo a abarcar a proteção à saúde em seção própria (art. 8º a 11º).
Levando-se em consideração a publicidade em si, que é o objeto do presente artigo, o art. 36, §2º, do CDC frisa que é abusiva, dentre outras a publicidade “que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde”.
Sob o prisma pandêmico atual, que decorreu da proliferação do COVID-19, diversas diretrizes têm sido editadas para determinar que as aglomerações sejam evitadas. Podemos destacar, por exemplo, a Recomendação 022/20 do CNS, que determinou, logo no início da pandemia que os Governadores, Prefeitos e respectivos secretários de saúde reforçassem ou implementassem as medidas para possibilitar o afastamento social, e que não permitissem aglomerações de pessoas, como forma de diminuir a disseminação do coronavi'rus e evitar o colapso do Sistema de Saúde. Na mesma linha de raciocínio seguiu a Recomendação 036/20 do CNS.
Decorrentes de tais recomendações seguiram todas as normativas estaduais e municipais que vivenciamos, mas não serão aqui tratadas por serem numerosas.
A própria Organização Pan-Americana da Saúde, vinculada à OMS, fez questão de elaborar “considerações para eventos com aglomeração de pessoas no contexto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19)1”.
A referida Organização explicitou que “entende-se por eventos com aglomeração de pessoas os eventos caracterizados pela concentração de indivíduos em locais e com objetivos específicos, por um período determinado de tempo, e que podem levar os recursos de planejamento e resposta do país ou comunidade anfitrião ao limite. No contexto da doença causada pelo novo coronavírus (COVID-19), os eventos com aglomeração de pessoas são aqueles que implicam uma alta densidade de indivíduos em um determinado local, por um período definido de tempo, e que podem amplificar a transmissão da COVID-19, impondo uma sobrecarga ainda maior sobre o sistema de saúde do país envolvido”.
Indicou, ainda, que “o processo de retomada de eventos que envolvem aglomerações deve ser baseado em uma avaliação abrangente de risco, como a avaliação de risco em eventos com aglomeração de pessoas no contexto da COVID-19, da OMS2, que considera tanto os fatores de risco associados a um determinado evento quanto a capacidade dos organizadores de mitigá-los”.
Nessa esteira, qualquer tipo de publicidade que incite a movimentação de consumidores, por meio de aglomerações, deve ser analisada por meio de uma visão macro – possibilidade de contaminação – e por meio de uma visão micro – capacidade dos organizadores de mitiga-la.
Veja-se que o incentivo ao comparecimento de consumidores em filas deveria ser muito bem operacionalizado, para que se mantivesse o distanciamento mínimo, o uso de mascarás e de álcool gel, além de outras formas de proteção, o que, de fato, não ocorreu de forma completa, pois, ao que parece, houve um acúmulo de pessoas sem a observância de todos os fatores anteriormente listados, como o distanciamento mínimo, por exemplo, já que são inúmeras as notícias disponíveis na internet com a imagem de pessoas “amontoadas” nas filas, na espera pelos lanches3.
Dessa forma, é possível que publicidade dessa monta seja considerada abusiva, pois majorado o risco à saúde dos consumidores.
A coibição de tal tipo de ação é impositiva no Diploma Consumerista, tanto que se qualifica como crime contra a relação de consumo a promoção de publicidade que possa induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde (art. 68). Nesse contexto é possível encaixar a promoção de aglomeração na pandemia, sem a correta/efetiva minoração do risco.
Por fim, diga-se, também, que caso haja um contágio generalizado decorrente de campanha dessa monta (o que não se deseja), poderá estar-se diante de dano coletivo e da consequente a responsabilidade de indenizar.
Portanto, conclui-se que na pandemia que se instala as ações de marketing devem ser analisadas com muita cautela, pois não poderão ser realizadas como dantes, já que estamos diante de um “novo normal”. Aliar-se o marketing aos valores juridicamente tutelados é o primeiro passo para que uma campanha publicitária seja bem sucedida.
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*Paula Dias Cruz é advogada com foco empresarial, especialista em Direito Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pós-graduanda em Direito Societário pela Escola Superior da Advocacia da OAB/SP.