Migalhas de Peso

Cláusulas abusivas e a transmissão do acervo digital após a morte do seu titular

O que acontece com o acervo digital quando o seu titular morre?

12/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A vida cada vez mais se torna digital. A arbitragem e o processo judicial eletrônicos ilustram bem a digitalização das relações jurídicas. Litígios são iniciados, desenvolvidos e concluídos por meio digital, sem que os autos processuais adquiram forma física.1

Nesse novo contexto tecnológico, indaga-se qual o destino a ser dado pelas plataformas ao acervo digital da pessoa após a sua morte. Pode haver a sua destruição completa ou deve este ser transmitido aos herdeiros? Questões dilemáticas como esta vêm sendo respondidas sobretudo pelo prisma do Direito das Sucessões. No entanto, há sensíveis aspectos de Direito do Consumidor que precisam ser examinados, sob pena de se perpetuarem variadas violações a direitos básicos dos consumidores, por meio de cláusulas abusivas.

O que é o acervo digital?

No “mundo digital” armazena-se boa parte do acervo documental e dos ativos das pessoas naturais e jurídicas. Bens afeitos à personalidade humana, como fotos e vídeos pessoais, também se encontram, em proporção crescente, na chamada “nuvem”.

Importante ressaltar que o armazenamento digital não se restringe a bens patrimoniais. Ao contrário. Na sociedade contemporânea, em que boa parte das interações humanas se estabelece por meio de redes sociais, inúmeros bens dotados de valor existencial são diuturnamente armazenados digitalmente, a exemplo dos próprios perfis nas redes sociais, formados por vasto conteúdo disponibilizado pelos seus titulares: escritores postam textos, fotógrafos compartilham imagens, humoristas divulgam esquetes.

Tudo isso compõe o acervo digital, que pode estar em mais de um local ao mesmo tempo, no todo ou em parte: simultaneamente na nuvem, no laptop, no desktop, no celular, no tablet, no pen drive etc.

O que acontece com o acervo digital quando o seu titular morre?

Controverte-se se há ampla transmissão do acervo digital aos herdeiros, como decorrência da saisine, ou se, por outro lado, incidem restrições com vistas a se tutelar a privacidade tanto do falecido como de terceiros, a qualificar como intransmissíveis certos registros digitais.

Em apertada síntese, os defensores da intransmissibilidade sustentam que nem todos os bens digitais são passíveis de transmissão, havendo, portanto, dois regimes jurídicos distintos aplicáveis a referidos bens.2 Já para a corrente da transmissibilidade, todo o conteúdo que integra o acervo digital seria passível de compor a herança, salvo disposição expressa em vida do titular em sentido contrário.3

De acordo com as normas relativas ao direito das sucessões, à exceção das relações jurídicas personalíssimas, os herdeiros ocupam a posição do falecido, sucedendo nos direitos pessoais e reais.

Os contratos com as plataformas, celebrados por adesão, adotam configuração personalíssima e, uma vez falecido o titular, segue-se o quanto disposto no contrato e não se franqueia acesso aos herdeiros ao conteúdo nelas armazenado.

Essa previsão contratual no sentido da extinção do acervo digital com a morte do titular é abusiva?

A previsão contratual que impede a sucessão mostra-se de duvidosa legalidade, por retirar a autodeterminação do titular dos dados, que não pode escolher o destino a ser dado aos seus bens digitais por ocasião da sua morte. O conteúdo inserido nesses espaços digitais é do usuário e submete-se ao regime da titularidade privada. A cláusula contratual que atribui caráter personalíssimo à contratação é expropriatória, porque, em última análise, conduz à aquisição da propriedade pela plataforma, que destruirá os bens ali contidos, sem que seja conferido qualquer prazo para sua retirada pelos herdeiros.

As plataformas viabilizam a interação digital do usuário e o armazenamento de arquivos, de modo que não devem ter ingerência sobre a destinação desse conteúdo após o falecimento do usuário, e muito menos excluir o acervo digital do de cujus.

Isso não significa, porém, que as plataformas devam liberar acesso a qualquer familiar que o solicite, nem tampouco que os herdeiros tenham liberdade plena para fazer o que bem entenderem com o acervo digital. Além disso, há de se respeitar a vontade do de cujus, legitimamente manifestada nos termos da lei, acerca do destino do seu acervo digital.

Ilustrativamente, qual seria a justificativa jurídica para um filme comprado na plataforma não ser transmissível aos herdeiros, quando o DVD, contendo o mesmo filme, é plenamente transmissível causa mortis? Veja-se que a plataforma oferece a opção de alugar ou de comprar. Ora, se o consumidor exerceu a opção de compra, pagando o valor correspondente, como esse bem jurídico digital não se transmite aos herdeiros? Tertius non datur: ou não houve verdadeira venda do bem jurídico, mas apenas um licenciamento vitalício, e a opção de compra que aparece para o consumidor é enganosa, pois transmite impressão diversa ao leigo, ou houve efetiva venda, e o filme deve ser transmitido aos herdeiros, integrando o acervo hereditário.

No cenário atual, o acervo digital, prometido para sobreviver ao indivíduo, morre com ele por decisão da plataforma. Há, portanto, em muitos casos, reversão de expectativa – quando não verdadeira expropriação, como já observado – se ao dono do acervo digital não é dado escolher entre a perenidade e transmissibilidade do conteúdo ou sua exclusão diante da morte, nos limites e na forma da lei.

Além disso, há que se considerar que a exclusão pura e simples da conta digital, com a extinção de todas as informações ali contidas, pode afetar direitos de terceiros, que não terão acesso a documentos, inclusive que lhes digam respeito. Os herdeiros, que dão continuidade às relações contratuais do de cujus não personalíssimas, não terão acesso, por exemplo, a e-mails que podem comprovar o cumprimento da prestação, a constituição em mora pelo de cujus, e outras intercorrências contratuais, o que acarretará grave assimetria informacional em relação à outra parte do contrato.

De mais a mais, no caso das relações de consumo, ainda há grave falha informacional. Dificilmente o consumidor se dá conta de que o contrato é personalíssimo na contratação. Este tipo de prática deveria ser objeto de informação destacada. Nada obstante, em qualquer caso, a disposição mostra-se materialmente abusiva. Essa abusividade fica ainda mais latente quando desacompanhada da devida informação adequada.

Qual a solução a ser aplicada em caso de omissão do falecido?

Na falta de orientação pelo de cujus, não se pode pressupor que ele preferiria que os herdeiros não tivessem acesso ao conteúdo digital mais do que se poderia pressupor que ele gostaria que os herdeiros tivessem acesso.

É muitas vezes o desejo oposto, isto é, a vontade de transmitir – sem os riscos de tais registros se perderem em incêndio, enchente, acidente ou furto –, que faz as pessoas buscarem armazenamento na nuvem. A vontade de que as fotos passem através de gerações, que os vídeos em família sejam literalmente eternos, é que pode levar à contratação de amplos espaços na nuvem, que substituíram os sistemas de armazenamento caseiro em mídias como pen drives e HDs justamente pelo risco de serem corrompidas, furtadas, perdidas ou mesmo inutilizadas pelo decurso do tempo.

E, na dúvida, deve-se franquear a permissão porque, continuando os herdeiros as relações jurídicas do de cujus, assumem sua posição, estando inclusive adstritos aos mesmos deveres do falecido, entre os quais a preservação da privacidade de terceiros, quando o caso.

Em definitivo, em termos abstratos, os terceiros não ostentam legítima expectativa de que os herdeiros não terão acesso ao conteúdo que se sobreponha à legítima expectativa dos herdeiros de terem acesso ao conteúdo na hipótese de silêncio do falecido. Certamente, a vontade do falecido há de ser soberana e respeitada, quando efetuada nos termos da lei. Todavia, na ausência de determinação do falecido, não é possível pressupor em termos abstratos e absolutos, que ele tinha a expectativa de exclusão do acervo digital.

Deve-se, portanto, afastar o caráter personalíssimo do contrato com as plataformas, por abusividade nessa qualificação, franqueando-se, nos termos da lei, acesso aos herdeiros ao acervo digital do falecido.

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1 Emblemático dessa tendência é o artigo do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Luiz Fux, intitulado “Juízo 100% digital: uma nova era”, publicado em 8.11.2020 no Jornal O Globo.

2 HONORATO, Gabriel; LEAL, Livia Teixeira. Exploração econômica de perfis de pessoas falecidas: reflexões jurídicas a partir do caso Gugu Liberato. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil, Belo Horizonte, v. 23, p. 155-173, jan./mar. 2020. DOI:10.33242/rbdc.2020.01.008, pp. 163-164. Disponível em: clique aqui Acesso em 05 out. 2020.

3 FRITZ, Karina Nunes. Herança digital: quem tem legitimidade para ficar com o conteúdo digital do falecido? 2020, cit., p. 194.

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*Aline de Miranda Valverde Terra é professora de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Sócia do escritório Aline de Miranda Valverde Terra Consultoria Jurídica.

*Milena Donato Oliva é professora de Direito do Consumidor e de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Doutora e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.

*Filipe Medon é doutorando e mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor Substituto de Direito Civil na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de cursos de Pós-Graduação do Instituto New Law, CEPED-UERJ, EMERJ e do Curso Trevo. Membro da Comissão de Proteção de Dados e Privacidade da OAB-RJ e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Advogado e pesquisador.

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