I. Introdução
Pode-se dizer que a colaboração premiada está prevista em nosso ordenamento jurídico desde as Ordenações Filipinas, como espécie de perdão concedido àqueles envolvidos na prática de crime de lesa-majestade que delatassem os demais cúmplices (livro V, título IV, parágrafo 12)1, bem como, em determinados crimes, aos "malfeitores que derem outros à prisão" (livro V, título CXVI).
O instituto, no entanto, após longo hiato, só veio a ser novamente previsto após a promulgação da Constituição Federal de 1988, como resultado direto da tendência mundial de sumarização da justiça criminal, por meio da promoção de mecanismos negociais entre as partes para a resolução do processo, e de refinamento da produção probatória para o enfrentamento da criminalidade organizada:
Nessa linha, a colaboração premiada apresenta importância premente quando se enfrenta o crime organizado. Em razão de suas características – sobretudo, a lei do silêncio (omertá), imposta pela violência e a ‘cultura da supressão da prova’ – os instrumentos tradicionais não dão respostas eficazes. Deve-se relembrar, ainda, que em determinados tipos de criminalidade não há testemunhas presenciais e as únicas pessoas que podem fornecer informações são os próprios envolvidos. Justamente por isto, a colaboração premiada surge como instrumento que permite o enfrentamento eficaz destas novas formas de criminalidade, visando permitir uma persecução penal eficiente e, sobretudo, melhorar a qualidade do material probatório produzido2.
Contudo, os diversos diplomas legais que introduziram o mecanismo3 limitaram-se, basicamente, a prevê-lo como norma de direito material, sobretudo causa especial de diminuição de pena, silenciando a respeito do seu alcance, legitimidade, controle judicial, efeitos, etc.
Somente a Lei das Organizações Criminosas (lei 12.850/13) supriu essa lacuna legal, ao instrumentalizá-lo por meio de procedimento próprio:
De todos os regimes legais de delação premiada, o mais completo e detalhado é o da Lei da organização criminosa (...), que além de tratar dos efeitos materiais de benefícios premiais quanto à sanção, também estabelece regras procedimentais para a celebração do acordo, sua homologação, a produção da prova decorrente da delação e, por fim, o valor probatório da colaboração premiada4.
Foi por meio da lei 12.850/13 que o instituto ganhou destaque e maior utilização como técnica especial de investigação, culminando na sua ampla aplicação pela Operação Lava Jato.
Centro de grande controvérsia, a Lava Jato constituiu um marco jurídico e político no país, a partir de 2014. A delação premiada, dado o ineditismo de sua aplicação em série, também foi alvo de intensos debates.
Dentre eles, o presente artigo concentrar-se-á na discussão acerca da possibilidade, ou não, de serem aplicados benefícios não previstos em lei ao colaborador, expediente comumente verificado em diversos acordos homologados nos últimos anos, considerando-se a questão sob as perspectivas teórica e prática.
Para a devida análise sob o ponto de vista conceitual, foram observadas a evolução histórica e a natureza jurídica do instituto da colaboração premiada, bem como sua utilização em conformidade com a Constituição Federal, especialmente o princípio da legalidade estrita em sede jurídico-penal.
Por sua vez, a avaliação prática teve, necessariamente, que passar pelas consultas a alguns acordos de colaboração firmados na Lava Jato (paradigmas), bem como pelo exame e cotejo com expedientes negociais que guardam semelhança com a delação premiada.
Em ambas as perspectivas, chegamos à conclusão da impossibilidade desse procedimento, seja em razão da sua ilegalidade, seja pelos efeitos deletérios que essa prática dá azo, especialmente a vulneração aos direitos e garantias fundamentais dos acusados (delator e delatado), sendo auspiciosa a mudança trazida pela lei 13.964/19 (Lei Anticrime), que alterou o artigo 7o da lei 12.850/13 para incluir, no inciso II, nova atribuição do juízo na fase de homologação do acordo. Passou a lhe ser exigido verificar a
adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo [dispositivos que preveem as espécies de prêmios possíveis], sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo.
II. Benefícios previstos legalmente e a prática forense
A lei 12.850/13 prevê expressamente, em seu artigo 4o, seis espécies de sanções premiais ao colaborador: (I) perdão judicial (caput); (II) redução de até 2/3 da pena privativa de liberdade (não há mínimo legal) (caput); (III) substituição da pena privativa de liberdade por pena restritiva de direitos (caput); (IV) imunidade processual, isto é, não oferecimento de denúncia, desde que a infração penal delatada seja desconhecida pelo Ministério Público e o colaborador não seja o líder da organização criminosa e/ou tenha sido o primeiro a prestar efetiva colaboração (§ 4º); (V) redução da pena até a metade (§ 5º); e (VI) progressão de regime, ainda que ausentes os requisitos objetivos (§ 5º) – as duas últimas somente se a colaboração for posterior à sentença.
Contudo, diversos acordos celebrados no bojo da Operação Lava Jato estipularam benefícios não previstos em lei aos colaboradores, como a possibilidade de progressão de regime per saltum; possibilidade do colaborador e seus familiares ficarem ou utilizarem os bens oriundos das atividades criminosas; aplicação de regimes “diferenciados”; extensão dos benefícios a familiares do colaborador; extensão dos benefícios a outras esferas do direito; entre outros.
Cite-se como exemplo o acordo realizado em 2014 entre a procuradoria da República no Paraná e Pedro José Barusco Filho, ex-gerente de Serviços da Petrobras, com a previsão de que
o(s) regime(s) e a(s) pena(s) privativa(s) de liberdade que for(em) originalmente fixado(s) na(s) sentença(s) condenatória(s) proferida(s) em face do COLABORADOR ser(á)(ão) substituído(s) por pena privativa de liberdade em regime aberto diferenciado, por período de 2 (dois) anos, iniciando-se o seu cumprimento a partir do trânsito em julgado da primeira condenação [mediante determinadas condições]5
No mesmo acordo, o Ministério Público Federal comprometeu-se a pleitear a não aplicação de sanções ao colaborador e suas empresas em eventuais ações cíveis e de improbidade administrativas decorrentes dos fatos objeto da colaboração (Cláusula 5a, § 6º).
Na delação de Alberto Youssef, também em 2014, permitiu-se que suas filhas utilizassem veículos confessadamente produto de crime6.
No acordo entre Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, e a Procuradoria Geral da República, entabulado em 2016,
o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL compromete-se a não oferecer denúncia nem de nenhum modo, ainda que por aditamento ou rerratificação, propor ação penal por fatos contidos no escopo deste acordo em desfavor de qualquer familiar do COLABORADOR (...) (Cláusula 5a, § 4º, b)7.
Ainda nos termos acordados, chama atenção a forma estipulada do cumprimento da pena:
b) independentemente do preenchimento dos critérios dispostos nos artigos 33 a 48 do Código Penal, o cumprimento da pena privativa de liberdade da seguinte forma: b.I) 2 (dois) anos e 3 (três) meses de reclusão em regime fechado diferenciado, com monitoramento eletrônico individual, (...); b.II) 9 (nove) meses de reclusão em regime semi-aberto diferenciado, com monitoramento eletrônico individual, (...) (Cláusula 5a, § 1º).
III. Impossibilidade de concessão de benefícios atípicos
A. Princípio da legalidade
A justificativa dos que advogam pela possibilidade de aplicação de benefícios "híbridos" (ou "atípicos") ao colaborador pode ser resumida em três premissas que se complementam: a) se a Lei permite que o colaborador seja agraciado até mesmo com o perdão judicial (art. 4º, caput, da lei 12.850/13), que extingue a punibilidade do agente (art. 107, IX, do Código Penal), maior benefício a ser almejado, pode o proponente do acordo (Ministério Público ou Autoridade Policial), por questão de coerência, também oferecer quaisquer outros benefícios (lógica do "quem pode o mais, pode o menos"); b) desde que esses benefícios não sejam vedados pelo ordenamento jurídico, nem agravem a situação do colaborador, conforme consignado pelo ministro Barroso no julgamento da Questão de Ordem oriunda da petição 7.074/DF8; e c) e, como base de sustentação da premissa a, tem-se o fato de que o acordo de colaboração é negócio jurídico processual, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no paradigmático julgamento do habeas corpus 127.483/PR9, ainda em 2016, e agora positivado em lei por meio da Lei Anticrime10, e, como tal, está sujeito à autonomia e liberalidade das partes pactuarem os termos da avença, com as limitações impostas pela premissa b.
Tais fundamentos, no entanto, consistem em perigosas e indevidas importações do Direito Civil para o campo penal e desconsideram a lógica da dogmática criminal, assentada sob o princípio da legalidade estrita, que tem por objetivo limitar o poder punitivo estatal, dando segurança jurídica ao cidadão.
Conforme explicam Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa,
No processo penal, forma é garantia. Logo, não há espaço para ‘poderes gerais’, pois todo poder é estritamente vinculado a limites e à forma legal. O processo penal é um instrumento limitador do poder punitivo estatal, de modo que ele somente pode ser exercido e legitimado a partir do estrito respeito às regras do devido processo. E, nesse contexto, o Princípio da Legalidade é fundante de todas as atividades desenvolvidas, posto que o due process of law estrutura-se a partir da legalidade e emana daí seu poder. A forma processual é, ao mesmo tempo, limite de poder e garantia para o réu. (...) Não há a menor possibilidade de tolerar-se restrição de direitos fundamentais a partir de analogias, menos ainda com o processo civil, (...)11.
Por se tratar de garantia da cidadania contra o Estado, o princípio da legalidade admite flexibilizações apenas em favor do acusado12, nunca contra ele.
No caso da colaboração premiada, não se pode justificar a ausência de violação à legalidade na aplicação de benefícios inominados sob o argumento de que são favoráveis ao colaborador, a uma por que a concessão de benefícios ilegais excessivamente generosos reflete no conteúdo da delação e prejudica corréus delatados, e a duas por que há a possibilidade de que os benefícios concedidos, sob a falsa impressão de serem vantajosos ao colaborador, na verdade não o serem, o que será melhor explorado mais adiante.
Assim, o preceito da legalidade, que se impõe de forma soberana na esfera criminal, é o principal e suficiente impeditivo à livre pactuação dos prêmios resultantes da colaboração premiada.
A Constituição Federal estabelece, desde sua promulgação, como direito fundamental do cidadão, que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal" (art. 5o, XXXIX, da Constituição Federal), de modo que não é possível estabelecer benefícios, que, a bem da verdade, se tratam de aplicação de pena, sem que a sanção encontre respaldo legal, tornando-a formal e materialmente inconstitucional.
Nesse sentido as importantes ponderações realizadas pelo ministro Lewandowski ao não homologar acordo de colaboração premiada por prever a concessão de benefícios não previstos em lei – antes mesmo do advento da Lei Anticrime:
Ora, validar tal aspecto do acordo, corresponderia a permitir ao Ministério Público atuar como legislador. Em outras palavras, seria permitir que o órgão acusador pudesse estabelecer, antecipadamente, ao acusado, sanções criminais não previstas em nosso ordenamento jurídico, ademais de caráter híbrido. (...) Não há, portanto, qualquer autorização legal para que as partes convencionem a espécie, o patamar e o regime de cumprimento de pena. Em razão disso, concluo que não se mostra possível homologar um acordo com tais previsões, uma vez que o ato jamais poderia sobrepor-se ao que estabelecem a Constituição Federal e as leis do País, cuja interpretação e aplicação – convém sempre relembrar – configura atribuição privativa dos magistrados integrantes do Judiciário, órgão que, ao lado do Executivo e Legislativo, é um dos Poderes do Estado, conforme consigna expressamente o art. 3º do texto magno (STF, Pet. 7.265/DF, j. 14/11/17).
É de conhecimento notório também que, embora o cidadão possa fazer tudo aquilo que não lhe é defeso por lei, o agente público, por outro lado, somente pode agir nos termos e limites estabelecidos na legislação, o que se pode extrair da leitura do artigo 37, caput, da Constituição Federal, que prescreve expressamente a necessidade de obediência da Administração Pública ao princípio da legalidade.
Portanto, falar-se na possibilidade de aplicação de benefícios não previstos em lei, "desde que esses benefícios não sejam vedados pelo ordenamento jurídico", como sugere o ministro Barroso, constitui verdadeiro paradoxo, na medida em que aquilo que não é permitido às autoridades públicas realizar é, por certo, vedado pelo ordenamento, logo ilegal.
O fato de a colaboração premiada possuir natureza de negócio jurídico também não serve de pretexto para a concessão de benefícios à revelia do texto legal.
O caráter negocial do instituto não afasta sua condição, também disposta em lei, de que se trata, igualmente, de "meio de obtenção de prova" (arts. 3º, I, e 3º-A, da Lei n. 12.850/13) e, como tal, deve ater-se aos estritos limites legais.
Não se nega haver grande discussão na doutrina sobre a natureza probatória da delação premiada (se meio de obtenção de prova ou meio de prova). É certo, porém, que ambos os mecanismos estão sujeitos ao regime constitucional e legal da prova (em sentido lato), que veda a possibilidade de utilização de provas ilícitas13, "assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais" (art. 157, caput, do Código de Processo Penal)":
Tratando-se de meio de obtenção de prova, o acordo de delação premiada deve se subordinar aos contornos e limitações legais. A natureza negocial diz respeito ao caráter sinalagmático do pacto, mas não afasta a incidência das normas processuais penais. É um negócio jurídico personalíssimo, mas regido e limitado por normas de Direito Público. A partir de tal premissa, conclui-se, como é intuitivo, que a natureza negocial não afasta a obediência à legalidade que deve incidir sobre meios de prova e meios de obtenção de prova no processo penal. Não se concede ilimitada liberdade ao Ministério Público, até porque este não é titular do jus puniendi, e tampouco ao delator para estabelecimento das cláusulas do acordo, sob pena de flagrante ofensa ao devido processo legal14.
B. Efeitos deletérios da livre negociação dos benefícios
Mesmo sob a ótica utilitarista do Direito Penal, que considera as consequências práticas de determinada medida para sua aplicação – a qual não concordamos –, esse expediente de livre negociação não é oportuno.
A possibilidade de negociação de prêmios sem base legal abre margem para que os colaboradores recebam benefícios demasiadamente generosos, estimulando e promovendo delações falsas, que poderão, inclusive, ensejar nulidades processuais e levar à eventual impunidade de pretensos criminosos, o que nunca é desejável – sobretudo pelas correntes mais punitivistas.
Deve-se ter em mente que o acordo de colaboração não se encerra e circunscreve seus efeitos às partes celebrantes, como a transação penal (art. 76 da lei 9.099/95), a suspensão condicional do processo (art. 89 da lei 9.099/95) ou o acordo de não persecução penal (art. 28-A do Código de Processo Penal, incluído pela Lei Anticrime) – e é justamente esse o ponto que o diferencia de uma simples barganha processual entre acusação e defesa, como nesses outros mecanismos.
A delação premiada se caracteriza pela ausência da dialética e o antagonismo habituais entre acusação e defesa no processo penal. O réu colaborador abandona sua posição de resistência e passa a aderir e – aqui se tem o cerne da questão – a auxiliar a tese acusatória, em troca da mitigação da eventual pena pelos fatos confessados, de modo que a colaboração, no mais das vezes, terá reflexos diretos em corréus delatados.
O colaborador também não é testemunha, mero espectador alheio ao desfecho do processo. Ele possui interesse direto na prevalência da tese acusatória, a fim de que receba a maior bonificação oferecida.
É possível supor que o colaborador, tendo conhecimento de que, quanto mais informações e elementos capazes de levar à incriminação de outros envolvidos, mais se beneficiará, incorrerá em mentiras e na apresentação de provas manipuladas ou adulteradas, a fim de beneficiar-se ao máximo.
Thiago Bottino alerta de forma lapidar para os perigos advindos da concessão de benefícios exagerados – e sem previsão legal – a réus colaboradores, mesmo sob uma perspectiva eficientista:
O risco na celebração de acordos com tais previsões [ilegais] não é moral, mas sim de eficiência do instituto da colaboração premiada, na medida em que aumentam de forma exponencial os benefícios aos colaboradores prejudicando o equilíbrio de custo e benefício estabelecido pelo legislador. O criminoso avaliará o benefício esperado (vantagens que receberá pela cooperação) e o custo esperado (...). O custo esperado, no caso do sujeito que opta pela cooperação, está (1) na perda de seu direito de não se autoincriminar, (...); e, (2) na incerteza associada à possível não homologação do termo de colaboração ou a uma decisão posterior que despreze ou minimize os efeitos da colaboração. Ora, os benefícios excedem em muito os custos. (...) Essa hipótese ganha maior força nos casos em que o acusado se vê diante de penas potenciais altíssimas e os benefícios concedidos são muito atrativos (...). Em determinados cenários, onde há muita assimetria de informação, isto é, quando a parte acusatória não promoveu investigações independentes relacionadas à atuação de determinada pessoa ou sobre determinados fatos, os quais são ‘revelados’ pelo colaborador, o criminoso colaborador pode optar pela cooperação falsa, calculando que os benefícios esperados são mais altos que os custos15.
Por sua vez, a justificativa de "quem pode o mais, pode o menos” também vai de encontro ao princípio da legalidade, que, na realidade, deveria resumir-se no mantra de que, aos agentes públicos, “cada um pode dentro do que está previsto na lei".
Sobre esse ponto, endossamos as ponderações trazidas por Vinicius Gomes de Vasconcellos:
Deve-se problematizar o fundamento apresentado por parte da doutrina no sentido de (...), ‘quem pode o mais, pode o menos’. (...) tal cenário de não restrição e amorfismo acarreta consequências nefastas ao regime da colaboração premiada, visto que desconsidera por completo a legalidade e, assim, fomenta espaços para manifestações ilegítimas de poder. A desmensurada expansão dos benefícios possíveis ocasiona ainda a distorção do sistema em razão do exponencial crescimento das possíveis pressões e coações. Embora, em uma primeira análise, possa-se afirmar que a possibilidade de concessão de prêmios não previstos na lei é medida que beneficia o réu, de modo que ‘inexiste a restrição da legalidade estrita’, pensa-se que as consequências de tal abertura, em realidade, esvaziarão os limites do instituto negocial, prejudicando o delator e, especialmente, os demais acusados16.
Nesse sentido, pensando-se do ponto de vista do próprio colaborador, que, lembremos, possui, como os demais acusados, todos os direitos e garantias inerentes à sua posição – excetuados aqueles declinados por força de lei (direito ao silêncio e a não autoincriminação – art. 4º, § 14, da lei 12.850/13) –, o raciocínio de que ele não seria prejudicado com a aplicação de benefícios estranhos à lei deturpa a realidade e seu status quo anterior ao acordo, podendo levar, na realidade, ao agravamento de sua situação.
A defesa dessa possibilidade apoia-se em raciocínio semelhante ao utilizado pelos que alegavam ser a condução coercitiva medida benéfica ao réu, pois substitutiva de prisão temporária.
Ora, se a prisão temporária é cabível e necessária, que seja decretada. Caso não sejam verificados os pressupostos necessários para sua decretação, não deve ser estabelecida e ponto final, não devendo ser imposta qualquer restrição à liberdade do acusado, ainda que em menor grau, sob o pretexto de que lhe é "benéfico". Nenhuma medida que cerceia a liberdade de uma pessoa pode lhe ser bem-vinda.
Voltando para o universo da delação, não se pode dizer que a aplicação de um regime diferenciado ou a possibilidade de progressão de regime mais generosa do que dos termos da lei seja necessariamente benéfica.
É possível pensar que em determinados acordos, nos quais o colaborador, dada a relevância das informações prestadas para o êxito da acusação, poderia fazer jus ao maior benefício possível (perdão judicial), o Ministério Público, resistindo à ideia, e buscando encontrar um meio termo, ofereça benefícios híbridos como os mencionados anteriormente (“regimes diferenciados”, utilização de bens produto do crime, etc.), sob a falsa impressão de serem vantajosos ao colaborador, quando, se comparados à possibilidade de que lhe poderia ter sido concedido o perdão, por meio do qual não remanesce qualquer efeito condenatório17, são evidentemente desfavoráveis.
Se a autoridade proponente entende exagerada a aplicação de benefício extremo ao colaborador, que não lhe ofereça. A lei é farta em outras possibilidades (há seis possíveis prêmios a serem concedidos ao colaborador, com diferentes impactos e alcances).
O oferecimento de benefícios teoricamente vantajosos também pode servir de instrumento de coação para aceitação do acordo, o que, além de comprometer a voluntariedade do colaborador, indispensável para a legalidade da delação (art. 4o, caput, da lei 12.850/13), poderá, igualmente, estimular falsas acusações.
A coação – assim como o fato do instituto, previsto em benefício do réu, poder, na prática, ser utilizado em seu desfavor –, pode ser melhor compreendida por meio do paralelo com a transação penal. Os que militam no Juizado Especial Criminal conseguirão entender: a experiência forense concebeu o fenômeno do in dubio pro transação. Em muitas investigações, em que não se conseguiu alcançar justa causa mínima para a ação penal, o Ministério Público, ao receber os autos, ao invés de requisitar novas diligências ou determinar o arquivamento, oferece a transação ao investigado. Na dúvida, sem que lhe seja oportunizado contestar o mérito da investigação, e temeroso de ver-se denunciado, ainda que sob infundada acusação, o investigado, em muitos orientado inclusive por seu advogado, acaba aceitando o acordo. Pesa o fato de que as sanções estipuladas na transação penal são menos gravosas do que aquelas decorrentes de eventual condenação criminal. Não deixam, contudo, de caracterizar, em termos práticos, cumprimento de pena, o que é evidentemente mais invasivo e prejudicial do que o não oferecimento de denúncia, que em nada reduz o estado de liberdade plena do investigado.
O instrumento, assim, concebido legalmente para beneficiar o acusado, acaba, na prática, tornando-se um meio de pressão, muitas vezes utilizado em seu desfavor.
No caso da delação, a coação torna-se ainda mais preocupante, tendo em vista que, como já destacado, a colaboração impactará não somente o próprio colaborador, mas os demais delatados.
IV. Conclusão
Não há dúvida de que o legislador andou bem ao restringir a livre pactuação de benefícios ao colaborador (art. 7º, II, da lei 12.850/13, com redação dada pela lei 13.964/19). Embora, a nosso sentir, teria sido mais acertada uma redação ainda mais assertiva, prevendo expressamente a impossibilidade de aplicação de quaisquer benefícios não previstos em lei, é inegável que a mudança legislativa se trata de importante avanço e aperfeiçoamento do instituto da colaboração premiada, garantindo que sua aplicação não se dê à margem de toda a dogmática processual e criminal construída ao longo de séculos, assentada sob o princípio soberano da legalidade.
Também acertada a exigência legal de que o magistrado deverá atentar-se para a adequação dos benefícios à lei já na fase de homologação do acordo. Do contrário, caso essa atribuição fosse deslocada para a fase de sentenciamento, teríamos a possibilidade da concretização de delações natimortas, causando enorme insegurança jurídica ao próprio delator, que veria eventuais benefícios acordados – e homologados – não lhe serem concedidos, pois não previstos em lei, bem como serem iniciadas ações penais baseadas em delações possivelmente falsas – ante a generosidade dos prêmios estipulados –, em prejuízo aos corréus delatados.
Por todo o exposto, entendemos que as partes devem ter autonomia para acordar a(s) espécie(s) e a extensão dos benefícios resultantes da colaboração premiada, limitada, no entanto, aos termos lei.
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1 "E quanto ao que fizer conselho e confederação contra o Rey, se logo sem algum spaço, e antes que per outrem seja descoberto, elle o descobrir, merece perdão. E ainda por isso lhe deve ser feita mercê, segundo o caso merecer, se elle não foi o principal tratador desse conselho e confederação. E não o descobrindo logo, se o descobrir depois per spaço de tempo, antes que o Rey seja disso sabedor, nem feita obra por isso, ainda deve ser perdoado, sem outra mercê. E em todo o caso que descobrir o tal conselho, sendo já per outrem descoberto, ou posto em ordem para se descobrir, será havido por commettedor do crime de Lesa Magestade, sem ser relevado da pena, que por isso merecer, pois o revelou em tempo, que o Rey já sabia, ou stava de maneira para o não poder deixar saber".
2 MENDONÇA, Andrey Borges de. A Colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (lei 12.850/2013). Custos legis – Revista Eletrônica do Ministério Público Federal. Rio de Janeiro: Procuradoria da República do Rio de Janeiro, Vol. 4, p. 1-2, 2013.
3 Lei dos Crimes Hediondos (lei 8.072/90); Lei do Crime Organizado (lei 9.034/95), posteriormente revogada pela lei 12.850/13; lei 9.080/95, que introduziu mudanças nas leis 7.492/86 e 8.137/90; Lei de Lavagem de Dinheiro (lei 9.613/98), posteriormente alterada pela lei 12.683/12; Lei de Proteção às Testemunhas (lei 9.807/99); Lei Antitóxicos (lei 10.409/02); e Lei de Drogas (lei 11.343/06).
4 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal [livro eletrônico]. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
5 Cláusula 5a, III, do acordo firmado nos autos do inquérito policial 5049557-14.2013.404.7000, em trâmite perante a 13ª Vara Federal de Curitiba/PR.
6 Cláusula 7ª, § 3º, do acordo datado de 24.09.14 (STF, Pet 5.244/DF, rel. min. Teori Zavascki).
7 Acordo datado de 4/5/16 (STF, Pet 6.138/DF, rel. min. Teori Zavascki).
8 "Portanto, é possível prever o que já esteja de antemão escrito na lei, mas também é possível se estabelecer em condições razoáveis e legítimas independentemente de elas estarem expressamente previstas na lei, evidentemente, desde que elas: i) não sejam vedadas pelo ordenamento jurídico; ii) não agravem a situação do colaborador" (STF, QO na Pet. 7074/DF, Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, j. 29/6/17. Trecho do voto do min. Luís Roberto Barroso).
9 "A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como ‘meio de obtenção de prova’, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração" (STF, habeas corpus 127.483/PR, Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 4/2/16).
10 “Art. 3º-A. O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos” (lei 12.850/13, com redação dada pela lei 13.964/19).
11 LOPES Jr., Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Três temas da paradigmática decisão do ministro Celso de Mello no HC 186.421. Acesso em: 25 jul. 2020.
12 Exemplo disso é a judiciosa construção doutrinária e jurisprudencial acerca do princípio da insignificância. Embora não previsto expressamente em lei, se trata de raciocínio desenvolvido em favor do réu, que visa privilegiar a dignidade da pessoa humana, assegurada constitucionalmente (art. 1o, III), bem como o caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal, que não deve ocupar-se de bagatelas.
13 “Art. 5º (...) LVI - são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos” (Constituição Federal).
14 ARAÚJO, Gisela Borges de. Da legitimidade do delatado para impugnação do acordo de delação premiada. In: CALLEGARI, André Luis (coord.). Colaboração premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 118.
15 BOTTINO, Thiago. Colaboração Premiada e incentivos à cooperação no processo penal: uma análise crítica dos acordos firmados na “Operação Lava Jato”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 122/126, p. 359/390, set.-out. 2016.
16 VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 239.
17 “A sentença concessiva do perdão judicial é declaratória da extinção da punibilidade, não subsistindo qualquer efeito condenatório” (Súmula 18 do Superior Tribunal de Justiça).
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ARAÚJO, Gisela Borges de. Da legitimidade do delatado para impugnação do acordo de delação premiada. In: CALLEGARI, André Luis (coord.). Colaboração premiada: aspectos teóricos e práticos. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal [livro eletrônico]. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2019.
BOTTINO, Thiago. Colaboração Premiada e incentivos à cooperação no processo penal: uma análise crítica dos acordos firmados na “Operação Lava Jato”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 122/126, p. 359/390, set.-out. 2016.
LOPES Jr., Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Três temas da paradigmática decisão do ministro Celso de Mello no HC 186.421. Acesso em: 25 jul. 2020.
MENDONÇA, Andrey Borges de. A Colaboração premiada e a nova Lei do Crime Organizado (Lei 12.850/2013). Custos legis – Revista Eletrônica do Ministério Público Federal. Rio de Janeiro: Procuradoria da República do Rio de Janeiro, Vol. 4, 2013.
VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Colaboração premiada no processo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017.
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