Ementa
1. Normas infraconstitucionais ou normas constitucionais não originárias podem atingir situações jurídicas pretéritas, salvo se violarem algum dos óbices constitucionais (ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido). Se. houver algum óbice constituição, essas não podem ter, sequer, retroatividade mínima, o que justifica o fato de a Lei do Distrato não ser aplicada para contratos anteriores (capítulos 2.1., 2.2., 2.4. e 3.1.).
2. Inexistindo óbice constitucional, essas normas novas automaticamente atingem situações jurídicas pendentes e futuras, mas só atingirão situações jurídicas pretéritas se houver determinação expressa nessa lei (capítulos 2.1. e 2.2.).
3. Em se tratando de norma constitucional originária (NCO), a regra é diferente. Os óbices constitucionais não lhe são obstáculo por conta das características de onipotência do Poder Constituinte Originário. Por isso, toda NCO automaticamente atinge efeitos futuros futuros de ato jurídico perfeito pretérito (retroatividade mínima), mas só atingirá efeitos pendentes (retroatividade média) ou pretéritos (retroatividade máxima) se houver determinação expressa na NCO (capítulo 2.4.).
4. Direito adquirido não se confunde com expectativa de direito nem com faculdade jurídica ou com regime jurídico, o que justifica o fato de os artigos de prazos prescricionais, decadenciais e de usucapião bem como os artigos relativos a pessoas jurídicas, a condomínios edilícios e a processo civil da Lei da RJET serem aplicados a situações jurídicas anteriores (capítulos 2.2.1. e 4).
5. Ato jurídico perfeito abrange contratos já celebrados, ainda que sua execução tenha sido protraída no tempo. Esse conceito só se estende a situações jurídicas individuais, e não a institucionais, o que justifica a retroatividade de leis que tratam de padrão monetário, correção monetária e multa moratória em condomínio edilício (capítulos 2.2.3. e 3.2.).
6. No Brasil, sempre se adotou a solução do italiano Gabba (e não a do francês Roubier) em matéria de proteção do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (capítulo 2.3.).
7. Normas que positivam regras anteriores baseada em princípios não podem ser aplicadas retroativamente diante de algum óbice constitucional. Todavia, o juiz, analisando o direito anterior, pode chegar ao mesmo resultado prático, de modo que a nova lei lhe pode ser um “estímulo hermenêutico”. É sob essa ótica que se deve analisar as leis emergenciais que tratam de regras de resolução de contratos, a exemplo da Medida Provisória nº 925/2020 bem como do vigente art. 8º e dos vetados arts. 6º e 7º da Lei do RJET (capítulos 3.3. e 4).
Introdução
Este artigo tem dois objetivos: (1) sistematizar, com a maior objetividade possível, o assunto de retroatividade das leis diante dos óbices constitucionais (direito adquirido, coisa julgada e ato jurídico perfeito), tudo com enfoque no Direito Civil e à luz da doutrina e da jurisprudência majoritárias1; e (2) expor a situação de leis emergenciais editadas para períodos excepcionais, como o de pandemia, de que são exemplos a lei 14.010/20 (Lei do RJET ou Lei da Pandemia) e a Medida Provisória nº 925/2020. Sem o primeiro objetivo, é inviável alcançar o segundo.
Conceitos importantes
2.1. Retroatividade
O prefixo “retro” significa movimento para trás, de sorte que, no vernáculo, retroatividade é uma atuação (uma atividade) para trás. No Direito, retroatividade é a aplicação de uma lei para fatos anteriores à sua vigência.
Ora, a regra é a de que nenhuma lei é feita para disciplinar o passado, e sim o presente e o futuro, donde dizer-se que vigora no Brasil o princípio da irretroatividade das leis. Leis são feitas para disciplinar fatos que vierem ocorrer após a sua vigência.
2.2. Óbices Constitucionais
Apesar do princípio da irretroatividade, o fato é que a retroatividade das leis é plenamente admissível, desde que não viole os óbices constitucionais da segurança jurídica: o direito adquirido, a coisa julgada e ato jurídico perfeito. Dizem-se constitucionais esses óbices em razão de estarem previstos na CF (art. 5º, XXXVI). Eles também estão pormenorizados no art. 6º da LINDB.
Em realidade, todos os óbices constitucionais poderiam ser enquadrados em direito adquirido, pois a coisa julgada e o ato jurídico perfeito são, em última análise, um direito adquirido proveniente respectivamente de uma decisão judicial e de um ato jurídico. Todavia, por questão didática, a doutrina desmembra do direito adquirido essas outras duas categorias.
Caso não se viole os óbices constitucionais, uma nova lei, automaticamente (independentemente de previsão expressa), atingirá situações jurídicas novas e pendentes e poderá atingir situações jurídicas pretéritas apenas se houver previsão expressa. Reitere-se: isso só acontece se essas situações jurídicas não se enquadrarem em nenhum dos óbices constitucionais. A título de exemplo, reportamo-nos ao exemplo da licença-prêmio, que citaremos quando viermos a tratamos de direito adquirido.
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1- Para aprofundamento, recomendamos a leitura da obra do consagrado Professor Mário Luiz Delgado Regis (REGIS, Mário Luiz Delgado. Novo Direito Intertemporal Brasileiro: da retrotividade das leis civis. São Paulo: Saraiva, 2014).
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*Carlos E. Elias de Oliveira é consultor Legislativo do Senado Federal, Advogado, Professor e Doutorando, mestre e bacharel em Direito na UnB.