A profusão de normas de combate à corrupção influenciada por instrumentos como o FCPA americano (Foreing Corrupt Practices Act) e o UKBA britânico (United Kingdom Bribery Act) que hoje alcança grande parte dos países não foi suficiente para refrear as práticas ilícitas em detrimento da sociedade.
É o que evidenciou a 13ª edição do relatório Exporting Corruption, lançado no início de outubro pela Transparência Internacional.
A edição bianual avaliou 47 países líderes globais de exportação quanto à observância e implementação de medidas voltadas à efetivação da Convenção Anti-Suborno da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), de 1997 (inclusive o Brasil).
Abarcou, além dos 43 países signatários da Convenção – inclusive o Brasil (exceção feita à Islândia, tendo em vista sua baixíssima taxa de exportação), a China (responsável por quase 11% das exportações globais), Hong Kong, Índia e Singapura.
Conforme ressalta o estudo, a corrupção nas transações internacionais desestabiliza as instituições governamentais, compromete recursos públicos, refreia o desenvolvimento econômico e social, distorce investimentos e destrói a competitividade nas transações internacionais – além de discriminar pequenas e médias empresas.
Infelizmente, as conclusões não são animadoras, e chamam à urgente reflexão – e mudança de posturas.
A primeira – e geral – é que as ações de enforcement, voltadas à implementação e aprimoramento da Convenção, caíram consideravelmente desde a edição anterior do estudo, em 2018 (cerca de 39%).
Além disso, todos os países avaliados apresentaram casos expressivos de corrupção internacional e lavagem de dinheiro.
A publicação de informações e a transparência das medidas e políticas anticorrupção igualmente se mostraram marcadamente insatisfatórias: nenhum país considerado divulga dados correlatos a processos instaurados, resultados, consequências etc.
As medidas compensatórias das vítimas são em regra insipientes, permanecendo valores eventualmente recuperados perdidos na via crúcis burocrática dos países ‘exportadores’ de corrupção.
O Brasil foi classificado em grau moderado de promoção das medidas anti-suborno: no período, foram iniciadas 24 investigações, havendo 3 casos sido concluídos com imposição de sanções.
Tiveram destaque os casos Embraer (que pagou propina a autoridades da República Dominicana, Arábia Saudita, Moçambique e Ìndia); Asperbras (acusada de pagar suborno ao filho do presidente da República do Congo); Oderbrecht (responsável por subornos pagos em mais de 100 projetos em 12 países); e outros investigados no âmbito da Lava-Jato (tais como Camargo Correa, Andrade Gutierrez, UTC, Queiroz Galvão, OAS e Engevix).
Daí que, não obstante havermos sido melhor avaliados que países como Canadá, Áustria, Dinamarca, Chile, Holanda e Nova Zelândia, e encontrarmo-nos no mesmo patamar da Alemanha, França, Itália, Espanha, Austrália, Suécia, Noruega e Portugal, a situação que se apresenta é bastante preocupante.
Primeiro porque os dados levados em consideração correspondem a momento em que ações como a Lava-Jato estavam se desenvolvendo a todo vapor, com reconhecida legitimidade e apoio, tanto popular quanto institucional.
Segundo porque qualquer leitura mais otimista contrasta direta e ostensivamente com a recente declaração, acompanhada de embaraçosa e presunçosa ‘comemoração’ do governo federal quanto a haver supostamente debelado a corrupção.
A surreal afirmação desencadeou o encaminhamento, pela mesma Transparência Internacional, de um relatório sobre os retrocessos do combate à corrupção em âmbito nacional à Divisão Anticorrupção e ao Grupo de Trabalho Antissuborno da OCDE.
O mote principal do documento é expor ao mundo a alarmante situação brasileira, em que se misturam de forma bastante perigosa elementos globalmente reconhecidos como ofensivos aos princípios democráticos e a inação de grande parte da população.
Chama atenção para aspectos como o comprometimento do sistema de freios e contrapesos, com a indevida – e inconstitucional – ingerência de um poder sobre o outro; a captura e desconsideração da legitimidade democrática das instituições e da soberania popular; a instrumentalização das estruturas de Estado; a apropriação, manipulação e supressão de informações públicas; a utilização da religião como ferramenta política e de manipulação da população; o crescimento da desconfiança nas instituições; a concentração – de questionável constitucionalidade – das competências atinentes aos acordos de leniência em órgãos do Executivo; os reiterados ataques à imprensa – e à liberdade de imprensa; a falta de transparência com relação aos acordos de leniência (inclusive quanto aos respectivos anexos, em regra mantidos em sigilo); o estrangulamento dos canais e estratégias de participação democrática; as inúmeras fraudes nos processos de contratação para combate à pandemia, dentre outros.
Tal diagnóstico é seguido de série de recomendações, por meio das quais se pretende a superação das distorções e ilegalidades, com a recolocação do país no rumo do desenvolvimento (entendido aqui em seu mais amplo sentido).
Direcionam-se tanto aos órgãos internos da OCDE quanto ao próprio governo federal, Congresso Nacional, Judiciário e à Procuradoria Geral de Justiça brasileiros.
Trata-se de documento que, para além da importância do diagnóstico traçado, com inequívoco, oficial e abrangente registro do atual momento histórico, é um convite à reflexão – e à mobilização, ao engajamento, à resistência.
A explicitação dos retrocessos e da marcante desarticulação das ações de enforcement e combate à corrupção igualmente contribuem para o afastamento de esquizofrênicas e distorcidas leituras segundo as quais a corrupção seria tema superado.
Em face dos fatos apurados, as palavras de nada valem...
Como desde há muito assente, a vigilância constante – e universal – é condição para a prevenção e superação de retrocessos.
Portanto, fiquemos atentos: o futuro do país – e o grau de corrupção a corroê-lo - passa por momento absolutamente decisivo.
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*Laura Mendes Amando de Barros é doutora e mestre em Direito do Estado pela USP. Especialista em Direito Público pela Escola da Paulista da Magistratura e em Autoridades Locais e o Estado pela ENA-Paris. Ex-Controladora Geral do Município de São Paulo.