Em meados de julho do ano corrente, a ANCINE (Agência Nacional do Cinema) divulgou uma lista com mais de 4 mil produções audiovisuais que ainda não tiveram suas contas analisadas, informando que o passivo seria analisado nos próximos 4 (quatro) anos. Informou, no mesmo comunicado, que ainda constavam 168 produções pendentes e que 102 produções analisadas foram reprovadas, 56 aprovadas com ressalvas e apenas 10 projetos foram aprovados.1
A ANCINE, segundo aduz, tem atendido à demanda do Tribunal de Contas da União e aponta que esses já são os primeiros resultados da criação da Superintendência de Prestação de Contas, que estabeleceu uma nova metodologia de análise dos processos financiados pela União. Frise-se: novos critérios de análise sendo aplicado para produções passadas. E pasmem: de acordo com a nova toada da ANCINE as rejeições de contas tem alcançado produções realizadas há mais de 15 anos (!).
Parece evidente [para não dizer óbvio] que a ANCINE não pode considerar nova instrução normativa para prestação de contas de projetos anteriores à mudança da instrução. Afinal, como poderia o produtor, desdotado de mediúnicos poderes premonitórios, cumprir com disposições até então inexistentes?
Recai na situação a regra tempus regit actum (o tempo rege o ato) que nada mais é do que a ideia de que os atos são regidos pela lei em vigor no momento em que são praticados.
O que se vê, em verdade, é que a Agência vem se valendo de instrução normativa 150, aprovada em 2019, para avaliar projetos antigos realizados sob a égide de outros requisitos, exigindo, não raramente, documentações e balanços que, à época da execução, jamais foram obrigatórios, ao argumento de que haveria um “dever legal” de guardá-los.
Os produtores, por sua vez, evidentemente encontram dificuldades de atender às exigências: seja em virtude do decurso de tempo, seja em razão da impossibilidade de se voltar atrás e reajustar a conduta dentro dos novos moldes estabelecidos.
Se não bastasse a utilização de critérios novos para avaliar projetos antigos, o que certamente estaria vedado pela irretroatividade da aplicação das normas, a ANCINE, em várias tomadas de contas, quedou-se inerte em seu dever de avaliar projetos que, por vezes, foram executados há mais de 20 anos.
Essa inércia já constitui elemento suficiente para fulminar a pretensão de avaliar da agência reguladora, já que a Administração Pública, direta ou indireta, está sujeita aos prazos prescricionais, nos termos do art. 1º da lei 9.873/992, que estabelece o prazo de prescrição para o exercício da ação punitiva pela Administração Pública Federal — além do prazo trienal relativo à prescrição intercorrente. É dizer: o processo não pode(ria) ficar parado por mais de 3 (três) anos, nos termos do art. 1º da lei 9.873/993.
E nem se diga que a ANCINE não estaria sujeita a esse regramento: a instrução normativa 109/124, emitida pela própria ANCINE, em seu art. 146, dispõe sobre a prescrição quinquenal da ação punitiva da Agência. Merece destaque:
Art. 146. Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Ancine, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
Na mesma toada é a instrução normativa 2/19, do Ministério da Cidadania, que aponta o prazo prescricional de 5 (cinco) anos para aplicação de sanções — prazo esse contado a partir da apresentação da documentação pelo jurisdicionado. Confira-se:
Art. 57. Transcorrido o prazo de 5 (cinco) anos, contados da apresentação dos documentos previstos no art. 49, fica caracterizada a prescrição para aplicação das sanções previstas nesta Instrução Normativa, ressalvada a imprescritibilidade do ressarcimento dos danos ao erário, conforme art. 37, § 5º, da Constituição Federal.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal, no leading case do RE 636.886, fixou a tese 899, em repercussão geral, no sentido de que “é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas". Evidentemente que o fato de o tema ter sido fixado em relação à atuação do Tribunal de Contas não pode ser óbice à aplicação da prescrição para a atuação da ANCINE, especialmente pela atuação da agência em avaliar e aprovar as contas prestadas pelas produtoras. Humberto Theodoro Júnior leciona sobre a importância de se respeitar os atos já praticados:
Mesmo quando a lei nova atinge um processo em andamento, nenhum efeito tem sobre os fatos ou atos ocorridos sob o império da lei revogada.
A nova lei alcança o processo no estado em que se achava no momento de sua entrada em vigor, mas respeita o efeito dos atos já praticados, que continuam regulados pela lei do tempo em que foram consumados. (omissis).
Em suma: as leis processuais são de efeito imediato perante os efeitos pendentes, mas não são retroativas, pois só os atos posteriores à sua entrada em vigor é que se regularão por seus preceitos. Tempus regit actum. Deve-se, pois, distinguir, para aplicação da lei processual nova, quantos aos processos: exauridos: nenhuma influência sofrem. Pendentes: são atingidos, mas respeita-se o efeito dos atos já praticados; futuros: seguem totalmente a lei nova5.
A todas as luzes, a ANCINE não percebe que a aplicação da nova instrução deve respeitar os atos já consumados pelo jurisdicionado. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe, claramente [e mais uma vez], que as orientações, interpretações e demais atos públicos devem levar em consideração as normas e orientações vigentes à época do ato. Confira-se:
Art. 24 - A revisão, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, quanto à validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa cuja produção já se houver completado levará em conta as orientações gerais da época, sendo vedado que, com base em mudança posterior de orientação geral, se declarem inválidas situações plenamente constituídas.
Parágrafo único - Consideram-se orientações gerais as interpretações e especificações contidas em atos públicos de caráter geral ou em jurisprudência judicial ou administrativa majoritária, e ainda as adotadas por prática administrativa reiterada e de amplo conhecimento;
O vasto acervo legal e doutrinário não foi suficiente para orientar as agências: não tardou e o assunto já chegou às portas dos Tribunais. O Judiciário tem se manifestado no sentido de que a agência não poderia exigir documentação que não era exigível à época da prestação de contas e que nunca havia sido solicitada antes pela ANCINE — valendo-se de nova instrução normativa. Até o mais jejuno em direito é capaz de indicar que essa postura viola frontalmente o princípio da segurança jurídica. Veja-se a esse propósito:
O indivíduo tem como direito poder confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçados em normas jurídicas vigentes e válidas por esses atos jurídicos deixados pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico poderes6
(Destacou-se)
Sabe-se que as portarias, instruções normativas, dentre inúmeros outros atos normativos devem satisfazer os preceitos contidos nas Leis, em harmonia com a Constituição. Assim, e em paralelo, não é demais rememorar que a Instrução Normativa é ato puramente administrativo, não tendo o condão [rectius: poder] de inovar no ordenamento jurídico — muito menos de afrontar a Constituição da República. Luciano Ferraz comenta a tese do tema 531 da jurisprudência em teses, do STJ, destacando que a segurança jurídica deve ser interpretada, também, como a irretroatividade das leis e dos atos estatais e das interpretações sobre a legislação aplicável. Vale o destaque:
A doutrina nacional e a estrangeira têm anotado que a incidência do princípio da segurança jurídica - como derivação do princípio do estado de direito (art. 1º da Constituição da República) - tem sido destacada em importantes temas da atualidade, tais como: (a) irretroatividade das leis e demais atos estatais, bem assim das interpretações já realizadas pelos órgãos administrativos e judiciais acerca da legislação aplicável; (b) dever do Estado dispor sobre regras transitórias em razão de alterações abruptas de regimes jurídicos setoriais; (c) responsabilidade do Estado pelas promessas firmes feitas por seus agentes; (e) manutenção no mundo jurídico de atos administrativos inválidos.7
Já não bastassem tais razões, nos termos do artigo 2º, parágrafo único, inciso XIII, da lei 9.784/99, a aplicação retroativa de nova interpretação da norma na esfera administrativa é vedada. Confira-se:
Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:
(...) XIII – interpretação de norma administrativa de forma que melhor garanta o atendimento do fim público a que se dirige, vedada aplicação retroativa de nova interpretação.
É uma lógica deveras simples: a segurança jurídica é o instrumento capaz de levar certeza ao cidadão — que possui relações com o Estado — a previsibilidade da norma:
[...] a relativa certeza de que os indivíduos têm de que as relações realizadas sob o império de uma norma devem perdurar ainda quando tal norma seja substituída.8
É de ver que a ANCINE não apenas encampou uma campanha de avaliação em massa, mas passou a rejeitar contas e cadastrar empresas no cadastro de inadimplência (CADIN), o que gera danos inequívocos a essas empresas, as quais ficam incapazes de contratar com a Administração Pública para efetivação de seus projetos.
Se não parece evidente que a conduta da ANCINE é absolutamente ilegal, restará às produtoras recorrer-se ao Judiciário para ver cessar a fumaça cinzenta da insegurança jurídica que assombra as produtoras. Afinal... fiscalização sim! Arbitrariedade, jamais!
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1 AGÊNCIA NACIONAL DO CINEMA. Matéria disponível aqui.
3 § 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.
5 JÚNIOR. Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. 59 ed. Rio de Janeiro, 2018. P.182.
6 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002. p. 257.
7 FERRAZ, Luciano. Segurança jurídica e remuneração percebida indevidamente por servidores públicos de boa-fé. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; NOHARA, Irene Patrícia (Coord.). Teses Jurídicas dos Tribunais Superiores. Direito Administrativo. v. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 505-514.
8 SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36 ed. São Paulo: Malheiros, 2013. P. 435
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