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Direito de arrependimento e produtos perecíveis: O acerto da lei 14.010/20

Apesar de parecer algo simples essa “limitação temporária” ao direito de arrependimento com relação a produtos perecíveis ou consumo imediato de medicamentos, o dispositivo merece reflexão mais aprofundada.

3/11/2020

(Imagem: Arte Migalhas)

A instabilidade econômica e social acarretada pelo covid-19 ensejou a promulgação da lei 14.010/20, que instituiu normas de caráter transitório e emergencial para a regulação de relações jurídicas de Direito Privado, de modo a promover adequações condizentes com a excepcional situação vivenciada.

Especificamente no âmbito do Direito do Consumidor, art. 8º da lei 14.010/20 tangencia ponto importante quanto ao exercício do direito de arrependimento, declarando sua “suspensão”, até 30/10/20, nos casos de entrega domiciliar de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.1

Apesar de parecer algo simples essa “limitação temporária” ao direito de arrependimento com relação a produtos perecíveis ou consumo imediato de medicamentos, o dispositivo merece reflexão mais aprofundada.

O Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/90) completou 30 anos e, durante todo esse período, apesar de se tratar de fato cuja constatação é praticamente instintiva, a inaplicabilidade do direito de arrependimento a produtos perecíveis nunca foi consignada expressamente em lei.

Veja-se que o artigo 49 do CDC dispõe genericamente sobre o direito de arrependimento: “o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.”

Essa redação legal talvez fosse condizente com a realidade da época de sua elaboração, mas é certo que, desde então, o surgimento de novos produtos e serviços, bem como meios de comunicação, trouxe tamanho dinamismo à sociedade que impõe a atualização daquele texto, se não por meio de alteração legislativa, ao menos pela sua interpretação adequada.

Nesse sentido, Eros Roberto Grau explica, com maestria, que “se todo texto pretende ser compreendido em cada momento e em cada situação concreta de uma maneira nova e distinta, a interpretação (...) há de ser concebida como atividade que adapta o direito às necessidades presentes e futuras da vida social (= atualiza-lo), na acepção mais ampla dessa expressão. Os textos de direito não veiculam enunciados semânticos cristalizados, congelados no tempo.

De fato, querer aplicar, nos dias de hoje, a letra fria da lei elaborada há três décadas, é condenar a sociedade à estagnação, a viver eternamente sob os parâmetros jurídicos de uma realidade há muito ultrapassada. Portanto, não se pode fechar os olhos ao descolamento da realidade em relação à norma. A construção e atualização constantes do direito são absolutamente necessárias, em processo dinâmico de contínua adaptação dos textos normativos aos fatos.

A realidade enfrentada pré-pandemia já contrastava com a vivida quando da promulgação da lei 8.078/90. O desenvolvimento e a expansão do e-commerce e de aplicativos de entrega de refeições transformaram profundamente a rotina dos consumidores, que utilizam com frequência e estão familiarizados com os serviços oferecidos naquelas plataformas. 

Na Europa, a diretiva 97/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, há tempos proíbe o exercício do denominado “direito de rescisão” no contratos de fornecimento de bens que, pela sua natureza, não possam ser reenviados ou sejam suscetíveis de se deteriorarem ou perecerem rapidamente (art. 6º, 3, terceiro travessão).

Posteriormente, a Diretiva 2011/83/UE, do Parlamento Europeu e do Conselho, manteve a previsão em comento e, em seu art. 16, alínea “d”, consigna que, no tocante ao “fornecimento de bens suscetíveis de se deteriorarem ou de ficarem rapidamente fora de prazo”, os Estados-Membros não conferem o “direito de retratação” relativo a contratos celebrados à distância e fora do estabelecimento comercial. 

Neste sentido, autores rechaçam o exercício do direito de arrependimento em relação a bens perecíveis, como Orlando Celso da Silva Neto, segundo o qual “existem contratos firmados a distância que não poderão ser objeto de arrependimento, tais como aqueles versando sobre bens perecíveis ou de bens/serviços de consumo imediato (que se extinguem pelo uso)2.

Acertadamente, a lei 14.010/20 reconheceu que o consumidor não pode exercer o direito de arrependimento com relação a produtos perecíveis e, por meio de tal limitação, impede o abuso de direito.

Veja-se que há fundamento por trás dos dispositivos e da vedação ao direito de arrependimento especificamente quanto a produtos perecíveis. Para nós, o dispositivo não inova, mas apenas explicita e torna inquestionável a norma que já se havia de extrair da interpretação sistemática do Direito do Consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor impõe que haja equilíbrio nas relações de consumo, com base na boa fé, conforme preconiza o art. 4º, III: 

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores

Compreendendo a essência do dispositivo, Sergio Cavalieri Filho afirma que “a proteção do consumidor deve ser na exata medida do necessário para compatibilizar o desenvolvimento econômico e tecnológico do qual necessita toda a sociedade e equilibrar as relações entre consumidores e fornecedores3.

A harmonia nas relações de consumo deve ser preservada, de modo que o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, com sua consequente proteção, não pode implicar tratamento hostil ao fornecedor. Como bem explica Felipe Peixoto Braga Netto, “o essencial é o correto equilíbrio da balança.”4

Humberto Theodoro Júnior reforça esse aspecto ao afirmar que “essa tutela legal não se destina a criar privilégios que façam inverter, em favor do consumidor, o desequilíbrio inicial da relação jurídica. O que o CDC procura assegurar é a harmonia e o equilíbrio entre as duas posições contratuais (art. 4º, caput, e inc. III)5.

Sob este viés, cumpre destacar que a regra genérica estabelecida pelo art. 49 do CDC parte do pressuposto de que o exercício do direito de arrependimento não acarreta prejuízo injusto a nenhuma das partes (consumidor e fornecedor), na medida em que, após a devolução do produto, o fornecedor poderia aproveitá-lo, revendê-lo etc. É o que ocorre, por exemplo, quando um consumidor exerce o direito de arrependimento em relação a um bem durável, como um livro, um computador, ou uma peça de roupa. O prejuízo do fornecedor certamente é reduzido, pois o valor comercial do bem é preservado.

Contudo, ao se considerar a aquisição de alimentos via delivery, inegavelmente o vendedor sofreria dano, pois além da devolução do valor pago pelo consumidor, assumiria o prejuízo equivalente ao custo integral de produção, na medida em que os alimentos não mais podem ser aproveitados e comercializados. Impõe-se ao fornecedor risco desproporcional inaceitável.

Nota-se, portanto, que o direito de arrependimento encontra limites e deve ser norteado, como todos os demais atos, pelo princípio da boa-fé objetiva, regra de conduta que exige das partes comportamentos conforme parâmetros de honestidade e de lealdade a fim de estabelecer equilíbrio das relações. Trata-se de princípio que visa a garantir relações sociais e comerciais saudáveis, sem abusos ou danos ilegítimos. No mais, a boa-fé objetiva é exigível dos dois polos de qualquer relação jurídica.

A lei 14.010/20, apesar de promulgada com o objetivo de regular período atípico, acertou ao reconhecer a inaplicabilidade do direito de arrependimento quanto a produtos perecíveis, na medida em que é inadmissível franquear ao consumidor, que realizou compra de alimento para consumo imediato, a possibilidade de arrependimento em até 7 (sete) dias após a compra, em prejuízo ao fornecedor.

Para além da violação da boa-fé, estender o direito de arrependimento, indiscriminadamente, aos gêneros alimentícios e perecíveis, configuraria abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil: “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. 

Assim, a hipotética aplicação do art. 49 do CDC aos produtos perecíveis adquiridos para consumo imediato escapa à lógica, ultrapassa a barreira da justa conduta, é desproporcional e flerta com o abuso de direito, violando os limites da boa-fé e ignorando os princípios do CDC. Admitir tal pretensão levaria a distorções e a prejuízos aos fornecedores, causando desequilíbrio e ruína a toda a cadeia de consumo.

A delimitação temporal da suspensão do exercício do direito de arrependimento quanto a produtos perecíveis ou de consumo imediato imposta pela lei 14.010/20 traz indagação pertinente: o direito do consumidor deve ser visto como um conjunto de normas unilaterais, tendo como único objetivo a proteção do consumidor, mesmo que acarretando abusos e excessos, ou deve ser interpretado como um conjunto de normas que estabelecem determinadas premissas e prezam pela harmonia das relações de consumo, evitando excessos tanto em relação aos consumidores quanto aos fornecedores? Nesse quadro, a ponderação, o equilíbrio e a harmonia social e econômica nos parecem valores irrenunciáveis.

Pondera-se que, enquanto na Europa as exceções ao direito de arrependimento foram há muito tempo delineadas, no Brasil, apenas diante de situação de pandemia, foi editada lei que expressou, corretamente, a inaplicabilidade do direito de arrependimento com relação a produtos perecíveis.

Conforme já pontuado, à época da consolidação do Código de Defesa do Consumidor, o cenário fático era completamente diferente do estabelecido no período pré-pandemia e já impunha interpretação do artigo 49 do CDC em consonância com as dinâmicas sociais e o uso frequente de aplicativos de delivery pelos consumidores.

Diante dessa situação, defende-se que o aprimoramento consignado na lei 14.010/20, fruto de situação emergencial, não pode se perder, tendo em vista a necessidade de adequação da legislação à realidade experimentada, que em muito difere da enfrentada quando da edição da lei 8.078/90.

_________

1 “Até 30 de outubro de 2020, fica suspensa a aplicação do art. 49 do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos.”

2 SILVA NETO, Orlando Celso da. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense, 2013, p. 619.

3 CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor, Atlas, 2008, p. 20.

4 BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor, 2. ed., Podivm, p. 58-59.

5 THEODORO JÚNIOR, Humberto. O contrato imobiliário e a legislação tutelar do consumo, Forense, 2003, p. 36.

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*Carolina Nardy Gabriel é bacharel pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – USP. Advogada no escritório Edgard Leite Advogados Associados.

 

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